domingo, 28 de abril de 2013

Carta à destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.
Querida, escrevo para você porque não poderia deixar de fazê-lo. Aliás, querida, já está tudo feito. É como se um motor imóvel estivesse agora tomando meus dedos para deles fazer uma máquina de inventar palavras. Toco a borda de uma folha de papel, como se tocasse a borda da linguagem. Chego a pensar que talvez você tenha me esquecido; chego a pensar que a morte é presença tão surda que jamais tocarei o papel novamente. Não me lembro de ter estado em sua presença, querida. Apenas sei que estamos próximos, como jamais estive de mim mesmo. Solto suspiros tentando imprimi-los neste papel, mas não se escrevem sopros. O sonho da vida começou desde há muito, e nossas hábeis tentativas de evitar o movimento da terra foram vãs. Tudo já estava escrito, querida, tudo: os meus sonhos, os seus sonhos, as suas cartas, as minhas cartas. Sobram as letras, sobram as palavras. Nosso impossível encontro desfaz-se a cada vez que soçobram minhas tentativas de fazer entrar neste papel os meus suspiros. Já não consigo pensar em você. Tento redesenhá-la à força, à força de palavras, mas os traços sempre são diferentes. Você recebe cada carta minha sem jamais por elas esperar. Eu é que permaneço inerte, esperando as frases que poderei armar com as palavras que sobrarem da última carta. Não nos encontramos, mesmo que a terra insista em girar para que isso aconteça. Somos nossos próprios fantasmas, inventados nas nossas ausências. Nenhum sentido há depois disso, nenhum adeus que nos console. O mundo acaba, querida, no nosso despertar, sem sonho e sem palavras para qualquer suspirar. Deixo para você um poema, dos mais lindos que talvez tenha lido hoje. E, agora penso, talvez nosso encontro não passe de um emaranhado de cartas (geográficas ou não) já amareladas no porão de algum navio à deriva.

Do seu remetente impossível.  


La tierra giró para acercarnos,
giró sobre sí misma y en nosotros,
hasta juntarnos por fin en este sueño,
como fue escrito en el Simposio.
Pasaran noches, nieves y solsticios;
pasó el tiempo en minutos y milenios.
Una carreta que iba para Nínive
llegó a Nebraska.
Un gallo cantó lejos del mundo,
en la previda a menos mil de nuestros padres.
La tierra giró musicalmente
llevándonos a bordo;
no cesó de girar un solo instante,
como si tanto amor, tanto milagro
sólo fuera un adagio hace mucho ya escrito
entre las partituras del Simposio.

p.s.: envio também uma foto que tirei numa das tantas vezes em que, navegando, estava à sua procura.

Pequeno parágrafo sobre o piscar




Na confusão das pálpebras, nesse seu ir e vir, às vezes permanecia atônito. Deitava-me e fechava os olhos em busca do repouso para aquela pequena parte plástica do meu corpo. Era um alívio profundo cerrar a movimentação irrefreável dos reflexos com o simples fechar de olhos. No entanto, como podia me sentir tão perturbado pelo simples e natural movimento das pálpebras? Como o piscar era uma espécie crise labiríntica, algo como uma interdição à normalidade da vida que via nos outros? Passava pelas ruas tentando imaginar o porquê de, talvez, ninguém ser como eu, um eterno incomodado pelo movimento quase involuntário daquele pequeno pedaço de pele. Olhava para um lado e via uma senhora que passeava com o cão. Imediatamente punha-me a pensar em como para o cão também deveria ser cansativa a necessidade de controlar a temperatura corporal pela respiração. Num menear de cabeça, percebi que tinha sido observado por uma moça que passava. Queria ter acompanhado aquele olhar; queria saber se aquele olhar que me fora há pouco desferido tinha sido, por um átimo, interrompido pelo piscar. Agora, em meu quarto, toda essa história sobre o piscar, parecia ser motivo para novamente me incomodar. Mas justo agora que repousava de olhos fechados? Não tinha tréguas, e o alívio profundo de alguns segundos atrás já havia se tornado novamente uma angústia. Titubeante, abro com receio os olhos e me dou conta de que a luz apagada não me deixa ver. Pisco irrefreavelmente pensando que a escuridão já não era o átimo do instante da piscada, mas a minha entrega aos joguetes da memória e da imaginação. As pálpebras tornam-se então as cortinas de um teatro abandonado e nada mais parece natural. As piscadelas, que agora não velam nem desvelam nada, dizem-me em silêncio: "somos as sombras do seu pensamento". 

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Amalfitano, professor



E o que foi que os alunos de Amalfitano aprenderam? Aprenderam a recitar em voz alta. Memorizaram os dois ou três poemas de que mais gostavam para recordá-los e recitá-los nos momentos oportunos:  funerais, bodas,  solidões. Compreenderam que um livro era um labirinto e um deserto. Que o mais importante do mundo era ler e viajar, talvez a mesma coisa, sem nunca parar. Que ao fim da leitura os escritores saíam da alma das pedras, que era onde viviam depois de mortos, e se instalavam na alma dos leitores como numa prisão macia, mas depois essa prisão se ampliava ou explodia. Que todo sistema de escrita é uma traição. Que a poesia verdadeira vive entre o abismo e a desdita e que perto da sua casa passa o caminho real dos atos gratuitos, da elegância dos olhos e da sorte de Macabrú.* Que o principal ensinamento da literatura era a coragem, uma coragem estranha, como um poço de pedra no meio de uma paisagem lacustre, uma coragem semelhante a um turbilhão e a um espelho. Que não era mais cômodo ler do que escrever. Que lendo aprendia a duvidar e recordar. Que a memória era o amor. 


* Personagem do romance histórico juvenil Macabrú y la hoguera de hielo (1985), do catalão Emili Teixidor. Macabrú é um jovem que desconhece suas origens, junta-se a um grupo de jograis e, ao fim de inúmeras peripécias, consegue descobrir sua identidade, é filho do célebre trovador Aicart de Carcassone. (NT)  


Roberto Bolaño. As agruras do verdadeiro tira. (Los sinsabores del verdadero policía). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. pp. 144-145. Imagem: Larry Rivers, Redcoats - Mist 1970. 

sábado, 20 de abril de 2013

Fragmento à morte


Venho de ti e torno a ti,
sentimento nascido com a luz, com o calor,
batizado quando o choro era alegria,
reconhecido em Pier Paolo
à origem de uma ansiosa epopeia:
caminhei à luz da história,
mas, sempre, sem ser heróico
sob o teu domínio, íntimo pensamento.
Coagulava-se no teu traço de luz,
nas atrozes desconfianças da tua chama,
todo ato verdadeiro do mundo na história
aqui se verificava inteiro,
e perdia a vida para reavê-la:
a vida era real somente se bela...
A fúria da confissão,
primeiro, depois a fúria da clareza:
era de ti que nascia, hipócrita, obscuro
sentimento! E então acusam até minha paixão,
me enlameiam, dizem-me informe, impuro
obsessivo, diletante, mas perjuro.
Tu me isolas, me dás a certeza da vida:
estou na fogueira, jogo a carta do fogo,
e venço, este meu pouco e imenso bem,
venço esta infinita miséria,
minha piedade que me dá também tua
justa ira amiga.
Posso fazê-lo, porque muito te sofri!
Torno a ti, como torna
um emigrado ao seu país e o redescobre:
fiz fortuna (no intelecto)
e sou feliz, exatamente
como era em um tempo, destituído de norma.
Uma raiva preta de poesia no peito,
uma louca velhice de jovenzinho.
Sem mais, apenas nós,
minha conviva, sem mais.

Imagem: urnas funerárias em Sant'Apollinare in Classe.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Pedaços



Um pouco como um dia dos restos de mármore, cerâmica, bronze. Das peças minúsculas, maiúsculas, que como um repertório infinito de tempos que se cruzam. Objetos de decoração, vidros, pentes, moedas, Grécia, Roma, bárbaros, bizantinos, cabeças sem corpos, corpos sem cabeça. Mulheres de um lado, homens do outro. O corredor da maratona que também poderia carregar urnas funerárias. As catacumbas, os mausoléus. Tudo não é senão um amontodado de pedaços; tudo é quase nada. 
Os pedaços são um dia e também podem ainda ser pedaços que se compõem em mosaicos: um todo de pedaços. Os pedaços carregam-se de tempo e são o desnudamento de qualquer todo. O labirinto dos rejuntes dos mosaicos carrega a verdade dos tempos. Aliás, as moedas, as verdades falseáveis de cada tempo, eram encontradas nas bocas dos defuntos para ajudá-los na passagem para as suas verdades, sua morte. Dizem os arqueólogos que as moedas são os achados mais comuns em contextos funerários: o óbolo de Caronte, o barqueiro que levará a alma para o outro lado do Aqueronte. Entregamos os mortos como um pedaço de um mosaico; fazemos com que possam compor o todo da vida: o sem-sentido. O dinheiro, portanto, o nada que o velho Aristóteles, na sua Ética a Nicôcamo, já disse ser "como a medida que torna todas as coisas comensuráveis", é a medida da travessia da morte. Atravessamos o vazio: eis o nosso trunfo. Consumimos a morte, dia a dia.
Não restam senão matérias, embrulhos, tempos que se cruzaram, rejuntes perdidos de um antigo mosaico cujas peças embalamos junto aos nossos mortos (ou seriam estes as peças?). O barro que ganhou forma (Adão? o vaso?) quebra-se e des-forma-se. Quando? Talvez hoje, talvez há centenas ou milhares de anos. Pouco importa. Não há senão restos de tempos. Os restos de tempos em estado puro. Os dies nefasti de nossa sempiterna agonia. Pedaços de um vazio...  

Imagem: Igreja da Martorana, Palermo.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Limiar ou "tornada" - "O tempo que resta"





Por certo vocês se lembram da imagem do anão corcunda, da primeira tese Sobre o conceito de história de Benjamin, que está escondido sob o tabuleiro e que, por seus movimentos, assegura a vitória ao fantoche mecânico vestido de turco. Benjamin toma tal imagem de um trecho de Poe; mas transpondo-a para o terreno da filosofia da história, acrescenta que aquele anão é, na realidade, a teologia “que hoje é pequena e feia e que não deve em nenhum caso deixar-se ver”, e se o materialismo histórico souber tomá-la a seu serviço, então ele ganhará a partida histórica contra seus temíveis adversários.
            Dessa maneira, Benjamin nos convida a considerar o próprio texto das teses como um tabuleiro sobre o qual se desenrola uma batalha teórica decisiva que, devemos supor, também nesse caso, é conduzida com a ajuda de um teólogo escondido entre as linhas do texto. Quem é esse teólogo corcunda, que o autor soube tão bem dissimular no texto das teses, que ninguém até agora conseguiu identificar? E é possível encontrar nas teses indícios e traços que permitam atribuir um nome àquele que não deve em nenhum caso se deixar ver?

            Citação
            Numa das notas da seção N de seu fichário (que contém reflexões sobre a teoria do conhecimento), Benjamin escreve: “Este trabalho deve desenvolver ao máximo a arte da citação sem aspas” (Benjamin, 1974-89, V, 572). Como vocês sabem, a citação tem em Benjamin uma função estratégica. Assim como existe uma sorte de compromisso secreto entre as gerações passadas e a nossa, também entre as escrituras do passado e o presente há um compromisso do gênero, e as citações são, por assim dizer, as intermediárias de seu encontro. Não surpreende, portanto, que elas devam ser discretas e que por vezes saber cumprir de modo não reconhecível o seu trabalho. Tal trabalho não é tanto de conservação quanto de demolição: “A citação”, pode-se ler no ensaio sobre Kraus, “chama a palavra pelo seu nome, arranca-a do contexto que destrói”; ela “salva e pune” ao mesmo tempo (ibid., II, 363). No ensaio O que é o teatro épico?, Benjamin escreve: “citar um texto significa interromper o contexto a que ele pertence.” O teatro épico brechtiano, ao qual Benjamin se refere no seu ensaio, propõe-se a tornar citáveis os gestos. “O ator”, acrescenta, “deve ser capaz de espaçar seus gestos, como o tipógrafo o faz com as letras” (ibid., 536).
            O verbo alemão que se traduz aqui por “espaçar” é sperren. Ele designa a convenção tipográfica – não apenas alemã – de substituir os itálicos por um espaçamento entre as letras da palavra que se quer, por alguma razão, assinalar. O próprio Benjamin – toda vez que utiliza uma máquina de escrever – serve-se dessa convenção. Do ponto de vista paleográfico, trata-se do contrário das abreviações utilizadas pelos copistas para certas palavras recorrentes no manuscrito, e que, por assim dizer, não havia necessidade de ler (ou, se pensamos nas nomina sacra de Traube, que não se devia): os termos espaçados são, de certa maneira, hiper-lidos, lidos duas vezes – e, como sugere Benjamin, essa dupla leitura podia ser aquela palimpsestica da citação.
            Se vocês derem agora uma olhada no Handexemplar das teses, verão que já na segunda tese Benjamin recorre a tal convenção. Na quarta linha antes do fim, lê-se: Dann ist uns, wie jedem Geschlecht, das vor uns war, eine s c h w a c h e messianische Kraft mitegegeben..., “Para nós, como para todas as gerações que nos precederam, foi dada uma f r a c a força messiânica”. Por que “fraca” está espaçada? Qual tipo de citação está aqui em questão? E por que a força messiânica, à qual Benjamin confia a redenção do passado, é fraca?
            Bem, eu conheço somente um único texto em que se teoriza de maneira explícita a fraqueza da força messiânica. Como vocês viram, trata-se da passagem de 2 Cor 12, 9-10, que comentamos várias vezes, em que Paulo, que pediu para o messias de liberá-lo do espinho na carne, sente-se responder hē gar dynamis en astheneía teleítai, “a potência se cumpre na fraqueza”. “Por isso”, acrescenta o apóstolo, “comprazo-me nas fraquezas, nos ultrajes, nas necessidades, nas perseguições e nas angústias pelo messias; com efeito, quando sou fraco, então sou potente [dynatós].” O fato de que se trate de uma verdadeira citação sem aspas está confirmado pela tradução de Lutero, que Benjamin devia provavelmente ter diante de seus olhos. Enquanto Jerônimo traduz por virtus in infirmitate perficitur, Lutero, como a maioria dos tradutores modernos, prefere denn mein Kraft ist in den schwachen Mechtig: os dois termos (Kraft e schwache) estão presentes, e é essa hiper-legibilidade, essa presença secreta do texto paulino nas teses, que o espaçamento quer discretamente assinalar.
            Vocês entendem que a descoberta dessa citação escondida – mas não muito – no interior dessa tese muito me emocionou. Por aquilo que sabia, Taubes tinha sido o único a sugerir uma influência possível de Paulo sobre Benjamin, mas sua hipótese se referia a um texto do começo dos anos 1920, o Fragmento teológico-político, que Taubes coloca em relação precisamente com Rm 8, 19-23. A intuição de Taubes é certamente justa; entretanto, não somente não é possível falar de citação nesse caso (salvo, talvez, para o termo benjaminiano Vergängnis, caducidade”, que poderia corresponder ao vergengliches Wesen da tradução luterana do versículo 21) – mas há, entre os dois textos, diferenças substanciais. Enquanto, de fato, em Paulo a criação foi sujeitada sem o querer à caducidade e à destruição, e que por isso ela geme e sofre na espera da redenção, em Benjamin, com uma genial inversão, a natureza é messiânica exatamente por sua eterna e total caducidade, e o ritmo dessa messiânica caducidade é a felicidade.

Imagem
Uma vez descoberta a citação paulina na segunda tese (eu lembro a vocês que as teses Sobre o conceito de história são uns dos últimos escritos de Benjamin, quase uma espécie de testamento sobre sua concepção messiânica da história), o caminho está livre para a identificação do teólogo anão, que move secretamente as mãos do fantoche materialismo histórico. Um dos conceitos mais enigmáticos do pensamento benjaminiano dos últimos anos é Bild, imagem. Ele aparece várias vezes no texto das teses, de modo particular na quinta, em que lemos: “A verdadeira imagem (das wahre Bild) do passado fugiu veloz. Somente na imagem, que lampeja num clarão de uma vez por todas no instante de sua cognoscibilidade, deixa-se fixar o passado... Uma vez que é uma imagem irrevogável do passado que arrisca desaparecer de cada presente, que não se reconhece significado nela.” Temos vários fragmentos nos quais Benjamin procura definir esse verdadeiro terminus technicus de sua concepção da história, mas, talvez, nenhum é tão claro como Ms., 474: “Não é que o passado lance sua luz sobre o presente, ou que o presente lance sua luz sobre o passado; a imagem é, antes, aquilo em que o passado vem convergir com o presente numa constelação. Enquanto a relação entre o então e o agora é puramente temporal (contínua), a relação do passado com o presente é dialética, por saltos” (Benjamin, 1974-1989, I, 1229).
Bild é, portanto, para Benjamin, tudo aquilo (objeto, obra de arte, texto, lembrança ou documento) em que um instante do passado e um instante do presente se unem numa constelação, no qual o presente deve saber se reconhecer significado no passado e este encontra no presente seu sentido e seu cumprimento. Mas nós já encontramos em Paulo uma similar constelação entre passado e futuro naquela que definimos como “relação tipológica”. Também aqui um momento do passado (Adão, a passagem pelo Mar Vermelho, o maná etc.) deve ser reconhecido como typos do agora messiânico – e, assim, como vimos, o kairós messiânico é precisamente essa relação. Mas por que Benjamin fala de Bild, “imagem”, e não de tipo ou figura (que é o termo da Vulgata)? Bem, dispomos de uma prova textual que nos permite falar, também nesse caso, de uma verdadeira citação sem aspas: Lutero traduz Rm 5, 14 (typos tou méllontos) por welcher ist ein Bild des der zukunfftig war (1 Cor 10, 6 é traduzido por Furbilde; e antítypos, em Heb 9, 24, por Genenbilde). De resto, também nessa tese Benjamin utiliza o espaçamento, mas o desloca para três palavras depois de Bild, a um termo que não parece ter nenhuma necessidade de ser sublinhado: das wahre Bild des Vergangenheit h u s c h t vorbei – que, naturalmente, pode também conter uma alusão a 1 Cor 7, 31: parágei gar to schēma tou kosmou toutou (“passa, de fato, a figura desse mundo”), da qual Benjamin talvez tirou a ideia de que a imagem do passado arrisca desaparecer para sempre se o presente não nele se reconhece.
Vocês se recordam que, nas cartas paulinas, o conceito de typos está estreitamente ligado ao de anakephalaíōsis, recapitulação, e que, junto com este, define o tempo messiânico. Também tal conceito está presente no texto benjaminiano numa posição particularmente significativa, isto é, no fim da última tese (que, depois de o Handexemplar ter sido encontrado, não é mais a décima oitava, mas a décima nona). Leiamos, então, a passagem em questão:
Die Jetztzeit, die als Modell der messianischen in einer ungeheuren Abbreviatur die Geschichte der ganzen Menschheit zusammenfasst, fällt haarscharf mit d e r Figur zusammen, die die Geschichte der Menschheit im Universum macht. (“A atualidade que, como modelo do tempo messiânico, reassume numa abreviação desmedida a história da humanidade inteira, coincide perfeitamente com a figura que a história da humanidade faz no universo”).

Jetztzeit
Algumas palavras, antes de mais nada, sobre o termo Jetztzeit. Num dos manuscritos das teses, o único manuscrito em sentido técnico, aquele de propriedade de Hannah Arendt, a palavra, no momento em que aparece pela primeira vez na tese XIV, está escrita entre aspas (como Benjamin escreve à mão, é impossível sperren). Isso tinha impulsionado o primeiro tradutor italiano das teses, Renato Solmi, a traduzir o termo por “tempo-agora”, o que é certamente arbitrário (uma vez que o termo alemão significa apenas “atualidade”) e, todavia, apreende algo da intenção benjaminiana. Depois de tudo o que dissemos no seminário sobre a expressão ho nyn kairós como designação técnica do tempo messiânico em Paulo, é impossível não notar a correspondência literal entre os dois termos (“o-de-agora-tempo”). Tanto mais porque, em alemão, a história recente do termo mostra que ele tem com frequência uma conotação negativa e anti-messiânica: tanto em Schopenhauer (“Ele – nosso tempo – chama a si mesmo por um nome que se deu sozinho, tão característico quanto eufemístico: Jetztzeit: sim, precisamente Jetztzeit, isto é: pensa-se apenas no agora e não se guarda para o tempo que vem e julga” Schopenhauer, 1963, 213-214), quanto em Heidegger (“chamamos Jetzt-Zeit o tempo mundano tal como ele aparece na utilização de um relógio que conta os “agora”... [no Jetzt-Zeit] a temporalidade extático-horizontal é sobreposta e nivelada”: Heidegger, 1972, 421-422). Benjamin inverte essa conotação negativa a fim de dar ao termo o mesmo caráter do paradigma do tempo messiânico que ho nyn kairós possui em Paulo.
Mas voltemos ao problema da recapitulação. A última frase da tese – o tempo messiânico como uma abreviação enorme de toda história – parece evidentemente retomar Efe 1, 10 (“todas as coisas se recapitulam no messias”). Mas também desta vez – se olharmos a tradução luterana – nos damos conta de que a retomada é, na realidade, uma citação sem aspas: alle ding zusamen verfasset würde in Christo. O mesmo verbo (zusammenfassen) corresponde nos dois casos ao anakephalaiōsasthai de Paulo.
Como provas internas de uma correspondência textual, e não apenas conceitual, entre as Teses e as Epístolas, esses indícios podem ser suficientes. Nessa perspectiva, todo o vocabulário das teses parece de cunho genuinamente paulino. E não espantará que o termo “redenção” (Erlösung) – um conceito absolutamente central para a concepção benjaminiana do conhecimento histórico – seja – obviamente – aquele pelo qual Lutero traduz o apolutrōsis de Paulo, que é do mesmo modo central nas Epístolas. Que tal conceito paulino seja de origem helenística (a libertação dos escravos pela divindade, de acordo com a sugestão de Deissmann), ou apenas judaica – ou, de modo mais provável, as duas coisas juntas –, em todo caso a orientação para o passado que caracteriza o messianismo benjaminiano tem o seu cânone em Paulo.
Mas existe igualmente um outro indício, exterior desta vez, que deixa inferir que mesmo Scholem estivesse a par dessa proximidade dos pensamentos de Benjamin e de Paulo. A atitude de Scholem em relação a Paulo – um autor que conhece muito bem e que uma vez definiu como “o exemplo mais eminente de misticismo revolucionário judaico” (Scholem, 1980, 20) – não é por certo desprovida de ambiguidade. A descoberta de inspiração paulina em certos aspectos das especulações messiânicas de seu amigo não podia ser para ele reconfortante, e estava certamente entre as coisas que não lhe teria agradado falar. No entanto, em um de seus livros há uma passagem em que – com a mesma cautela com que, no livro sobre Sabbatai Zevi estabelece uma relação entre Paulo e Nathan di Gaza – ele parece de fato sugerir, ainda que de modo crítico, que Benjamin pudesse ser  identificado com Paulo. É na sua interpretação de Agesilaus Santander, o enigmático fragmento composto por Benjamin, em Ibiza, em agosto de 1933. A interpretação de Scholem funda-se sobre a hipótese de que o nome Agesilaus Santander, pelo qual Benjamin parece referir a si mesmo no texto, é, na verdade, um anagrama de der Angelus Satanas. Se, como penso, vocês não se esqueceram da aparição desse ággelos sataná como um “espinho na carne”, em 2 Cor 12, 7, não se surpreenderão com o fato de que Scholem faça remissão precisamente a esta passagem de Paulo como possível fonte de Benjamin. A alusão é rápida e nunca mais repetida: mas, se se toma conta do fato de que tanto o fragmento de Benjamin como o texto de Paulo são fortemente autobiográficos, a hipótese implica que Scholem esteja sugerindo que o amigo, evocando a sua relação secreta com o anjo, pudesse de algum modo identificar-se com Paulo.
Em todo caso, creio que não se possa haver dúvidas de que – separadas entre si por quase dois mil anos e compostas numa situação de crise radical, as Epístolas e as Teses – esses dois célebres textos messiânicos da nossa tradição – formam uma constelação que, por alguma razão sobre a qual lhes convido a refletir, conhece precisamente hoje o momento de sua legibilidade. Das Jetzt der Leserbarkeit, o agora da legibilidade” (ou da “cognoscibilidade”, Erkennbarkeit), define um princípio hermenêutico genuinamente benjaminiano, que é o exato contrário do princípio corrente, segundo o qual qualquer obra pode ser a todo instante o objeto de uma interpretação infinita (infinita no duplo sentido: que nunca se exaure, e que é possível independentemente da sua situação histórico-temporal). O princípio benjaminiano supõe, ao contrário, que toda obra e todo texto contenham um índice histórico que não indica apenas seu pertencimento a uma determinada época, mas diz também que eles alcançam a legibilidade num determinado momento histórico. Somente nesse sentido, como está escrito numa nota em que Benjamin confiou sua extrema formulação messiânica, e que constitui, portanto, a melhor conclusão de nosso seminário:

“Cada agora é o agora de determinada cognoscibilidade [Jedes Jetzt ist das Jetzt einer bestimmten Erkennbarkeit]. A verdade é nele carregada de tempo até desaparecer em estilhaços. (Esse desaparecer em estilhaços, e nada mais, é a morte da Intentio, que coincide com o nascimento do autêntico tempo histórico, o tempo da verdade.) Não é que o passado lance sua luz sobre o presente ou o presente sua luz sobre o passado, mas imagem é aquilo em que o que foi se une num clarão com o agora numa constelação. Em outras palavras: imagem é a dialética em suspensão. Porque, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, aquela entre aquilo que foi e o agora é dialética: não temporal mas imaginal. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, não arcaicas. A imagem lida, isto é, a imagem no agora da cognoscibilidade, leva ao mais alto grau a marca daquele momento crítico e perigoso que está na base de toda leitura” (Benjamin, 1974-1989, V, 578). 


Giorgio Agamben. Il Tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani. Torino: Bollati Boringhieri, 2000. pp. 128-135. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Matthias Grünewald. Ressurreição de Cristo. 1515.  Musée d'Unterlinden, Colmar.

sábado, 13 de abril de 2013

Cristalização dos mistérios infantis




Para alguns, Pier Paolo Pasolini é sinônimo de provocação, de escândalo permanente; mas é também um exemplo de vívido empenho da inteligência e dos sentimentos. É difícil ignorar aquilo que diz Pasolini. E se, então, ele diz que o romance não lhe agrada mais e que prefere o cinema (Teorema, por exemplo) ou o teatro, certamente sua afirmação é bem motivada.

Personagem dos mais discutidos do milieu cultural italiano, Pasolini torna-se notícia toda vez que escreve poesias, romances, textos para o teatro, ou faz filmes. Suas opiniões, expressas sem ternura por nenhuma posição pré-constituída, acendem discussões que deixam um rastro, um traço. Em suma, parece que é preciso forçosamente encontrá-lo no cruzamento para o qual outros vão, mas ao qual ele chegou primeiro. Portanto, conhecer as opiniões desse personagem sobre uma realidade universal, que é Veneza, torna-se quase obrigatório.

A primeira pergunta que lhe fizemos sobre Veneza foi esta: "O que para o senhor representa esta cidade-ilha no plano da cultura e também dos sentimentos? Isto é, o que é Veneza?"

Pasolini, entre um voo e outro, num hotel de Mestre no dia seguinte à entrega do Prêmio All'Amelia, que a ele foi conferido por sua atividade cinematográfica, respondeu:

"O que representa para mim uma mureta divisória de hortos ou campos construídos antes da unidade da Itália, ou pouco depois, uma humilde mureta de pedras ou tijolos, com sua pequena porta ornamentada e seu arco, talvez, sob a sombra de carvalhos ou entre amoreiras? Digo, nada mais do que uma mureta? Representa, com o início de minha vida, o modelo de todos os meus valores. Se vejo uma delas destruída ou mesmo demolida, ou simplesmente abandonada e em ruínas, fico com o coração apertado de dor e de raiva: nada no mundo me enfurece mais do que algo do gênero. É uma ofensa que não posso perdoar. Veneza", explica o escritor, "é uma dessas muretas que, nas periferias das cidades ou, ainda, também nas pequenas cidades, são motivo de dor e de medo, objeto de uma ânsia contínua e impotente. O que será delas? E de toda nossa história?"

Uma pausa. "Quanto amor tenho por um velho tijolo, por uma velha pedra! E, quanto a Veneza, não ouso nem mesmo falar. Abandono esses sentimentos aos sonhos que, de fato, são terríveis. Na realidade, não tenho a coragem para me colocar o problema. Penso no abandono de certas casas no Lazio ou na Sicília... Bem, apenas para defender da destruição uma dessas casas digo que deveria ter a força, mística, de mudar a minha vida de rumo: dedicar-me a tal causa, como Gandhi à independência da Índia, ou Dolci ao renascimento de Partinico. São necessários protestos, privações, e, talvez, coquetéis molotov para defender a 'beleza antiga' de que Veneza é o símbolo."

O que o senhor pensa da literatura sobre Veneza?

Não gosto muito desse tipo de literatura - que, na minha ignorância, não ignoro - porque é completamente estetizante. Tudo aquilo que disse, com efeito, na resposta anterior, não deriva de um amor estético pela beleza.

O senhor pensa que Veneza, pelo que foi e pelo que conserva de si, possa constituir aquilo que é dito um valor cultural ou mesmo sentimental para quem a viu e para quem estudou sua história ou dela ouviu falar? Pessoalmente, como a considera?

Veneza é um valor, para mim. Um valor religioso laico enquanto cristalização do historicismo e racionalização dos mistérios infantis. Veja, Veneza é a história que me impede de ser um profeta objetivo, que, portanto, cega-me diante do futuro. Não me importa nada em relação aos filhos e aos descendentes. Que se arranjem. Eu tive a sorte de nascer numa civilização para a qual Veneza ainda não parecia arqueológica. Por isso também serei, em tese, capaz de matar (é a primeira vez em minha vida que digo isso, desde os tempos de Hitler) apenas para defendê-la de quem - por especulação ou desamor - a ameace. Desculpo-me se uso palavras pesadas, mas numa resposta curta e rápida não há outro modo de abrir caminho à verdade.

Qual e quando foi o seu primeiro encontro com Veneza?

Durante um passeio escolar, vestido de balilla[1], em 1929. 



[1] Balilla era a designação dada  às crianças de 8 a 14 anos inscritas nas escolas de formação durante o período fascista (N.T.)

Pier Paolo Pasolini. Cristalizzazione dei misteri infantili. in.: Saggi sulla Politica e sulla Società. A cura di Walter Siti e Silvia De Laude. Milano: Arnoldo Mondadori, 2012. pp. 1623-1625. [A entrevista foi originalmente publicada em "Il Gazzettino di Venezia", de 24 de maio de 1968.] (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
  

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Pequeno delírio em parágrafo IX


Certa vez, disse Borges: "A certeza de que tudo está escrito nos anula e nos transforma em fantasmas". O nada, a anulação, da vida está numa certeza, na certeza da inscrição. Quase como epigramas ambulantes, somos portadores de uma vida que se abisma, que se afunda, portanto, em mediocres certezas portadoras de sentido: as palavras. Passamos a vida tentando decifrar tais escrituras, mas já não sabemos ler. Nossos olhos, mais que janelas de algo com sentido, uma suposta alma, são um inócuo ponto esvaziado, um simples corredor de passagem ávido por luz, pela possibilidade de ler. Estamos perdidos em meio à catalogação da nossa espécie. Somos espécie, mercadoria, especiarias. Não nos resta outra saída, nem outra entrada. Somos o extravio do que chamamos nossos rostos, do que, à luz, dá-se a ver, dá-se a ler. Mas já não sabemos ler! E nenhuma luz é capaz de iluminar a escrivaninha-mundo. Somos livros abertos sem leitores; somos os fantasmas que não somos; somos e não somos: nada.

Imagem: Philip Jones Griffiths. Vítima civil, Vietnã. 1967. 

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Silêncio



este silêncio não é meditativo
não consola
não contempla
não apazigua
este silêncio é vazio
como são vazios os sentidos de tudo o que o cerca
oco opaco real

este silêncio não significa nada além de seu mutismo
imóvel, irredutível, neutro

poderoso silêncio de bombas atômicas e metralhadoras e carros
e da multidão apressada em Beijing    

silêncio, silêncio vasto silêncio do espaço-tempo vasto

mas,

o roçar da pele dela desperta meus tímpanos enrijecidos   

escuto.


imagem: Serge Marshennikov - Blue Roses - 2012  
http://serge-marshennikov.tumblr.com/

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Pequeno parágrafo sobre a imobilidade



"Ciego en la inmovilidad, como basalto dentro de basalto, / me poseyó el olvido. Este fue mi descanso. // Permanecí, permanecí, pero mi hábito es la retracción, la / retirada hacia una especie maternal. // Y la virtud de mis oídos se adelgazaba dentro del silencio." 

Imóvel num canto qualquer, possuído pelo esquecimento, lançava palavras para permanecer, para habitar o silêncio que as palavras carregam em si. Não há palavra que dilua minha imobilidade; vivo o silêncio, entretanto, sem descanso. Vozes outras acabam de dobrar a esquina e abraçam meu silêncio. Sem receio, sinto as vozes corar meu rosto, como se me envergonhasse de viver o silêncio de minhas palavras. Sem voz, espero sem esperanças pela minha Mnemosyne; sinto o presente como um presente do meu passado pois ele me é interdito (e que fique a ambiguidade). Havia alguém junto de mim? Havia alguma voz minha a me circundar? Havia algo além do silêncio? E com palavras tento em vão mover a máquina do mundo (que dançava sobre a cabeça do poeta); com elas tento menosprezar o silêncio que me faz basalto, como um tolo encantado pela beleza das vozes que carregam palavras. Nada diz o silêncio do mundo, e nada o tira do lugar. Está tudo aí: um lúgubre canto silencioso habitado por todos os eus e por nenhum deles ao mesmo tempo. Não há senão a confiança na desesperança. E todos eles e nenhum dizem-me adeus...

Imagem: Joseph Turner. Pescador no mar. 1796. Tate Gallery, London.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Do diário de Cândido



Ele supunha que escritura suspendesse o terror, que a cultura fosse algo além do abjeto, que a vida valeria o salto e o salto justificasse a vida. Ele supunha uma liberdade etérea de tundras e estepes e campos indômitos, que as cercanias fossem frágeis ao gesto de derrubá-las e não circunscrevessem o mundo. Supunha o amor despreendido da passante desconhecida baudelairiana, que os olhos desta não estivessem turvados pela indiferença e pela mesmice satisfeita. Supunha compreensão, não silêncio de burburinhos e algazarras, terror, terror, terror.

Imagem: Amazonian Field (1992) - Antony Gormley (CCBB - SP - 2012)