segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Estrondo comum - Jean-Luc Nancy



Jean-Luc Nancy

Da política, hoje, não resta nada.

Da política, hoje, resta tudo.

Não resta nada porque o que definiu o conteúdo da palavra “política" foi levado por uma história cuja reativação e, sem dúvida, revisitação não podem ser colocadas em questão.

Essa história foi de início a que viu nascer a polis: isto é, a forma que uma coletividade reunida e governada por si, e não por uma autoridade divina, dava a si própria. A cidade grega, como a romana, repousava numa agitação das organizações teocráticas ou tribais (com frequência imbricadas umas nas outras), mas não sem destas manter aspectos muito importantes das fores hierarquias estruturantes das sociedades tradicionais, bem como o deslocamento de uma parte da sacralidade social no que podemos nomear (com anacronismo) uma religião civil.

O desenho geral da cidade antiga já não tem nenhum sentido para nós, uma vez que já foi desfeito. A polis se formou, transformou e deformou com o movimento de uma civilização em mutação profunda, saindo da estrita reprodução agrícola para esboçar formas de produção e de comércio que Marx nomeou “pré-capitalistas". Por fim, inventa-se a representação de outra cidade, aquela de um Deus resolutamente fora do mundo e diante do qual nenhuma hierarquia nem dominação que estruturavam a sociedade se sustenta.

A tarefa de fazer o mundo – no sentido do espaço de circulação do sentido –, à qual a cidade tinha de responder, divide-se em duas: de um lado, a transfiguração do mundo em reino de Deus, de outro, a configuração do mundo dos homens. “Política” se torna assim o nome de um espaço por inventar: será nomeada "república" (em todos os valores sucessivos da palavra desde, ao menos, Bodin), espaço de criação do sentido (do mundo) cuja consistência e estabilidade (Estado) são assegurados pela soberania (a qualidade de origem e de fundamento do “direito público"). Uma vez que soberania cessa de ser identificada com uma figura (real, por exemplo) e se torna a do “povo”, ela toma como tarefa a configuração do espaço do dito povo. Isso se chama democracia.

Neste ponto, a política sofre uma profunda deiscência: por um lado, ela permanece identificada à República e ao Estado ao mesmo tempo que o campo de seu exercício e de sua legitimidade se determina como “nação”, identidade suposta e/ou moldada, por outro lado, mantendo os traços de uma instância figural, autoritária e separada, ela é votada à anular sua própria separação e a desaparecer enquanto esfera distinta a fim de renascer imergida em todas as esferas da existência comum, a começar pelo exercício da decisão (conselho, democracia direta).

A separação d'"a política" não foi abolida nem verdadeiramente mantida. O que de fato se produziu foi uma impregnação de todas as esferas da existência comum (isto é, tendencialmente, da mera existência, o comum de existir, humano e não-humano, aquilo de que a palavra “comunismo” tinha que se encarregar), tanto de esquemas infrapolíticos como suprapolíticos. Representações míticas e afetivas de destinos coletivos (cobrindo ao mesmo tempo enormes máquinas técnico-econômicas) ou representação da manutenção generalizada de um conforto na equivalência geral do valor de mercado. De um modo ou de outro, um mundo de completude ou de saturação indefinida.

É neste ponto que não resta nada da política e que, por isso, resta tudo: a questão da configuração de um espaço de circulação de sentido (também podemos dizer: de sentido, portanto, de circulação, sem completude) é inteiramente colocado, aberto, escancarado.

Nessa abertura ao menos um sinal pisca: todas as formas de completude ou de saturação – ideológicas e/ou técnico-econômicas – engendram desigualdades – desumanidades, insensibilidades, insanidades – não apenas tão pesadas como aquelas que nutriam as antigas hierarquias e sacralidades, mas, além disso, claramente desprovidas de toda aparência de justificação natural ou sobrenatural.

É por isso que a política subsiste ao menos como revolta – mesmo que seja, quando necessário, como revolta contra a política. “Revolta” não quer dizer "revolução” na medida em que esta última pôde carregar a projeção tanto de um retorno da base da política – com conservação de sua estrutura – quanto de uma abolição integral da separação de sua instância. A revolta não promete tantos ou tão grandes riscos e é por isso que ela pode desconfiar até mesmo da política revolucionária. Mas ela protesta a respeito do fato de que a existência é insustentável se ela não pode abrir para si espaços de sentido. De que isso não é possível enquanto reina – no lugar de uma circulação – a circularidade implacável de tudo-o-que-equivale-ao-mesmo. De que este “reino” é desprovido de toda espécie de glória e de graça, enquanto o outro, o do céu, flutua esvaído e deformado.

Subsistindo como revolta, ela talvez por nada subsista, mas talvez seja necessário não pensar em termos de subsistência, de resto ou de sobrevivência. É sobremaneira necessário nada esperar d'"a política", como se ela fosse o reservatório misterioso de não se sabe qual fonte escondida de sentido.

A revolta denuncia ainda “o espírito de um mundo sem espírito”, mesmo se ela não entende mais essa palavra da mesma maneira. Sem espírito: não sem "espiritualidade”, mas sem a vivacidade dos signos e dos gestos por meio dos quais somente se existe.

A revolta, no entanto, não explica o que seria a vivacidade de uma existência aberta a suas possibilidades. A revolta não discursa, ela estronda. O que quer dizer "estrondar”? É quase uma onomatopeia. É rosnar, berrar, rugir. É gritar, é murmurar, resmungar, gemer, indignar-se, protestar, zangar-se em muitos. Rosna-se sobretudo sozinho, mas estronda-se em comum. O comum estronda, é uma torrente subterrânea que passa por baixo fazendo tudo tremer. 
 
 
Jean-Luc Nancy, Grondement commun, in.: Lignes, n. 41, 2013/2, pp. 111-114. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-lignes-2013-2-page-111.htm
 
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko