sexta-feira, 15 de maio de 2020

Modos colonizados de recepção filosófica - Notas a partir do caso Agamben


Jonnefer Barbosa[1]

Vinícius Nicastro Honesko[2]


A leitura selvagem de Marx feita por Deleuze aponta que o capitalismo, como modulação imanente de relações humanas, define-se muito mais por suas linhas de fuga do que por suas contradições internas, o que significa a expansão ad infinitum de suas fronteiras, atingindo em nosso tempo as próprias condições de manutenção da vida no planeta. A pandemia de 2020, longe de significar uma interrupção das dinâmicas do capital, como apostam certas análises bem-intencionadas, expressa aqui e agora uma potencialização de sua normatização e expropriação contínuas: as infraestruturas físicas sendo substituídas pela gestão algorítmica (das salas de aula aos consultórios), o abandono de milhões de “indesejáveis” à própria sorte, a calibragem da governamentalidade neoliberal com a assepsia do “sanitarismo cibernético”.

Se o mundo acadêmico já havia incorporado a gestão empresarial na forma dos currículos e da gestão de carreiras, da produtividade e dos ratings competitivos, as plataformas de videoconferências e salas virtuais transformam hoje a universidade em uma rede social virtualizada de uso obrigatório para professores e estudantes. Aulas e debates teóricos transmutam-se em “interações” e “conteúdos compartilhados”: a vida intelectual torna-se um imenso e babélico facebook.

Os alaridos a respeito do caso Agamben e suas repercussões no debate intelectual brasileiro só podem ser lidos sob tal pano de fundo. As notas escritas pelo filósofo italiano, por seu caráter contextual e episódico (uma pessoa de 78 anos em uma cidade sitiada), bem poderiam estar publicadas em algum pequeno jornal de Veneza. Como foram escritas por uma das principais referências intelectuais da filosofia recente – independentemente da opinião de seus detratores sobre tal posto – e lançadas em um site de internet, tais notas assumiram uma ressonância mundial e geraram os mais variados desentendimentos, lançando uma névoa formada por posts e acusações ao filósofo. Um fator sintomático das novas formas de registro cibernético, absolutamente distintas da forma-livro: embora controversas e escritas de última hora, a editora Quodlibet recebeu milhares de novos acessos em seu portal com tais publicações.

Os equívocos publicados nessas notas, perceptíveis para um público mais vasto além dos leitores habituais dos escritos agambenianos, foram devidamente explorados por críticas recentes, sérias ou com intuito de polêmica. Sobre estas últimas, não hesitaram em lançar interdições e suspeitas a pesquisas de mais de quarenta anos, baseando-se apenas nos breves parágrafos sobre a quarentena mundial. Se movidas por escassa leitura das obras de Agamben, má-fé intelectual ou mero ressentimento (ou pela conjunção dos três fatores), não podemos e tampouco desejamos averiguar. O que atestamos é que tal animosidade não expressa apenas um simples desacordo, mas pretende desacreditar um múltiplo conjunto de pesquisas que gravitam não apenas em torno da filosofia agambeniana, mas de autores e problemáticas suscitadas por esta, como muito bem analisou Sérgio Villalobos-Ruminott.[3] Essas constelações conceituais movem uma parte intensiva e potente não só do pensamento contemporâneo, mas de singulares e localizados movimentos estéticos, políticos e de resistência no presente, do movimento francês Claire Fontaine ao Conselho Noturno mexicano, para ficarmos apenas em dois exemplos.

As leituras que exploraram criticamente as contradições e estranhamentos suscitados pelas intervenções de Agamben, por sua vez, insistem em frisar, com certa razão, seu engessamento analítico (e muitas vezes a retomada de suas próprias conceitualizações de um modo julgado incompatível com as leituras de fôlego presentes nas obras, o “cover de si mesmo”), sua aparente desconsideração pelos mortos, convalescentes e familiares etc. Além disso, muitas vezes fica perceptível certa "frustração" de expectativas de leitores que esperavam, mais do que textos de ocasião, uma “correição moral" no pensamento do “mestre”. Muitas vezes essa espera mostra certa inadequação contextual: antes de tudo, um desconhecimento das nuanças dos debates italianos sobre a pandemia. Não só Agamben, mas um amplo conjunto da intelectualidade italiana, vinculada a múltiplos espectros da esquerda no país, têm criticado certos pontos das medidas governamentais de exceção no contexto do isolamento social: Donatella di Cesare, Raffaele Ventura, Elettra Stimilli, Massimo Cacciari, Piero Purich, para ficarmos com alguns nomes. Mas é suficiente abrir um jornal como Il Manifesto para percebermos que Agamben não expõe uma posição absolutamente solitária e excêntrica. Abstrair tais debates e o pano de fundo cultural e político italiano das intervenções recentes de Agamben não só cria equívocos interpretativos, mas uma arriscada tentativa de transplante imediato, por meio de um procedimento uniformizante, dessas análises contextuais para onde quer que seja.

Nesse sentido, poderíamos dizer que a polêmica engendrada pelas “postagens” de Giorgio Agamben nos circuitos acadêmicos da filosofia no Brasil é sobretudo reveladora do caráter não só provinciano, mas colonizado de seus modos de recepção e leitura da filosofia europeia. Nos departamentos de filosofia do Brasil, as filósofas ou filósofos são colocados na posição de intelectuais universais, dos quais são exigidas questões filosóficas universais ou de validade geral. Mesmo imbuído de uma metafísica ingênua, tal procedimento ainda seria justificado para o estudo de autores como Descartes, Leibniz ou Kant, mas traz problemas quando aplicados a textos atravessados por contextualidades e especificidades conceituais e teóricas. Parte considerável da filosofia acadêmica brasileira lê produções de filosofia política do séc. XXI usando as referências da ágora ateniense do séc. V a.C., não raro traindo em si os idealismos e utopismos que imputa a seus acusados.

Temos nós, por aqui, nossas materialidades, e não adianta esperar de Agamben, Nancy, Esposito, Negri, etc. que lidem com isso, sob pena de recairmos nos filosofemas dogmáticos – as igrejas acadêmicas secularizadas, com fiéis e disputas proselitistas por novos convertidos – ou nas acusações vazias e ressentidas, como se o “problema principal” se resolvesse em apenas encontrar abstratamente “a filosofia mais adequada para nosso tempo” (Villalobos-Ruminott), sem colocar em conflito a posição de quem lê e a inscrição mundana de quem teoriza.

Seria preciso ressaltar, todavia, que uma recepção crítica e minimamente cuidadosa pode, mesmo nessas contestadas notas agambenianas sobre a pandemia, perceber linhas temáticas e problemáticas passíveis de desdobramentos: a falência da dinâmica consensual das democracias contemporâneas; a produção de um dócil e obediente comportamento de massa cruzado com a hiperindividualização tecnificada; o quase inexorável ajuste dos dispositivos de poder durante a pandemia e seus desdobramentos que, como apontou Naomi Klein em recente texto no The Guardian,[4] já se insinuam – para não dizer que se exibem claramente – com suficiente evidência na perspectiva de um screen new deal.

Aliás, a partir disso podemos perceber como a animosidade das críticas nas “interações" e "compartilhamentos” da nova vida intelectual – bem-intencionadas ou polemizadoras – deixa insinuar seu próprio impasse: a benevolência com o teletrabalho e com o conjuntos de aparatos antropotécnicos que permitem à classe média acadêmica cumprir o mantra “fique em casa”. O discurso da “provisoriedade” da situação pandêmica ignora os evidentes rearranjos das Big Tech na nova organização capitalista, seja da educação ou na saúde, como aponta Klein (no contexto brasileiro, para ficarmos no âmbito da educação, lembremos dos acordos que muitas universidades já têm com a Microsoft, além, é claro, das propostas do governo no que diz respeito à EaD e afins). Em outras palavras, vale mais desqualificar – seja com as melhores intenções ou para ganhar “likes” e reputação online, como “players” de uma arena “gamificada” – um pensamento que se desviou ou que não atende a certos anseios morais, do que efetivamente postular problemas, a partir ou contra tais postulados, isto é, encarar a tarefa do pensar. No caso Agamben, talvez contrariá-lo naquilo que suas propostas soam ineptas (no Brasil, um mínimo de "estado de bem-estar” passou muito muito longe para que certas propostas europeias possam minimamente fazer sentido) e desdobrá-lo naquilo que suas reflexões carregam de potente: como colocamos os problemas a respeito da aceleração dos processos de um capitalismo de choque que está sempre cinco passos à frente nos arranjos das formas de vida contemporâneas, e que não se furta em retirar a máscara democrática para vestir a autocrática, ou embaralhá-las de forma irreversível? Como pensar tais problemáticas e seus desdobramentos num contexto como o brasileiro, em que a dinâmica da violência é capilarizada muito para além do “monopólio de seu uso" (e a ascensão miliciana é só mais uma nota na secular história de nossa hybris)?

O bolsonarismo – esse perverso neofascismo contemporâneo – também causa estragos não só ao “ecossistema” da vida cultural e intelectual brasileira, mas afeta a imaginação conceitual de parte de sua intelectualidade, transformada em máquina dicotômica infernal a ponto de se limitar, contra seus inimigos, à defesa intransigente de um mitológico “Estado de Direito” sustentado em decisões do Supremo Tribunal e na violência genocida das polícias. Uma intelectualidade carregada de boas intenções que, no intuito de neutralizar um genocida, está às vésperas de cair docilmente no colo de outro: o Massacre de Paraisópolis foi só mais uma das páginas recentes de um país em guerra civil, conflagrado nas ruas e nas redes sociais. Uma intelectualidade que se comove com os caixões da Lombardia e espera respostas oriundas da velha Europa, mas não consegue teorizar sobre as valas comuns dos bairros vizinhos de onde, confortavelmente “logada”, ainda vive e espera pelo desastre final.


[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCSP. Email: jfbarbosa@pucsp.br

[2] Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Email: viniciushonesko@gmail.com

[3] VILLALOBOS-RUMINOTT, Sergio. O affaire Agamben expandido. In: https://ficciondelarazon.org/2020/04/28/sergio-villalobos-ruminott-el-affaire-agamben-expandido/?fbclid=IwAR0HEENx1vAraxTPnpjF6JNaGBVswAEer4g3DX_a6G1TYXqKJ1jrI_cm4JA

[4] KLEIN, Naomi. How big tech plans to profit from the pandemic. In.: The Guardian, 13/05/2020. Disponível em: https://www.theguardian.com/news/2020/may/13/naomi-klein-how-big-tech-plans-to-profit-from-coronavirus-pandemic?CMP=share_btn_fb&fbclid=IwAR137HXQwctG5xg_QDwIdFvQAFzsSNwy5XuEGy3rsMwXvP7NyUFZtkXDQo4
 

Imagem: Marcelo Pogolotti. Joven intelectual. 1937. Museu de Bellas Artes de Cuba

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Sobre a técnica e a arte - Giorgio Agamben



Creio que seria útil partir de um simples dado linguístico, qual seja, que a palavra latina ars é a tradução do termo grego techne. Uma primeira consequência disso é que o termo arte aí é subtraído da esfera estética à qual a modernidade quis reduzi-lo e restituído à sua original amplitude semântica. Uma segunda consequência, então, é que o humano pode ser definido como o animal ou o vivente artista, isto é, como o vivente que em sua forma de vida está constante e essencialmente ocupado com uma pluralidade de práticas técnicas.

Nesse sentido, ele não se diferencia dos outros viventes que, cada um à sua maneira, também parecem ocupados com técnicas e hábitos vitais. Mas o que podemos dizer é que os humanos levaram essa característica própria do vivente mais adiante, enquanto expulsaram as técnicas vitais para além de seu próprio corpo, confiando-as a uma tradição exossomática e histórica que nos outros viventes está presente apenas numa medida reduzida. Daí a produção crescente de dispositivos e instrumentos técnicos em sentido estrito e a criação de um verdadeiro patrimônio exossomático que se coloca ao lado das capacidades endossomáticas do organismo. É a partir disso que se dá a legitimidade das concepções da técnica como uma projeção externa das funções orgânicas do corpo humano. Os instrumentos técnicos seriam apenas o desenvolvimento, em forma de prótese, de capacidades funcionais do organismo que são projetadas fora do corpo.

Assim, compreende-se por que não é fácil definir a técnica: ela é de tal forma parte integrante da vida humana, das práxis vitais do vivente artista que é o homem, que pensar a técnica é tão problemático quanto pensar a vida. Disso decorre que também pensar a vida é impossível sem pensar a técnica: a antropogênese e a tecnogênese parecem coincidir, e definir uma sem a outra parece impossível.

A partir dessa perspectiva, o que procurei pensar como “vida nua”, isto é, como uma vida que é separada de sua forma, talvez se torne mais claro caso seja pensada como uma vida separada não apenas de sua forma, mas também de sua técnica, de uma técnica definida como "arte da vida”. Também a confusão entre arte e vida que está na base da arte denominada contemporânea se torna evidente nessa perspectiva: ela é apenas uma tentativa inadequada e equivocada de pensar a coincidência de técnica e vida. Da mesma forma, a relação entre uma prática artística e a forma de vida que Foucault buscou pensar em A hermenêutica do sujeito é restituída a esse contexto problemático. É preciso pensar vida e técnica (arte) juntas, em seu co-pertencimento, como uso de si e ethos – mas, justamente, isso não é fácil.

Aqui, gostaria de brevemente evocar uma concepção da técnica que capta um aspecto essencial disso, para além daquele de projeção externa das funções orgânicas do corpo humano. Já nos anos vinte do século XX, Paul Alsberg mostrou de forma oportuna que o que na realidade acontece na projeção externa das funções dos órgãos corpóreos é que esses órgãos são progressivamente desativados em favor dos instrumentos artificiais que os substituem. O que distingue o homem dos animais é o assim chamado Ausschaltungprinzip, o princípio de desativação. Enquanto o animal adapta as próprias funções corpóreas às condições naturais, o homem as desativa para confiá-las a instrumentos artificiais. A cada processo exossomático corresponde assim um regresso das funções endossomáticas.

Utilizando-me de um conceito forjado por Gunther Anders, prefiro falar, a propósito disso, de um "desnível prometeico", isto é, de uma separação crescente entre o homem e o mundo de seus produtos, o que torna, em última análise, o homem incapaz de estar à altura das próprias produções técnicas e, portanto, de dominá-las. Podemos dizer que hoje esse desnível chegou ao ponto de máxima tensão. O homem como indivíduo endossomático, também pelo progressivo atrofiamento de suas capacidades internas, parece totalmente incapaz de assumir o controle da esfera exossomática dos produtos por ele criados. Dito de outra forma, a cultura humana parece ter sido de todo separada e tornada autônoma em relação à natureza humana.

Tentemos compreender como essa fratura se produziu. Ivan Illich mostrou como já entre os séculos XII e XIII se assiste a um autonomizar-se do instrumento em face da mão do homem. O que de início era apenas um prolongamento de uma função corpórea – por exemplo, o martelo ou a escova em relação à mão – destaca-se do corpo e adquire uma existência autônoma. A essa progressiva liberação do instrumento de seus vínculos corpóreos corresponde, nos filósofos e nos teólogos, a elaboração do conceito de causa instrumental, que não por acaso tem na teoria dos sacramentos seu lugar tópico. A descoberta da causa instrumental é a primeira tentativa de dar uma figura conceitual à tecnologia.

O que define a causa instrumental é o autonomizar-se do instrumento da causa final que o ligava ao corpo daquele que o usava. O que acontece é que certo objeto cessa de ser um instrumento para um fim a ele imanente e se transforma em uma função em si autônoma. A instrumentalidade dá lugar à funcionalidade. Assim, a caneta, que era instrumento para a escrita, torna-se agora o suporte de uma função-escrevibilidade, que pode ser realizada das mais diversas maneiras. O martelo, instrumento que a mão usa para bater, transforma-se na função-batedora, que se autonomiza da mão e pode assumir as mais variadas formas mecânicas. Isso é evidente nos sacramentos: a água, que tem a função de lavar, não sabe nada do apagamento do pecado que ela opera no batismo. A função de lavar ou purificadora da água adquire um estatuto autônomo e pode ser dirigida aos fins mais disparatados.

Podemos, assim, dizer que o que vemos é a transformação do uso em função. Não se usa um instrumento, mas se coloca sua função em operação. De um ponto de vista linguístico, que é sempre iluminador, isso corresponde à passagem do significado do verbo uti (em grego: Chresthai), acerca do qual me ocupei em O uso dos corpos, ao do verbo fungor. Enquanto uti honore, ocupar um cargo, exprime a relação que se tem consigo enquanto se exercita um cargo, munere fungi significa, pelo contrário, o puro exercício de uma função, sem relação com o sujeito. Assim, functa corpora, os corpos defuntos, são os corpos que cumpriram a função de viver, isto é, a vida não como uso, mas como uma função. A esse autonomizar-se da função em relação ao uso corresponde a diferença entre o gesto da mão que escreve e o apertar de um botão que coloca em função um dispositivo técnico. Proponho o uso do termo dispositivo e não instrumento para sublinhar essa passagem do uso à função.

Daí uma importante consequência: enquanto o uso do instrumento, uma vez que coloca integralmente em jogo um indivíduo em sua corporeidade, implica um ethos e uma forma de vida, a execução da função de um dispositivo parece – ao menos em aparência – não ter nenhuma consequência ética para o sujeito que nela está implicado. Na teoria dos sacramentos, essa indiferença ética se exprime na eficácia do sacramento opere operato, isto é, pelo puro exercício do ato sacramental, independentemente das qualidades do sujeito que o administra.

Se voltarmos agora ao nosso problema do desnível prometeico, compreenderemos como essa transformação do uso gerador de ethos em função neutral torna ainda mais árdua a tarefa de sair desse desnível. Podemos dizer que na modernidade essa tarefa foi confiada à consciência, isto é, a algo que por certo não é fácil definir, mas a respeito da qual podemos dizer que, na perspectiva que nos interessa, deveria se não dominar tal tarefa ao menos reduzir ou conter o desnível. De fato, vemos que isso não acontece, porque o que chamamos consciência é apenas, na realidade, o resultado da progressiva desativação das capacidades endossomáticas do organismo humano. Quanto mais a desativação aumenta por efeito da técnica mais hipertrófica se torna a consciência, a qual se transforma em um órgão que pretende controlar e gerir o patrimônio exossomático da humanidade, mas que não o pode fazer, porque na realidade está totalmente no interior desse patrimônio. O que aconteceu, com efeito, é que a consciência parece ter esquecido sua tarefa de sair do desnível prometeico para se tornar, pelo contrário, parte integrante do sistema tecnológico. A consciência poderia, de fato, sair do desnível apenas se se situasse decididamente nele, ou seja, se encontrasse seu lugar entre o endossomático e o exossomático, entre a natureza e a cultura.

Por isso, creio que não é a consciência que pode ser a resposta humana e política ao desnível prometeico, mas apenas uma filosofia restituída a seu lugar originário entre a natureza e a cultura. A filosofia se dá na não coincidência entre natureza e cultura, no hiato entre habilidades endossomáticas e capacidades exossomáticas e abre entre estas um terceiro espaço, que necessariamente terá a forma de um ethos e de uma forma-de-vida.

Com esse objetivo, ela não poderá deixar de afrontar o princípio de desativação das funções corporais que vimos definir o desenvolvimento tecnológico da espécie humana. Isto é, a filosofia deverá, por assim dizer, a cada vez "desativar a desativação", tornar inoperosa a inoperosidade das funções corpóreas não para substitui-las por outro dispositivo tecnológico, mas para delas fazer uso, ou seja, para abri-las a um uso político e poético.

O homem se mostra, nessa perspectiva, como o vivente que faz uso de suas ineptidões e o conceito de inoperosidade, que várias vezes buscamos definir, recebe um esclarecimento ulterior. Fazer uso da própria ineptidão significará, assim, regredir arqueologicamente ao momento da antropo-tecnogênese, mantendo a cada vez a técnica em uma relação política e poética com o corpo que a produz.

Será o caso de restituir à impotência sua potência, de transformar o “não poder usar” em um "poder não usar". As formas e as modalidades desse "poder não usar" e dessa relação com o corpo definirão, segundo os lugares e as ocasiões, a matéria da política e da arte que vem.
 
 
Original disponível em: 
 
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko
 
Imagem: Gruta de Chauvet.