sábado, 30 de agosto de 2008

Anônimo (III)


Mas o que é este campo virtual e estilhaçado que chamamos linguagem? Será mesmo algo que exista como ato, configurado em estruturas palpáveis (mesmo que não totalmente lógicas nem sistemáticas), ou um mero pressuposto insubsistente que paira simplesmente pela acomodação dos tempos culturais? Não será o dizer (o enunciar) possível apenas nesta falha (ilusória) a ser sempre suturada em um tecido (inexistente)? Não precisamos dispor de mitos a todo instante para expor uma vida que pulsa irredutível a todo mito, e nisso torná-la anônima mas, simultaneamente, dotada de permanência? O que é a linguagem senão um nada que precisamos a todo momento mover, fazer falar, adquirir “vida” própria (que chega a simular uma presença independente dos atos concretos de sua produção e possibilidade), a ponto de produzir a grande estereotipia do léxico, da sintaxe e da gramática como um todo? A linguagem, este fantasmagórico e astucioso Golem causador de transtornos e deslumbres a seu criador. Nada.

Imagem. Henri Cartier-Bresson MEXICO. Popocatepetl volcano. 1963.

Anônimo (II)

Um dia, em um instante de insana lucidez, alguém ousou este salto (para fora do anonimato humano, lingüístico, gregário). Foi o precursor desavisado de inúmeras e variadas expedições de colonização. A brecha por onde este sujeito pulou é considerada uma das tantas dessimetrias (assimiláveis e posteriormente louvadas) do tecido. Ergueram, como culto à memória deste desconhecido, uma estátua. Tomaram-no por poeta, filósofo, inclusive “humanista”. Decoraram a fissura de seu pulo com tantos adornos e costuras que ela se tornou um cânone de escalagem (vigiada sob a patrulha de técnicos e assistentes especializados em percorrer e catalogar sinuosidades). Há tempos só resta o pó deste sujeito representado em pose solene na estátua. Ele não imaginava que causaria tanto burburinho, talvez ousasse uma travessia mais arriscada (ou mesmo permaneceria inerte) se pudesse antever o estranho espetáculo.
Contudo, o que os técnicos de escalagem, notáveis representantes do rebanho, célebres e festejados anônimos produzidos pelo discurso esquecem é que a matriz que eles buscam tanto preservar está crivada por buracos. Em todo canto é possível encontrá-los (mesmo que não sejam discerníveis a olho nu). Os especialistas em fissuras e escalagens são aqueles que têm maior dificuldade em encontrá-los, pois se resumem a catalogar e a conhecer profundamente os já existentes (ou quando não são movidos por simples má-fé ao preservar o “eternamente ontem” do já dado, ou medo de ver perdido seu reconhecimento anônimo como catalogador mor da rachadurazinha que a ninguém incomoda). Os demais estão muito preocupados em andar pelos caminho já conhecidos, seguros, onde se morre de forma quase imperceptível.
Porém, alguns solitários, extraviados, sentem náuseas e vertigens pela imensa instabilidade que a tudo circunda. Esta nau-sía (uma virtude marítima) é o supra-sumo da saúde. Foi movido por um asco parecido que o sujeito da estátua tentou evadir-se. Não foi extremo o bastante. Deixou muitas pistas e rastros atrás de si.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Anônimo


Anônimo é todo aquele que se propõe “orientar-se” nas assimetrias da linguagem. Pois a linguagem é formada por arestas, dobras, frestas, fraturas, declives. Virtualidade com topologias próprias, extratos, camadas superpostas (onde “meta-linguagem” e ”linguagem objeto” são indiscerníveis); uma geografia acidentada e distendida: simulando o infinito na condição de vetá-lo... Mares inóspitos - de liberdade - policialmente cerceados. Neles se localizam águas coaguladas (até mortas); de uso comum; paraísos; rotas de bucaneiros, salteadores e contrabandistas; zonas de leves marolas; correntes turbulentas e mortais. Porém, mesmo o mais “selvagem” destes espaços não deixa de ser desde sempre patrulhado; é preciso acima de tudo evitar o risco do nada (caos?) situado fora do universo linguageiro (mesmo os presságios e suposições sobre este não-lugar são arriscados): onde o aventureiro arrisca a se transmutar em lunático, enfeitiçado por sereias, opiômano ou lotófago, parvo, degredado da “comunidade dos homens” (convivendo e compartilhando da condição das bestas, animais, mitos e demais entidades inumanas). Odisseu quando nomeia a si mesmo “Ninguém” é aquele que, no limite, ainda preserva uma identidade de discurso e expõe o mais elementar (e portanto exemplar) estado desta instância: o anonimato.



Imagem The Collective Invention. René Magritte. 1933.