quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Pequeno parágrafo sobre o íntimo



A A.F.

Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo
sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia
depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um
parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais
diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, desco-
bria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava 
impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o 
que fazer...
Herberto Helder 

Já se disse que "existe história precisamente porque nenhum legislador primitivo pôs as palavras em harmonia com as coisas". Mas o que querem das coisas as palavras? Ou, melhor dizendo, o que queremos nós, com palavras, das coisas? O nome muito estrangeiro de Amor difunde uma multiplicação de mãos em meio às noites, numa plantação de espelhos, refletindo nossas imagens bêbadas de mãos, suor, toques, risos, sons, cores. Corremos sem sono, numa dança que emoldura os espelhos, para dentro da noite. Nenhuma harmonia entre palavras e coisas, só um frouxo deleite em que ousamos contar histórias que nos indicam não um futuro, mas um devir, um porvir a nós de todo desconhecido, a nós completamente estrangeiro. Não dizemos nenhum nome ao apontarmos com nossos dedos em uníssono a noite escura que se avoluma. Acabamos por nos dar conta de que todos os lugares continuam sendo no estrangeiro e, ainda assim, estamos aqui, nesta plantação de espelhos onde deitamos fora nossas distâncias e chamamos um superlativo que diz interior intimo meo. Desenhamos então um nome, intimidade, o qual nos contém por completo mas que é incapaz de nos retirar do estrangeiro. E nenhum legislador primitivo pode harmonizar este prazer que se alonga entre palavras e coisas pois permanecemos na noite, na difusão das mãos que, mais do que nomear, tentam segurar esta coisa, de nome estrangeiro, sempre em fuga e que a nós se mostra, sorridente, de espelho em espelho. A coisa, ou seu nome, não podemos segurar nem nomear e, talvez por isso, também corremos nós soltos, felizes, com um gosto doce na boca, neste desconhecido campo onde nos vemos per speculum et aenigmate, mas, ao mesmo tempo, sub specie aeternitatis. 

Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madrid.

 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Teses hermético-caosmológicas II


Ausências eram recordações soltas pela casa... e talvez isso que do Cortázar estava já há muito no campo dos esquecidos tenha aparecido com a canção dos mortos. Araucárias, grilos e cigarras arrancam às vozes soltas pelo vento suas verdades nuas: são muito mais os mortos que os vivos. E mesmo a lástima de trombar em silêncio com essas recordações já não diz nada a não ser: são muito mais os mortos que os vivos. God is in the radio, dizia-me uma outra voz. Nenhum espaço pode ser comum se as ausências são detentoras de nosso silêncio. Com elas, que já andam soltas desde há muito, pensei que havia esquecido os diários de Alejandra Pizarnik que tanto gostaria de ter lido nos dias de espectro: "A veces necesito ausentarme"... ausentar-se para estar tão em si mesma para que o prazer dessa abstração seja o da evasão, poderia ter ela me dito embaixo de uma dessas araucárias. E talvez o Cortázar que há pouco surgira do esquecido seja o que escrevia para Pizarnik. Ou não. Decerto era Pizarnik escrevendo a Cortázar? Excessos. "Me excedí, supongo. Y he perdido, viejo amigo de tu vieja Alejandra que tiene miedo de todo salvo (ahora, ¡Oh, Julio!) de la locura y de la muerte." Nem da loucura nem da morte, velha amiga Alejandra. Você mesma disse que a vida é uma espécie de complô, não? E, agora, são muito mais os mortos que os vivos. Eles não dizem nada mas me ensurdecem. Deito em um tempo de excessos também eu, Pizarnik, mas não sei se me evado. Já não há distâncias entre os delírios calmos de uma manhã e aqueles criados por paraísos artificiais. E mais uma vez alguém me grita que God is in the radio. E me pergunto: mas poderia escrever a quem quer que seja? Poderia pensar todas as cartas que já escrevi como mapas de lugares onde dificilmente podemos chegar sozinhos? E como voltar desse lapso em que me esqueço de que há muito mais mortos que vivos? 


Imagem: Paul Gauguin. Visão depois do sermão (Jacob Wrestling com o Anjo). 1888. National Gallery of Scotland, Edinburgh.