domingo, 30 de setembro de 2012

Pequeno parágrafo sobre o olhar II


Há alguém que me olha desde nenhum lugar. Mas sinto, sinto como nunca o toque de um olhar. E é doce, leve e repentinamente suave. Acho que chego a ver os olhos que desferem tal olhar. Suspeito serem eles arredios e, portanto, finjo não os ver. É só uma suspeição, pois não sei nem ao menos se estou sendo olhado. E as imagens giram com vagar. Já não sei mais se as chaves que outrora abriam as portas dos olhares são as mesmas que me deixam sentir o toque desses olhares. Tolo, inefavelmente tolo! Jamais houve chave! Só o silêncio surdo das imagens e dos toques de olhares que nunca percebi. Deito esperando passar o efeito do tóxico. Olho para a luz até sentir que já não sinto ver. Nada passa senão a percepção da passagem. O tempo, incrustado e ao mesmo tempo (como fugir dele?!) arredio, é intransigente. E sinto o instante do toque do olhar. Único, indelével, porém, inexistente. Cansado, deixo-me guiar por palavras cegas e, exausto, sinto que nada resta senão olhos em sonho que veem e sentem o que só espera por despertar...

Imagem: Agnolo Bronzino. São Mateus. 1525. Cappella Capponi, Santa Feliticà. Firenze.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Aseitas


"Aseitas", expressão escolástica que designa um ser que contém em si a razão de sua existência.

"Se deus não existe, tudo é permitido", objeta o niilista Ivan Karamazov. O chiste é de Lacan, respondendo: "Se deus existe, tudo é permitido". Todos os gestos humanos, com deus, perdem sua irredutível imanência, por assim dizer, deixam de ter significados intrínsecos. Matarei e estarei sujeito ao purgatório, ao juízo de deus, ao inferno... Se há uma expiação, mesmo assustadora, estamos salvos do absurdo, todos os gestos humanos poderão ser julgados a partir de uma escala infinitamente superior a eles mesmos, por mais que este tribunal seja imperscrutável, como o deus de Pascal. Mas é justamente por não existir deus, ou por ele ser absolutamente impotente diante da imanência humana (o grito desesperado do sacrificiado no lenho: "Eloi Eloi lama sabachthani?"), uma ética é possível. A ética é a dor da liberdade e, enquanto tal, nunca pode ser absoluta. Só há ética profana, gestos mortais e únicos, no ser-sem-Deus - imanência pura - do mundo.  

De um lado, o niilista militante (ou ressentido): se deus não existe, não há qualquer fundamento para os atos humanos, é o absurdo. Para Nietzsche, a face reativa do niilismo. Ainda aqui o absoluto divino, de forma negativa, é responsável por fundar um anômico plano terreno, o outro da dicotomia, o outro da Lei. A anomia, o pecado e a transgressão são resíduos da ideia de Lei.   

O difícil é pensar este mundo sem nada além, sem fundo (mas não infundado!), a pura semblância. Sem o juízo de deus e sem o abandono deste, sem Lei. O mundo de sonho, loucura, razões parciais, arte, delírio, fezes, sangue, o único que temos. Poderíamos viver, me agradaria viver, num mundo em que todos reconhecessem ser sem-deus, sabendo-se não autárquicos, e por isso comprometidos com a memória e com seus gestos únicos, com aquilo que deixarão, seus rastros, na pedra terrestre. Sentindo na carne a dor das singularidades perecíveis, do irrepetível, do irreparável. Aceitaria até mesmo um politeísmo mágico como nos tempos homéricos. 

Vivemos, porém, no tempo do mais estéril e desértico monoteísmo, o "Tu deves!" é a lei férrea de uma religião que já substituiu até mesmo a ideia cristã de deus. Impiedoso e mortal Mefistófoles, o deus da carnificina, da infernal repetição, do gozo e da irrestrita Lei mesmo às vésperas do fim do mundo: der Geist des Kapitalismus. 


Imagem: Bruegel, Cristo carregando a Cruz,1564; Kunsthistoriches Museum, Vienna

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Do diário de Lisboa (II)



"Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos. Para tornarmos imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar." Deleuze/Guatarri (Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. Ed. 34. p. 11). 

Por que a máscara nesta deriva virtual? As flanagens são as protagonistas, não somos nós, famintos eus, a caminhá-las. Elas nos atravessam, passeiam-nos. 


A beleza dos heterônimos de Pessoa está na criação de mundos pela linguagem. Isso pode parecer muito trivial. Mas Fernando acertou quando disse que Alberto, Álvaro, Ricardo ou Bernardo talvez fossem mais reais que ele mesmo. Visto em retrospectiva, Fernando também se metamorfoseou, na mágica da alquimia literária, em um simples nome. Da vida alguns nomes e insígnias permanecem, como estórias e fabulações. No mundo da linguagem, o menor e menos aparente de todos os entes (Górgias) e, de todos os artifícios humanos, o mais permanente, bem poderia ter sido Álvaro de Campos a sonhar com o escrivão Pessoa flanando entre o Chiado e o Campo de Ourique. 

Triste é saber que a memória da pessoa de carne e ossos, com suas manias, desejos, sonhos, pequenas mesquinharias, quartos de pensão, amores e amigos, é irrecuperável. Triste é saber que nenhum bibliógrafo, mesmo se pudesse recorrer a todas as fontes, conseguirá recuperar integralidade de um mero instante banal, nem uma conversa de boteco, daquele que efetivamente viveu. A literatura e a história sobrevivem, respectivamente, tão-somente dos excrementos do real: o engodo e o boato.   


Imagem: a mesa em que F.P., A.Caeiro, A. Campos escreveu(ram), em pé, os poemas d'O Guardador de Rebanhos - em uma noite febril - ou Tabacaria, no quarto alugado onde passou(ram) seus últimos dez anos de vida, no bairro Campo de Ourique. Jnf.   

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A pedra (glosa)


A sensação era a de estar em meio a zumbis, mortos-vivos impávidos. Era a visão de um movimento inversamente simétrico à evaporação das coisas em mercadoria: eram rostos rígidos e duros sem mais palavras, sem mais gestos, inóspitos como a face de um busto de uma praça qualquer. Faces que, naquele ônibus, materializavam o vazio. Era a pedra, caro Chico, era o efeito da pedra in concretu. E, pensando nisso, vejo que simplesmente não se trata mais de uma questão de consumo desenfreado do excessivo nada que sobeja à concretude da pedra, mas de acúmulo de nada em forma concreta: eram rostos, Chico!!! Eram rostos!!! Atônito, lembro de um trecho da Janela do Caos de Murilo Mendes: 

"A infância vem da eternidade.
Depois só a morte magnífica
- Destruição da mordaça:

E talvez já a tivesses entrevisto 
Quando brincavas com o pião
Ou quando desmontaste o besouro.

Entre duas eternidades
Balançam-se espantosas
Fome de amor e a música:
Rude doçura, 
Última passagem livre.

Só vemos o céu pelo avesso."

Se a imagem do céu nos vem pelo avesso, caro Chico, é pela mesma Janela cotidiana dos ônibus abarrotados que posso contemplar diretamente, no silêncio de qualquer passagem cerrada, o inferno. Mas talvez, caro Chico, a leveza que a todo instante parece insistir no concreto, na pedra, reste, tal como a fumaça da pedra, na forma do velho adágio latino post coitum animal triste. E, ainda um talvez, permaneça no meu silêncio um grito orgiástico que me faz capaz de suportar essas paisagens da janela...

Imagem: Jacques Henri Lartigue. Sobre o tema Louis Vuitton, fantasias de Jacques Henri Lartigue. 1978.

domingo, 9 de setembro de 2012

Diálogo da Morte com a Moda



MODA: Madame Morte, Madame Morte.
MORTE: Espere que seja a hora e virei sem que tu me chames.
MODA: Madame Morte.
MORTE: Vá com o diabo. Virei quando tu não quiseres.
MODA: Como se eu não fosse imortal.
MORTE: Imortal? Já é passado mais que o milésimo ano
que já terminaram os tempos dos imortais.
MODA: Também a Madame é petrarquista como se fosse um lírico italiano do Quinhentos ou do Oitocentos?
MORTE: Tenho muita estima pelas rimas de Petrarca, pois nelas encontro o meu triunfo e por que falam de mim por toda parte. Mas, em suma, caia fora.
MODA: Vá lá, pelo amor que tu tens pelos sete vícios capitais, pare um pouco e olhe-me.
MORTE: Olho-te.
MODA: Não me conheces?
MORTE: Deverias saber que tenho uma má visão e que não posso usar óculos, porque os ingleses não os fazem de modo a servir-me e, ainda que os façam, não teria onde apoiá-los.
MODA: Sou a Moda, tua irmã.
MORTE: Minha irmã?
MODA: Sim, não te lembras de que nós duas nascemos da Caducidade?
MORTE: O que posso recordar se sou inimiga da memória.
MODA: Mas eu me lembro bem e sei que tanto tu quanto eu muito nos esforçamos para desfazer e trasmutar continuamente as coisas aqui em baixo, ainda que tu vás por um caminho e eu por outro.
MORTE: Caso não fales com teu próprio pensamento ou com alguém que tu tenhas na garganta, levante mais a voz e articule melhor as palavras, pois se continuares a colocar as palavras entre os dentes com esta vozinha de taquara rachada irei compreendê-la amanhã, já que o ouvido, caso não saibas, serve-me tão mal quanto a vista. 
MODA: Ainda que sejas contrária aos bons costumes e que na França não seja habitual falar para ser ouvido, também por que somos irmãs e entre nós podemos não ter tantas formalidades, falarei como tu queres. Digo que a nossa natureza e uso comum é de renovar continuamente o mundo, mas tu desde o princípio te lançaste sobre as pessoas e o sangue; eu me contento no máximo com as barbas, os cabelos, as roupas, os bens domésticos, os palácios e coisas afins. É bem verdade que não me faltaram e não me faltam vários jogos comparáveis aos teus, como, por exemplo, agulhar por vezes orelhas, lábios e narizes, e rasgá-los com bugigangas que coloco nos buracos; queimar a carne dos homens com selos quentes que converto em marcas de beleza; deformar a cabeça das crianças com bandanas e outras engenhocas, impondo o hábito de que todos os homens do país tenham que ter a cabeça da mesma forma, como fiz na América e na Ásia; aleijar as pessoas com calçados pequenos; impedi-las de respirar e fazer com que os olhos lhes saltem para entrarem no corpete ajustado; e cem outras coisas desse gênero. E mais, genericamente falando, eu persuado e constranjo todos os senhores a suportar a cada dia mil fadigas e mil desconfortos, frequentemente dores e tormentos, e convido alguns a morrer gloriosamente pelo amor que têm por mim. Isso para não falar das dores de cabeça, dos resfriados, das fluxos de todo tipo, das cotidianas febres terçãs e quartãs que os homens recebem por obedecer-me, consentindo em tremer de frio ou em afogar-se de calor de acordo com o que quero, protegendo as costas com lãs e o peito com lona, fazendo qualquer coisa ao meu modo mesmo que seja com danos para eles.
MORTE: Em conclusão, eu acredito que sejas minha irmã e, se quiseres, tenho-a por mais certa que a morte sem que tu tenhas que me provar. Mas, estando assim quieta, eu desmaio; entrentanto, se te dá ânimo correr ao meu lado, tenhas cuidado para não cair, porque parto em fuga; correndo poderás falar de tuas necessidades; caso contrário, em consideração ao nosso parentesco, prometo-te, quando eu morrer, deixar todas as minhas coisas, e que tenhas um bom ano.
MODA: Se tivéssemos que correr juntas em competição, não sei quem de nós venceria a prova, pois se tu corres, eu o faço melhor do que se estivesse galopando; quanto a estar quieta em um só lugar, se tu desmaiares, eu me destruo. Assim que voltarmos a correr, e correndo como tu dizes, falaremos dos nossos casos.
MORTE: Em boa hora. Já que nasceste do corpo de minha mãe, seria conveniente que tu me ajudasse de algum modo a fazer as minhas coisas.
MODA: Eu já o fiz, no passado, mais do que pensas. Para começar, eu, que anulo e transtorno continuamente todos os hábitos, jamais permiti que se extinguisse a prática de morrer e, por isso, podes ver que tal uso dura universalmente até hoje desde o começo do mundo.
MORTE: Grande milagre que não fizeste aquilo que não pudeste fazer!
MODA: Como não pude? Tu demonstras não conhecer a potência da moda.
MORTE: Bem, bem, com relação a isso teremos tempo de discutir quando chegar o costume de não morrer. Mas, no meio tempo, gostaria que tu, como boa irmã, ajudasse-me a obter o contrário mais facilmente e mais rápido do que fiz até agora.
MODA: Já te contei a respeito de algumas obras que muito te beneficiam. Mas não são grandes coisas em relação à estas que te quero dizer agora. Algumas vezes, mais nesses últimos tempos, para favorecer-te, mandei cair em desuso e no esquecimento as fadigas e os exercícios que ajudam no bem-estar corporal, e introduzi ou coloquei em relevância incontáveis usos que recaem sobre o corpo de mil modos e encurtam a vida. Além disso, coloquei no mundo tais ordens e tais costumes que a própria vida, tanto em relação ao corpo como em relação à alma, é mais morta do que viva; tanto que este século pode ser chamado exatamente o século da morte. E enquanto antigamente tu não tinhas outras possessões que não covas e cavernas, onde no escuro semeavas ossaduras e poeiras, que são sementes que não dão frutos; agora tens o terreno ao sol e as pessoas que se movem e que andam por aí a pé; são coisas, pode-se dizer, de teu pleno direito, ainda que tu não as tiveste colhido desde que elas nasceram. Ainda mais, se antes eras odiada e insultada, hoje, por minha obra, as coisas se reduziram a termos que quem quer que tenha inteligência te prestigia e louva, antepondo-te à vida, e te quer tão bem que sempre te chama e te dirige os olhos como à sua maior esperança. Finalmente, porque via que muitos tinham a presunção de fazer-se imortais, isto é, de não morrer por completo, pois tinham a ideia de que uma boa parte de si não te cairia nas mãos, eu, sabendo que se tratava de bobagens e que quando estes ou outros vivessem na memória dos homens, viveriam, por assim dizer, de escárnio, sem gozar da sua fama mais do que se sofressem com a umidade da sepultura. De todo modo, compreendendo que esse negócio dos imortais te desagradava, pois parecia diminuir a honra e a reputação, acabei com esse hábito que busca a imortalidade, e também com o de concedê-la em caso de alguém que a merecesse. De modo que, no presente, estás segura de que, a quem quer que morra, não lhe resta nem mesmo uma migalha que não esteja morta e que lhe convém ser subitamente enterrada, como um pescado quando é tragado com uma só bocada, com cabeça, espinhas e todo o resto. Essas coisas, que não são poucas nem pequenas, as fiz por amor a ti, querendo engrandecer seu estado na terra, como aconteceu. E para esse efeito estou disposta a fazer todo dia cada vez mais; com essa intenção fui a tua procura, e parece-me apropriado que de agora em diante nós não nos separemos, pois estando sempre em companhia poderemos nos consultar ao mesmo tempo de acordo com o caso e tomar melhores decisões do que antes, como também executá-las da melhor maneira.
MORTE: Tu dizes a verdade e assim quero que façamos.

Giacomo Leopardi. Dialogo della Moda e della Morte. In.: Operette Morali. Milano: Rizzoli Editore, 1951. pp. 29-33. (A opereta foi escrita entre os dias 15 e 18 de fevereiro de 1824 e publicada em 1827) Tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko. 

Imagem: Giacomo Leopardi. 1820 - retrato de S. Ferrazzi.

sábado, 8 de setembro de 2012

Desertos de pó


Os estreitos caminhos do cemitério. E, novamente, o cemitério. Hoje me dou conta do quanto escrever é travar um combate com a morte, mesmo que nas imagens irônicas e imprecisas das caminhadas reflexivas, imediatamente reflexivas. Tomo meu tempo, tomo o tempo em que a morte suspende-se no espaço da vida. Pensava, por uma questão de métier, nas roupas dos mortos. Eles, os únicos homens verdadeiramente nus - já não há partilha do sensível dentro das tumbas -, sempre vão à morte por nós, supostamente vivos, preparados e bem vestidos, como se ainda estivessem na comutação do espaço do sensível. Escolhemos as paramentas mortuárias dos nossos sempre pensando em como nos marcaram, de algum modo, ainda em vida. É a imagem das impropriedades (e o que são as roupas senão a impraticável naturalidade do vivente que possui a linguagem?), que em nós deixaram as propriedades do morto que então preparamos, a guiar nossas lembranças, nossas memórias. Ao vestirmos nossos mortos para o sepultamento, procuramos encontrar o modo de, no efêmero momento de escolha dos panos que serão os acompanhantes eternos daquele que se vai, construir a figura, a imagem, da vida naquilo que é fora o receptáculo da vida mas que agora jaz à espera do encontro com o deserto de pó. Tentamos, a todo custo, construir uma imagem do eterno, um corpo para além das imagens, mas somos surpreendidos a cada instante pela traição do esquecimento. Montamos o filme da vida do ente que se vai (e que Pasolini me ouça), damos sentido à sua existência enquanto memória nos mortais (e que os velhos gregos me ouçam), mas somos ludibriados pela nossa mais própria possibilidade: somos animais mediais, somos a animalidade em estado puro, somos os bichos que contam histórias. No instante em que tentamos apreender um suposto nexo de sentidos para aquela existência que ali jaz e sai do nosso convívio (vestindo-a como pensamos ser seu modo mais próprio), enxergamos o vazio incolmatável que aquele corpo habitava muito antes da morte e que, como um espelho, mostra-nos que também nós, ainda vivos, somos desertos de pó, grãos de areia perdidos que em si já carregam toda morte possível. 

Imagem: Giovanni Bellini. Quatro Alegorias: Falsidade (ou sabedoria). 1490. Galleria dell'Accademia, Venezia.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Viver em Timisoara



        Para Giorgio Agamben, Timisoara representa a Auschwitz da era do espetáculo. Em 1989, esta cidade na região ocidental da Romênia foi o palco de manifestações populares contra o regime comunista de Nicolae Ceauşescu. As principais redes mundiais de notícias chegaram a afirmar a cifra de 60 a 70.000 mortos na insurreição, com corpos sendo despejados por caminhões de lixo em valas comuns.[1] Os veículos midiáticos - que naqueles dias se acotovelaram na cidade para cobrir os incidentes - mostraram, contudo, um massacre que nunca ocorreu. O que efetivamente se observou em 17 de dezembro de 1989 foi uma grandiloquente e macabra encenação. Ali foram retirados cadáveres de necrotérios e outros tantos exumados –todos de indigentes - posteriormente “submetidos” à tortura com o intuito de simular um genocídio perante as câmeras. O que milhares de telespectadores viam como uma verdade fática e incontestável, dirá Agamben, era a “não-verdade absoluta”, autenticada como informação verídica pela mídia mundial.[2]
Mas poderíamos elencar outros exemplos, recorrentes na imprensa cotidiana, desta paradoxal contre-vérité, ou mais ainda, da “não-verdade” espetacular.   
            No ano de 2008, um político brasileiro, ex-deputado estadual no Amazonas, de forma reflexa reproduziu a dialética da farsa exposta em Timisoara. Wallace Souza era parlamentar e âncora de um programa policial em Manaus. Após investigações feitas, descobriu-se que, ao mesmo tempo em que mantinha vínculos diretos com o crime organizado amazonense, Wallace encomendava o assassinato de traficantes e usários de drogas para apresentar tais crimes em seu programa. Ao contrário de Timisora, as vítimas e atrocidades cometidas eram reais. Sua prática, ao contrário, visava tão-somente atender a uma bestial e aterradora trama televisiva.[3] Uma verdade concreta e sórdida vinculada a um estratagema de “não-verdade absoluta”.  
            Em 2009, o diretor hollyoodiano de cinema Quentin Tarantino lança um polêmico blockbuster intitulado “Inglourious Basterds”. Ali, na cena capital do filme – uma mistura kitsch de apropriação sofisticada de técnicas da história cinematográfica para um enredo de estetização da violência crua (em um sentido manifestamente proto-fascista) – Tarantino faz uma paródia da aterradora tragédia de Oradour. A 10 de junho de 1944, a comuna francesa de Oradour-Sur-Glane foi tomada por uma facção da SS. Após delações de que ali haveria um foco da Resistência, todos os habitantes da cidade foram convocados à praça principal. Os homens de Oradour foram enviados para os celeiros e sumariamente mortos. Mulheres e crianças foram trancafiadas na igreja, ato seguido do mais cruel sadismo: soldados da SS incendiaram a capela, todos que tentassem fugir eram fuzilados. Os habitantes de Oradour foram praticamente dizimados e da cidade, completamente incendiada pelo esquadrão, só restaram ruínas.
            Na filmagem de Tarantino, a Capela de Oradour torna-se um pequeno cinema francês. Nela, ao invés dos mais vulneráveis habitantes da comuna, estão os principais dirigentes nazistas (Hitler e Goebbels inclusos). O gesto é idêntico, porém em polo oposto: o cinema é queimado e todos os nazistas que tentam escapar da morte nas chamas são metralhados. Neste momento da cena é possível constatar nos “bastardos caçadores de nazistas”, em posse das metralhadoras, uma expressão que denota prazer na realização do ato.
            Em “Bastardos Inglórios”, a verdade intolerável da Shoah é apresentada como uma mera contrafação cênica: do massacre de Oradour resta apenas um cenário teatral ajustado para causar o efeito de choque do anacronismo.
            Em 2010, um curto vídeo lançado no sítio virtual YouTube não deixou de causar, em meio à proliferação incontável e descartável das mais diversas produções midiáticas que são diariamente despejadas ali, uma grande polêmica. Em um filme de quatro minutos e meio, quatro jovens e um idoso dançam, numa coreografia simples e próxima da brincadeira, I Will Survive, de Gloria Gaynor, música de discoteca muito popular nos anos 80. O vídeo certamente passaria despercebido não fossem suas locações: Auschwitz, Dachau, o gueto de Lodz.
            Adolek Kohn, de 89 anos, o senhor que realiza a performance ao lado de filhos e netos, na qual veste uma camiseta branca com a insígnia “survivor”, foi um sobrevivente de Auschwitz. A ideia de criar e postar o vídeo na internet foi de sua filha, a artista plástica Jane Korman.[4] O vídeo – intitulado I Will Survive, Dancing in Auschwitz – é uma demonstração clara de como a verdade factual e o significado intrínseco desta podem ser vistos como meros acessórios (de estrita execution, performance) quando filtrados por dispositivos espetaculares que, nas últimas décadas, passam a assumir a centralidade no estabelecimento de um “entre” fantasmagórico – a prótese “comum” midiática - que paulatinamente devora os outrora hegemônicos espaços clássicos da política e da própria vida privada, remodelando-os de acordo com critérios que tendem, cada vez mais, ao nivelamento, à superposição arbitrária e ao efeito de massa puro e simples - efeitos estes que podem ser aferidos por uma mera tecla com o sugestivo nome “I like” nas redes sociais.   
Em ambos os eventos e contextos – Timisoara/Manaus/Oradour/Holywood -  a verdade do espetáculo contemporâneo em sua paradoxal desvinculação ou aridez histórica  é exposta em sua intolerável crueza. Ou seja, verdade e espetacularização da verdade tornam-se indiscerníveis, e o espectáculo passa a se legitimar tão-somente como espetáculo[5], onde, como na famosa boutade de Debord, a verdade passa a ser apenas um momento do que é falso.[6]
A busca por um espaço comum e político que não pretenda ser mera repetição reativa da linguagem transtornada da espetacularização passa, inevitavelmente, pela colocação em questão da linguagem mesma como esfera de relação humana privilegiada: o estatuto intrínseco da linguagem como espaço da verdade e da história, não como mero artefato de mediação comunicacional instrumentalizada e tecnicizada. Pensamento que não se dissocia de seu gesto e de sua imagem, que torna infrutífera e paródica a captura e a clivagem metafísica, operada pelo espectáculo tecnicizado contemporâneo, das estritas dimensões imagéticas da linguagem e sua estância – histórica - de verdade.


[1] Para uma análise detalhada do caso Timisoara, Cf. Ramonet, Ignácio. Televisão necrófila. In: A tirania da comunicação. (Trad. Lúcia Orth). Petrópolis: Vozes, 2010. pp. 98-100.     
[2] AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Turim: Bollatti Boringuieri, 1996. p. 66.
[3] Uma prática que se tornou corrente na chamada linha de filmes “Snuff”.
[4] Harazim, Dorrit. Bailar em Auschwitz. Revista Piauí, nº 47, agosto de 2010.      
[5] AGAMBEN, Giorgio. Mezza senza fine... p. 67.
[6] DEBORD. Guy. A sociedade do espetáculo. (Tese 9). A sociedade do espetáculo. (trad. Estela dos Santos Abreu). Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 16. 

Imagem: Bettmann/Corbis - Bozo, 1984. 

domingo, 2 de setembro de 2012

A pedra



História natural 

cobras cegas são noctívagas, 
o orangotango é profundamente solitário 
macacos também preferem o isolamento 
certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos
andorinhas copulam no voo 
o mundo não é o que pensamos 

Carlos Drummond de Andrade (Corpo. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1987.) 
                                                                                                                                                                    
A desertificação dos arredores da fazenda Jaguara, 
acossada em seu entorno por reis-fazendeiros e bichos-alimento 
tornando a voluptuosa e antiga morada de jaçanãs, seriemas, 
viuvinhas, corruíras-do-brejo e socozinhos 
um simples refúgio, pequena ilha de vida 
à sombra austera e monótona 
da morte azeitada pelas técnicas do lucro    
deixava triste o velho Drummond. 

Hoje não só a vida alada e o incógnito selvagem escasseiam, 
o tempo é de pedra 
da pedra-deserto, da pedra-crack, da pedra-pedra 
o gozo dos viciados em pedra deste mundo-pedra delirante 
não só dos famélicos homens-sombra moradores de viadutos 
mas as pedras alucinógenas do consumo vazio, do cotidiano condominial
do "site", da rede social e do jornalão domingueiro
das pequenas pedras diárias de fascismo narcotizante.

Mundo mundo vasto mundo 
não é não foi nem será o que pensamos 
mas tornaram-te pedra 
fumaram-te em cachimbos, em motores, em plástico, em concreto  
e ainda obsessivamente fumam seus resíduos tóxicos 
novas drogas além-pedra, drogas metafísicas 
estão por ser inventadas 
leio Drummond como o canto da suinara na fazenda crepuscular de seus últimos dias.  
Sonho com musgos. 


Imagem. Jnf 

Convencer


Como respirar se o ar se faz sólido?
Dormente espaço pulmonar domado pela astúcia dos ventos,
deite na exasperação de agora saber-se enxuto.
O lívido líquido-gasoso permanece fora.
A vida desmancha-se em sonhos
e só os ocos vasilhames que chamam a si mesmos de palavras
poderão dar alento à minha extenuante falta de ar.
Convencer é infrutífero, caro Walter,
mas é, para mim, o modo de permanecer vivo,
de saldar com peso concreto
a leveza do vagar por esta terra.

Imagem: Jacques Henri Lartigue. Minha prima Simone. 1913.