segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A pedra (glosa)


A sensação era a de estar em meio a zumbis, mortos-vivos impávidos. Era a visão de um movimento inversamente simétrico à evaporação das coisas em mercadoria: eram rostos rígidos e duros sem mais palavras, sem mais gestos, inóspitos como a face de um busto de uma praça qualquer. Faces que, naquele ônibus, materializavam o vazio. Era a pedra, caro Chico, era o efeito da pedra in concretu. E, pensando nisso, vejo que simplesmente não se trata mais de uma questão de consumo desenfreado do excessivo nada que sobeja à concretude da pedra, mas de acúmulo de nada em forma concreta: eram rostos, Chico!!! Eram rostos!!! Atônito, lembro de um trecho da Janela do Caos de Murilo Mendes: 

"A infância vem da eternidade.
Depois só a morte magnífica
- Destruição da mordaça:

E talvez já a tivesses entrevisto 
Quando brincavas com o pião
Ou quando desmontaste o besouro.

Entre duas eternidades
Balançam-se espantosas
Fome de amor e a música:
Rude doçura, 
Última passagem livre.

Só vemos o céu pelo avesso."

Se a imagem do céu nos vem pelo avesso, caro Chico, é pela mesma Janela cotidiana dos ônibus abarrotados que posso contemplar diretamente, no silêncio de qualquer passagem cerrada, o inferno. Mas talvez, caro Chico, a leveza que a todo instante parece insistir no concreto, na pedra, reste, tal como a fumaça da pedra, na forma do velho adágio latino post coitum animal triste. E, ainda um talvez, permaneça no meu silêncio um grito orgiástico que me faz capaz de suportar essas paisagens da janela...

Imagem: Jacques Henri Lartigue. Sobre o tema Louis Vuitton, fantasias de Jacques Henri Lartigue. 1978.

Um comentário:

J. disse...

obrigado pela glosa, excelente!