domingo, 28 de agosto de 2011

Detalhes


São sempre detalhes. Deus está nos detalhes, dizia Aby Warburg. Pequenas pontas de um bordado cuja fazenda não mais encontramos, o reflexo inadvertido do sol numa janela qualquer de uma casa qualquer que fora capturado pela fotografia mais disparatada, as folhas de uma árvore que, amareladas pelo outono, acabam de cair aos meus pés, a ponta ainda acesa de um cigarro jogado por aquela linda moça que todos os dias passava ao lado da minha casa sem nunca volver os olhos para mim, o crepitar dos galhos secos nos quais pisava naqueles passeios invernais pelos campos brancos de geada, o barulho da ebulição do café na cafeteira italiana na qual preparava as horas das tardes comuns, o olhar perdido de alguém próximo que jazia lentamente corroído pelo tumor, as fracas palavras quase que sopradas pelos pulmões já cansados daquela senhora que tanto lutava pela vida que se esvaia, o cheiro quente de pão fresco que amalgamava pessoas e sonhos, o leve ronronar de um gato à espera de afago...
Lancinantes, essas imagens rompem hoje a crosta do tempo em que se cristalizaram e invadem minha sala com passo furtivo, com cuidados excessivos e como que a esperar um abraço meu. Tomo pelas mãos minhas imagens passadas e as coloco numa ciranda, deixando corar o menino que em mim ainda nelas acredita piamente, como antes acreditava ser a vassoura o veloz cavalo a guiar-lhe por pradarias infindáveis. Encosto-me naquele muro branco chapiscado de concreto, para o qual olhei pouco antes de tentar o primeiro suicídio falho. Quem sabe não acendo um cigarro para tentar ver na fumaça as imagens rodopiarem comigo, ainda menino, ao centro. Abaixo-me, ainda encostado no muro, deixo as mãos das imagens para pegar aquela caixa de lápis de cor e suas trinta e seis cores com as quais ainda queria pintar a imaginação. Assombrado, percebo que soltar a mão das imagens é como começar a perder a curiosidade pelos detalhes. Corro, grito, chamo-as novamente, mas parece que é tarde, parece que sempre fiz tudo tarde demais. E, como naquela pequena ilha de onde havia lançado minhas passagens para algum lugar que não me lembro ao mar, tentei ao menos acenar-lhes com meu lenço já úmido de lágrimas, mas estavam longe demais e, talvez, não tenham nem ao menos me notado. Aliás, isso era apenas um detalhe.

Imagem: Sergio Larrain. Chile. A casa de "Isla Negra". 1957.

sábado, 27 de agosto de 2011

Delírio saturnino


Uma vez ajudei a criar um corpo. Era algo que daria inveja a Mary Shelley. Se ela pudesse ver minha criação (que tinha sido em conjunto, é claro... nem mesmo o deus judaico-cristão criou algo sozinho: "Façamos o homem à nossa imagem...") teria ficado surpresa com o corpo sem órgãos que havia (havíamos) criado. A morte tinha trazido, em forma de pedaços, os elementos mais vitais para a construção daquele espectro que me perseguiria desde a sua criação. A morte, a coisa da morte, a morte. Os suicidas são frágeis espectros da vida para quem a morte parece ser a mais pura concretude. Ingênuos - não inocentes - pensam que a beatitude está em "not to be", como se a vida fosse um "to be". Esquecem-se que "to be or not to be" é apenas uma questão principesca, não afeita às regularidades da vida massificada dos nossos dias.
Lembro das minhas lições de hebraico. Língua sorrateira em que o verbo "ser" esconde-se no presente. "Eu sou", a frase judaico-cristã por excelência, não existe. É tão somente "Ani", "eu". Presente do indicativo para o verbo ser em hebraico é como os pedaços de corpo com os quais montei (montamos) meu (nosso) espectro. A morte, a coisa da morte. O poetinha mineiro Murilo Mendes certa vez, mesmo com seu catolicismo viciado, quis dizer coisas sobre a coisa da morte. E o disse justamente na Parábola: "Coisas, e a morte que existe nelas, / Experiência de desconsolo e de fatalidade / Para as pálpebras que voltaram do amanhã: / Coisas do cristal e do pêssego, / Vacilações da onda fria do veludo; / Coisas sem ângulos e sem vértice / Que no mesmo dia nascem e morrem". Informe, sem ângulo e sem vértice era o corpo por mim (por nós) criado. Sem cantos, sem encantos, o cadáver vivo era agora um ser: "To be", gritava a morte. Em tudo já estava gravado o "not to be", no entanto. Ingenuidade do criador diante do seu criado.
Tudo nada significa. É como se o cadáver vivo por mim criado (por nós criado) pudesse dizer respeito às coisas que são suas sem que estas digam respeito às coisas que são minhas (são nossas). A coisa, as coisas, são sempre artefatos da morte. Sonhamos nossa própria inexistência, algo que não podemos experienciar, algo que é sempre um lugar "coisal", um algo e ao mesmo tempo nada, diria Furio Jesi. A vida do cadáver por mim (por nós) elevado dos mortos falava sobre inquietudes de outrem, sobre enigmas da existência (e, se existimos, somos? Pobres metafísicos...), sobre as demandas de um estar. Não, não! "Ani", e basta! Desde os princípios, linguisticamente, o hebraico (que não falamos) é propício para seu intérprete (seu interlocutor) austro-húngaro (aquele que queria todo homem deitado num divã). Ego, ego, ego... Lembro-me de quando ouvi essa tríplice afirmação (que para mim só poderia ecoar como levedos da trindade, como - o que não entenderás - pungente afirmativa crédula num socorro metafísico, como se as maldições três vezes repetidas ainda fossem válidas) e da minha (da nossa?) surpresa. Era como se o cadáver vivo, que ali jazia, à nossa (?) frente, começasse a nos oferecer de volta as partes com as quais o havíamos (?) montado, como se quisesse voltar à morte (da qual, aliás, talvez nunca deveríamos tê-lo tirado).
É curioso como esse repique de vida e morte, de suicídio e ressurreição, aparece num instante em que sinto (sentimos?) quase que plenamente a sensação de finitude. Loucura minha? Talvez nossa? Não sei, não sei... talvez "to be or not to be" seja sempre a questão; talvez, se é que endereço meu texto para além deste devaneio que sou eu mesmo ("ani"?), "sejamos" ou "estejamos" num lapso da existência, justamente num daqueles instantes em que o "or" transforma-se em "and", num daqueles lapsos da grande mente divina em que a biblioteca de nossas existências (?) desmancha-se num grande fogo, em que possível e impossível não sejam mais do que opções e no qual amar possa ser um verbo intransitivo...

Imagem: Max Ernst. O beijo. 1927. Peggy Guggenheim Collection, Venezia.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Um céu


Úmido e viscoso, o céu poroso,
onde antes mergulhávamos em deleite
à procura das seivas de nossas constelações,
desfaz-se em desatino.
As gárgulas que cantam silenciosamente,
as naves que se centram no nada.
Longe do aconchego e dos gozos,
o céu desce de si e esbarra em muros,
porosos muros onde musgos crescem,
constelações perecem e amores fenecem.
Eram templos, traçados, espaços vazios
nos quais de mãos dadas entrávamos.
Era o céu o oceano em que navegávamos,
onde hoje afundam as estrelas cantadas
pelas gárgulas do velho mundo.
Mas não, não afunde meu mundo,
porque nele o céu não há,
senão em desatino.

Imagem: Mark Power. França. Port-en-Bessin-Huppain. 1995.

sábado, 20 de agosto de 2011

Sobre a saída


Comecei a escrever há tempos. O texto seria sobre o cheiro dos caules úmidos das cerejeiras, o frio, o cinza, o dia nublado, os barulhos matinais, a manhã nascida e morta no mesmo instante. Mas não consegui. Era um rumor, um murmúrio de morte que ecoava nas minhas letras. O instante era propício, mas o perdi. Uma confusão mnemônica me fazia crer que deveria escrever sobre coisas que vi, ouvi e senti durante uma caminhada matinal. Ledo engano... a vontade era de reavivar cadáveres, de suspirar mais uma vez por chamas que já se extinguiram. Como as cartas da mãe de Luís, personagem de Cortázar (aliás, por que não lia Cortázar antes?), que atordoavam o filho em Paris, parecia que hoje estava recebendo a todo instante cartas inesperadas de personagens que por minha vida (a ficcional) passaram. Sabia, desde cedo, que a substituição da propaganda de biquinis (ah... a moça do outdoor, tão linda e que me fazia lembrar de um amor perdido...) por uma de relógios não era despropositada. Era Chronos, o deus do tempo, da roda temporal que agora estava ali, presente naquelas esferas que cretinamente tomavam o lugar da bela moça. Ingênuo, não conseguia ver que tudo, moça e relógios, não diziam nada do amor e do tempo, mas tão somente das mercadorias em que haviam se transformado amor e tempo nos nossos dias.
O vazio vulgar das mercadorias, sua pura figuração num panteão dos deuses da técnica, não tinha sido algo por mim notado no correr da vida. Ingênuo, tolo... porém jamais inocente. Qualquer inocência já está condenada. Era esse o pensamento dos últimos dias e meses. Não tinha como me esquivar das inquietações que os relógios no outdoor me causavam. Pensei, pensei muito sobre a out door, sobre a saída, a exit. Curioso como na língua inglesa a coisa do fora, a ex it, toma o lugar de um caminho de saída. Sair de algo, sair da coisa, ex it. Mas, para mim - não assumindo um circuito heideggeriano -, o que era a coisa? Talvez não houvesse resposta, mas as elucubrações não poderiam ser impedidas de sair de mim naquela caminhada em que, agora sim, sentia o perfume dos caules úmidos das cerejeiras.
Caminhava com Mark Sandman a cantar sobre a noite (canção velha e conhecida dos meus dias nublados) e sobre a memória. Uma lembrança que cabia num bolso, uma lembrança de lugar nenhum, uma lembrança de nada (uma lembrança do agora, portanto). E talvez fosse a claridade com que via o passado que me assombrava, que me dizia também com clareza que o agora era uma mentira. Aliás, nada diz o agora, nem o agora que é nada. Tudo era uma questão de exit. Como sair do jogo mnemônico? Como não me deixar guiar pela rotação dos ponteiros imóveis daqueles relógios do outdoor? Como não pensar que ali estava a figura dos biquinis cortininha na moça cuja feição me acalentava a memória? Enfim, tudo era uma questão de sair, de descortinar as impressões forjadas nas esferas protetivas da memória.
Kronos, não o tempo, o titã, mastigava os filhos por medo, por não conseguir encarar seu fim. Para os romanos era Saturno, quem, aliás, representa a forma da melancolia. Debruçar-se sobre a própria fragilidade, prostrar-se e negar-se ao movimento, deixar-se cooptar pelo corrosivo ciclo de Chronos. Melancólico é o próprio deixar-se impressionar por aquelas esferas que tentam apreender o tempo ao quantificá-lo. E eis que a saída, a coisa do fora, torna-se então um empenho que deve tomar-me, que, na ebriedade na qual agora escrevo, pode ser o nada do agora que é nada. Sem tentar jogar com os termos dessa impressão matinal que se reflete como memória de um dia numa mente entorpecida, num devaneio, vejo como Blanchot tentava pensar o fora e, sem rodeios, vejo como o exit é inóspito e, às vezes, um atrativo. Porém, como fazer do atrativo não somente um atrativo - uma espécie de fuga -, mas um meio de viver? Não, meu caro, não meu caro, não há um fora acalentador, como o cantinho iluminado pelo abajur onde há pouco terminava de ler o seu Cortázar, mas somente o deserto onde temos que resistir e, nesse resistir, construir algo ao qual possamos chamar vida.


Imagem: Francisco Goya. Saturno devorando um de seus filhos. 1819-23, Museo del Prado, Madrid.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Pequeno parágrafo sobre a exposição


É fato que até o melhor dos gostos, até o mais doce dos néctares, até a mais sublime das refeições, tudo isso que à mesa exala os melhores aromas, que aguça até o mais insensível dos olfatos, uma vez organizado - absorvido por um organismo -, torna-se matéria amorfa e fétida, vira refugo, o que é expelido, excremento, o que é execrável. Do gosto do início não restam nas papilas nada mais que a saudade do gosto e, nas narinas, a saudade do aroma. Tudo isso acompanhado pela imagem daquilo que se expunha diante dos olhos, imagem que já gerava na boca o salivar, a produção dos líquidos digestivos, o início do fim antes do início do começo. Todo organismo, todo órgão, é contra o próprio corpo, é, antes, o pré-anúncio do fim do corpo, é o começo do ex antes da deglutição, antes do in. O fim é desde o início; o fim inicia-se com o início, e os sabores que sobrevivem na boca não são senão espectros do início que aconteceu concomitantemente ao fim; o excremento é o fim, entretanto, que já acompanha o começo (e talvez nossas desilusões sejam apenas a ingenuidade de acreditar naquele gosto incrível do início como se ele fosse perene, infinito). Somos seres lançados ao mundo, seres que, saídos das cavernas uterinas de nossas mães, não são inseridos num mundo, mas lançados para fora do aconchego, ex-postos ao mundo, des-organizados. Somos o fim de um processo de fecundação, a corporificação (não a organização) de um desejo (desejo não se organiza...) que não nos pertence, a pura exposição ao vazio que nos circunda após nove meses de constante irrigação e plenitude. Não nos é dada a felicidade eterna, nem a in-felicidade eterna. Felizes somos ao tentar sacar o viver dos presságios, dos fins corrosivos que já acompanham a delícia dos gostos e aromas. Eis talvez uma tarefa quase impossível, porém, a única que talvez reste, a única que talvez seja capaz de dar à nossa exposta condição o gosto bittersweet de nossa ex-istência.

Imagem: George Stubbs. Man, 1800. British Museum, Londres.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Pequeno parágrafo sobre o olhar


Mergulhar em olhos penetrantes respirando o escasso ar de um momento em que imagens, mais do que corpos, tocam-se num espaço irreal, porém, palpável. Eram olhos cujas íris, ritmadas pelo pulsar das pupilas, mostravam-se como caleidoscópios cintilantes em movimentos que me embaraçavam e me faziam titubear à espera do próximo piscar. Instantes efêmeros nos quais a agonia do fim era também a espera por um novo começo. A cada piscar, o caleidoscópio girava no ritmo das pupilas. A pouca e pálida luz do abajur era, mais do que iluminação, trilha sonora ao caleidoscópico giro em que me perdia. Sempre adorei abajures e suas condições de acalentadores de cantos. Ali, naqueles olhos, a luz de abajur era a guia de Íris e, por consequência, dos meus devaneios. Um lance de sorte, somente um lance de sorte e nada mais: eis a concepção mais precisa do instante impreciso em que olhos se perdem uns nos outros. Olhares nada mais são do que a troca de imprecisões das máquinas de iludir que são nossas íris. Pensamos que elas são apenas o mais bonito dos músculos, cuja função é controlar a luz para que possamos ver com clareza. Tolos, não nos damos conta de que ela é o espectro por excelência, de que é a responsável pelas ligações entre o céu e a terra, a vigília e o sono, os ínferos e os deuses. Diante da sua beleza os homens tentaram constituir alianças infinitas, acreditaram na eternidade e em promessas divinas, porém, como que iludidos, esqueceram-se de que infindáveis são suas imagens, mas ínfimos os segundos em que nelas, íris, podem se perder.

Imagem: Pierre-Narcisse Guérin. Morfeu e Iris. 1811. Museu do Hermitage, São Petersburgo.

Animismo



Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas nalgum ser inferior, num animal, num vegetal, uma coisa inanimada, efetivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos sucede passar por perto da árvore entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto. Liberadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco. É assim com nosso passado, trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Ele está oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria este objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.


PROUST, Marcel. No caminho de Swann. (Tradução Mário Quintana). 3ª Ed. São Paulo: Globo, 2006. p. 70. Imagem: Picasso. Wounded bird and cat. 1939.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Excerto sobre o mundo artístico



O mundo artístico é muito complexo, diletante, imprevisível, também por sua ligação estreita com a fama e o dinheiro. Um mundo peculiar, que por vezes se parece com o mundo dos proxenetas. Os intermediários transformam em dinheiro a paixão pela arte, seja a de quem produz, seja a de quem compra. Compra-se (vende-se) parte da poesia, da alma, da inteligência de uma pessoa. As relações sociais e financeiras tornam-se complicadas e difíceis. A amizade entre galerista e pintor é muitas vezes a mesma que há entre o crocodilo e a cegonha do poema de Kipling. A pintura é uma coisa sagrada que se põe à venda. É como vender ossos de santos, relíquias...
Tenho um pequeno desenho de Klee no qual, observando com atenção, pode se ver um pelo ou fio de cabelo de Klee, talvez do bigode ou da sobrancelha, não dá para saber direito, colado à tinta desde quando ela ainda era líquida. E assim também eu tenho a minha relíquia: um pelo de Klee.

Saul Steinberg. Reflexos e Sombras. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011. Trad.: Samuel Titan Jr. p. 164.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Fraude



"Viajo para conhecer minha geografia" escreveu certa vez um interno de um manicômio francês. E foi pensando um pouco nisso que comecei esta noite de insônia. Uma fraude, uma falsificação do que era a sensação do sono, já que era impotente para dormir. No entanto, a referência à frase do maníaco não podia me passar em branco. Ao contrário do que muitas vezes alguns dicionários de etimologia trazem, a mania, essa invenção platônica, é a expulsão gradativa da menis (a ira, o furor que aos heróis guerreiros provinha dos deuses) dos carismas gregos, e não algo a estes ligado em sentido negativo (rumo que acabou tomando nas nossas concepções atuais).
Em certo sentido, na cidade grega, a menis foi domesticada como thymos, a coragem cidadã a partir da qual a estima pelo outro e a amizade poderiam surgir num, digamos, olho no olho, num respeito por si e pelo próximo. Entretanto, nem menis, nem thymos parecem ter qualquer sentido nas horas contemporâneas. Aliás, nem mesmo a mania de olhar para as ideias, à qual se deu o nome de filosofia, parece significar algo. Hoje, tal como meu sono esvaído em insônia, um olho no olho é também uma impossibilidade (salvo os refúgios que, por sorte, ainda são possíveis em alguns olhares), já que, mais do que tudo, o que conta é a impostura, a fraude de si criada para si e para o outro. Tudo isso como uma mania de engrandecer-se diante do outro, de forjar a fraude de si (e a figura do olho no olho pode ser completada com os óculos de sol).
Nesta noite (ainda estou nela) em que a frase do maníaco francês me vem justamente nas horas incertas nas quais me sentia fraudado em meu sono, acabo começando uma viagem. Entretanto, não quero a mania da procura infindável pela minha geografia (mapear é querer conhecer um local, mas, no meu caso, só quero por ele passear), mas descobrir certos recônditos cantos em que ainda encontro certa ira (ou mesmo, certo thymos). Mas, com a fraude (essa mesquinha incapacidade de olhar nos olhos do outro), a dificuldade, quase impossibilidade diria, desse encontro tira-nos até o sono.
A lembrança do maníaco francês não foi em vão. Na verdade, tinha lido sua frase no prefácio de Suicídios Exemplares, do catalão Enrique Vila-Matas, que comecei a ler assim que a insônia me pegou. Morte por saudade, o primeiro conto do livro do catalão e a partir do qual algumas imagens da Lisboa do italiano Antonio Tabucchi ressoaram em mim, era como um desfecho para minhas inquietações. Ali tudo era fraude: desde as lembranças do narrador até as cenas finais de seu suicídio não consumado. Fragilizado pela própria incapacidade de se atirar do alto do miradouro de Santa Luzia (este que fica, aliás, próximo à rua da Saudade, sobre a qual o narrador de Vila-Matas nem comenta, porém, onde Tabucchi faz morar sua personagem de Requiem - da sua missa fúnebre, do depois da sua morte), o suicida impotente se senta e, como que a zombar de si e da morte, diz: "Vou me sentar para esperar, haverá uma cadeira para mim nesta cidade, e nela poderei ver todos os entardeceres, calado, praticando a saudade, o olhar fixo na linha do horizonte, esperando a morte que já se desenha em meus olhos, e que aguardarei, sério e calado, todo o tempo que for necessário, sentado diante deste infinito azul de Lisboa, sabendo que à morte lhe cai bem a tristeza leve de uma severa espera."
A prática da saudade que a personagem queria em um banco qualquer exercer, contemplando o triste horizonte da porta de saída da Europa, talvez tenha sido, mais do que o desfecho da minha noite, o estopim para pensar a fraude. Também eu, saindo do Velho Mundo (do meu e do geográfico), adentrei o Novo Mundo sem mais conseguir ver olhos, mas tão somente óculos escuros. Não morri por saudades (ainda que no meu velho mundo, talvez ludibriado por uma fraude - e não é isso também a memória? -, tenha sentido na pele a metáfora, o morrer de saudades). Tampouco me mataria por saudades. Porém, ao invés da mania de contemplar essas imagens que, impostoras, exibem fraudulentamente seus óculos escuros, quero poder ver a cor dos olhos do outro e também poder lembrar da cor daqueles olhos que penso ter visto, para, aí sim, sentir-me capaz de, num furor timótico, matar por saudades.

sábado, 6 de agosto de 2011

Em disagio



Sobem-me as águas. Sobem-te as fúrias
Fartas me sobem dor e palavras.
De vidro, nozes, de vinhas, me sobem dores
Tão tardas, tão carecentes.

Por que te fazes antigo, se nunca te demoraste
Na terra que preparei, nem nas calçadas
Da casa? Me vês e me pensas caça?
Ai, não. Não me pensas. Eu sim, nas noites

Que caminhadas. Que sangramento de passos.
Que cegueira pretendendo
Seguir teu próprio cansaço. Olha-me a mim.
Antes que eu morra de águas, aguada do que inventei.
Hilda Hilst.

In vino veritas

Eras tu a correr em meio ao nada, Deméter?! Por que o desespero?! Era a imagem de Perséfone que tu, mãe, não conseguias esquecer? Era a procura demasiadamente dolorosa?! Imagino que a noite tenha sido longa e que a vida de deusa seja obscura, ao ponto de os eleusinos ritualizarem a busca por Perséfone, ao ponto de os iniciados nos mistérios de tua filha terem sido motivo de chacota do tal Clemente de Alexandria (ah!, estes pais da verdade...). É, a obscuridade tem seus pesos...
Corri meus olhos pela noite, a clara noite do nada, e achei a figura que parecia a tua, Deméter. Tu colhias flores e dançavas como de costume, sem a cara retorcida pelo terror. Atônito, aflito, estava agora eu. O silêncio, Deméter, o silêncio dos mistérios de tua filha agoniava-me. Eram as vozes faltantes de uma visão, eram meus erres retroflexos agora inexistentes, eram os toques que errôneos e em disagio (esse termo italiano que conheces tão bem) não passavam de um esbarrão ritualizado. Pensava em ti com os olhos em ti e, agoniado, tentava a construção da tua ausência. Era o silêncio de vozes que não mais tocavam-se uma na outra. A conversa infinita era agora o silêncio infinito. E, por vezes, não são a mesma coisa?
Mas tu estavas ali, correndo com as flores, já alegre, com os olhos cheios da imagem da bela filha com quem agora passavas teus longos verões semestrais. Eu me calava no inverno, na solidão das neves matinais, no semestre nebuloso e escorregadio, no branco de onde não sabia sair e para o qual nossas vozes faltantes me reenviou no momento em que tua imagem veio a mim.
Curioso como este Adagio em G menor de Albinoni (ah!, o barroco, este barroco... e por isso, Veneza/barroco, o Canaletto que vi enquanto me ausentava), que Pasolini usa como leitmotiv da sua Raiva - seu disagio no mundo - e que agora ocupa meu sábado, toca-me como o toque sonoro que faltou; curioso como o agio, este espaço livre e vazio (ad-jacens), torna-se comodidade - adágio - na música. Porém, o cômodo faz-se, ao mesmo tempo, agonia irrefreável.
É, Deméter, talvez o disagio, o des-conforto, o in-cômodo, o mal estar da tua ausente presença no meu sonho, tenha sido composto na Veneza do século XVIII, talvez em alguma calle pela qual eu passava pensando nos teus sussurros. Nossas vozes que faltam, nossos rostos ainda infames pela cólera do toque impreciso, o sorriso debochado de Clemente ao falar dos mistérios que celebravam tua filha, são frutos do meu devaneio, do meu sonho, do estridente violino que termina o adagio de Albinoni, dos onze minutos desta música que agora me agoniza, do silencioso disagio que tomou o lugar do que teria sido um compassado encontro em adágio...

Imagem: Canaletto. Canale Grande. 1723-24 Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Mais uma carta


Para minha destinatária impossível.

Querida, qual a razão para acelerar a história se o tempo é desatino? Não há história sempiterna, não há aceleração que induza à razão, não há sentimento que acolha a falta. Desculpe-me por começar com uma pergunta que parece retórica, mas não me desculpo por encontrar-me desatinado na frieza de um dia incauto. Um dia incauto?! Pois é, talvez sejam os fantasmas que fazem a trama da vida a tentar revelar meu anonimato. Um amante amador (sabes que gosto dessas palavras que, se bem jogadas, ao ouvido às vezes dão essa sensação de estranheza na igualdade, ou de igualdade na estranheza) não deve se revelar, nem se deixar revelar, por mais que os fantasmas nisso insistam. O véu que vela é o que separa e une, é o que dá a aparência das coisas cuja verdade é somente aparente. É, querida, embrenhado nos joguetes da memória a consciência perde de vez sua falsa solidez. Evento de palavra, é vento de palavra e voa para longe, deixando só o desatino. Mas, diga-me, para quê acelerar a história? Toujours tout rependre et toujours tout réapprendre, não? Não bastam as retomadas e os reaprendizados? Não são todos esses res (sim, também as coisas) as sombras do passado? Não temos que enfrentá-lo? O passado? A retomada? A res? Desculpe a ambiguidade... não tive como não... coisas do tal pequeno a... É, talvez seja assim que a vida retorne das sombras pelas quais se enveredou no último sonho que tive. Talvez eu tente recomeçar a desenhar meu mapa, aquele que talvez não te agrade e que talvez tu me peças para redimensionar ao ponto de não mais ser discernível daquilo que mapeia (não te pareces familiar?). E lembrei do sonho, e do mapa, e daquele mapa que dizia que a morte revelaria o sentido verdadeiro das coisas (e voltamos para res - tudo bem, não vou repetir). Meu corpo colado no tempo, minha luta contra a história que anda, e tu ainda queres acelerá-la?! E o poeta que sussurra ao meu ouvido, dizendo que é a luta entre um homem acabado e um outro homem que está andando no ar, continua a me falar de ti. É, querida, também eu, anônimo, caminho por esteiras flutuantes, por espumas informes (qual a lógica da espuma? é metástase, é câncer, não tem centro, nem epicentro, nem eixo, nem vórtice...). Descolo agora um tempo do corpo, querida, para colá-lo aqui, nesta carta que não chegará a ti.

Do seu remente impossível.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Potências do falso (diário)


por Éric Baudelaire
Hipótese: pediríamos para um artista que trabalha nas fronteiras entre o documento e a ficção, e que aposta nos efeitos de verdade produzida por seu encontro, para conceber uma exposição imaginária. Ele pensaria em nela agrupar obras que testemunhem o inimaginável, colocando-as onde as imagens faltam. Sobre essa exposição, que nunca aconteceu, ele deixaria notas sobre os poderes das imagens e sobre sua capacidade de agitar a ordem do tempo.

Kioto, 13 de abril –
Esta noite, cineclube do domingo. Projeção entre amigos e uma conversa informal. Esta semana, sem anunciar o programa, escolhi A Bomba, de Peter Watkins. Voz em off, fria e factual, acompanhada de sequências em preto e branco de um falso documentário descrevendo as conseqüências devastadoras de um bombardeamento nuclear em Kent, no Reino Unido, em 1965.
Na sala, o clima é tenso. A violência inaudita das estatísticas anunciadas, os planos fixos intermináveis de crianças agonizando, valas comuns, carne queimada, congelam o sangue de nosso pequeno grupo cinéfilo que esperava, sem dúvidas, por um programa dominical mais divertido. Assim que o filme termina, o mal estar é palpável, quase fisiológico. “Muito cru, muito brutal, sem nuances, sem misericórdia”: quarenta anos depois de sua censura pela BBC (ainda que comitente do filme), a paulada de Watkins permanece intacta, ao ponto de, por pouco que seja, quase acabar com o espaço crítico da discussão – trata-se menos de um “filme” do que de uma agressão visual e cognitiva contra à qual se reage visceralmente.
Da minha parte, passei um tempo da projeção sentindo alguns desconfortos particulares: um dos convivas convidou uma amiga japonesa para a projeção, e eu não sei se uma exibição de um evento atômico é suportável por alguém que provém de uma cultura que verdadeiramente conheceu a Bomba. A discussão que se seguiu foi contrária às minhas expectativas. Os aspectos mais frágeis são os dos convivas franceses. A amiga japonesa parece muito menos surpresa.
Hiroshima 21 de agosto –
Retorno para Kyoto, oportunidade de fazer uma parada em Hiroshima e ali vistar o Peace Memorial Museum. Documentos, artefatos e testemunhos do primeiro bombardeamento atômico apresentados num circuito cronológico, com perspectivas científicas sobre o Manhattan Project e a fabricação de “Little Boy”, da qual uma reprodução em escala natural é apresentada na sala.
O contexto desse memorial é complexo: dizer o horror, mas evitar as armadilhas de uma leitura da história que tenderia para o argumento (americano) do “era inevitável”, desviando-se da demonstração explícita (mas perigosa) de que a missão do Enola Gay, em 6 de agosto de 1945, era um gesto enormemente político e resolutamente bárbaro. A estratégia de museu do memorial é concebida ao redor de uma lógica de acumulação desordenada e polimorfa: documentos científicos e gráficos sobre a ciência do átomo, enunciações de cifras evocando a escala da destruição, maquetes e amostras arquiteturais documentando a potência da explosão e testemunhos de sobreviventes. A impossibilidade ética e historiográfica de propor uma montagem muito ordenada, classificada e diretiva desses dados conduz assim à estratégia do volume, da evocação e da repetição – e, por consequência, a uma muito ampla abertura de interpretações – o que dá lugar a misturas por vezes surpreendentes.
As vitrines frias e científicas sobre a física nuclear (parecidas com aquelas do Palácio da Descoberta) podem parecer deslocadas alguns metros do pathos potente de um testemunho de sobrevivente enunciado em primeira pessoa. O dispositivo sugere a força de sedução da pesquisa científica (o que de mais inebriante do que a fissão nuclear, na qual o infinitamente pequeno dá o infinitamente potente?), um feitiço que fez com que muitos civis bem intencionados, como o Dr. Oppenheimer, ultrapassassem a capacidade humana imediata no resultado de seus trabalhos.[1] A empatia em relação aos casacos brancos de Los Alamos evidentemente não é o objeto primeiro da cenografia, mas a acumulação de dados torna essa leitura possível e é justo nesse gênero de agenciamento aberto que toma corpo a função do memorial.
A repetição também surpreende. Numa primeira sala duas maquetes monumentais do centro da cidade de Hiroshima, uma antes e outra depois da explosão. Numa das salas seguintes encontra-se uma segunda maquete do depois, dominada pela mesma bola vermelha que flutua sobre o epicentro. Dispositivo cinematográfico mais do que de museu: todos poderão reler o mesmo objeto, como um efeito de montagem, um laço, ou uma pausa da imagem em um filme.
Seguem as salas dos artefatos. Trapos de vestimentas queimadas; imagens de corpos irradiados disformes; o traço de uma sombra projetado num muro de tijolos por um homem vaporizado pelo calor; e, sem dúvidas, o mais macabro, esta pequena pilha de restos humanos de Noriaki Teshima, fragmentos de unhas e pedaços de pele carbonizados, preservados em natura e velados por sua mãe para mostrar ao pai no seu retorno do fronte.
Sucessão de dados brutos, de informações científicas e relação de cifras que ultrapassam nossas faculdades de representação visual com artefatos concretos que servem de atenuante para uma imagem mental que cada um fará. O que toca nessa visita ao museu de Hiroshima é que seu desenvolvimento, seu funcionamento e a sensação que provoca são idênticos ao A Bomba de Watkins. Ou ainda, deveria dizer, o falso documentário de Watkins (1965) está articulado precisamente segundo a mesma lógica que o Hiroshima Peace Memorial Museum, inaugurado em 1955. Mesmo ponto de partida na forma: a escala do horror atômico justifica (isto é, torna indispensável) uma exposição crua, brutal e massiva de informações e de formas de visualização diversas. Mesmo ponto de partida de fundo: dizer alto e forte “Hiroshima, nunca mais”. A experiência do filme, em abril, e aquela do museu, hoje, colidem no meu pensamento. Conjugar um papel de arquivo com uma função militante, mas com esta diferença: em Hiroshima os fatos são relatados, em Watkins eles são fabricados. Se o museu de Hiroshima se apresenta como um memorial para a paz, o objeto-filme de Watkins é um ante-memorial, elaborado, de algum modo, de maneira preventiva na esperança de que não haja necessidade de construir um real a posteriori.
Na massa de dados do museu de Hiroshima, cada visitante faz sua seleção visceral e sai com um fantasma que o assustará. Da minha parte, dois documentos permanecem gravados na memória. O primeiro é o relatório americano redigido para o ministério da Guerra, no qual um comitê de cientistas do Manhattan Project preconiza uma política segundo a qual as populações civis das cidades atingidas por um bombardeamento atômico seriam prevenidas com quarenta e oito horas de antecedência, tendo assim tempo de evacuar. O argumento desse memorando é mais utilitário do que humanitário. Nele, trata-se de demonstrar que todos os objetivos estratégicos da bomba podem ser atendidos sem as consequências negativas que um massacre civil em grande escala teria para a ocupação do Japão depois da guerra e para a imagem dos Estados Unidos no mundo. A proposição do “pré-aviso” foi debatida, mas em última instância não foi mantida.
O segundo documento evoca o destino da cidade de Kokura, alvo previsto do segundo bombardeamento atômico, em 9 de agosto. Trata-se de uma sequência filmada, a partir de um segundo avião, mostrando o itinerário do bombardeiro Bockscar, seus três giros acima de Kokura à procura de um buraco na cobertura de nuvens imprevista que tornava impossível a identificação visual do objetivo, e, finalmente, seu desvio para o alvo secundário: Nagasaki.
Dois documentos como inícios de imaginários chocantes. No primeiro, os argumentos a favor de um pré-aviso provaram-se justos e o documento abre assim o espaço de uma ficção dolorosamente próxima, na qual os argumentos razoáveis das pessoas civilizadas teriam salvo centenas de milhares de vidas. O segundo documento é uma claraboia sobre o estranho destino de uma cidade salva do inferno por algumas nuvens. Na linguagem factual e precisa das comunicações militares dos papéis timbrados da Secretary of War, e na sequência de filme 16mm de um avião prateado voando no belo céu azul, o horror do real é colocado face a face a uma outra História possível, de um imaginário do que foi evitado ou poderia ter sido: é o espaço fictício do condicional passado, do teria sido. O filme de Watkins é o seu dispositivo no espelho: usurpando o formato de um documentário da BBC, apresenta o apavorante documento do futuro anterior, do terá sido.
Paris, semana do 13 de outubro – Notas de reflexão para o comissariado da exposição Factographies:
Se o século XX é o da imagem, suas horas mais obscuras demarcam-se pelas lacunas de seu colocar-se em imagem. Há poucas fotografias no museu de Hiroshima porque não há imagem “suficiente” para dizer Hiroshima. Há o ícone da nuvem-cogumelo, mas é um símbolo gráfico genérico mais do que uma fotografia (quem pode distinguir o cogumelo de Hiroshima daquele de Alamogordo ou de Bikini?). Nada de imagens de valas comuns, de cadáveres a perder de vista, apenas essas imagens das ruínas de depois – o vazio arquitetônico como substituto visual para a pulverização dos corpos. Para aquilo que são traços do humano, o museu reconstituiu um diorama iluminado por uma luz escarlate, representando duas crianças escalando os escombros, pedaços de carne queimada nas faces e nas mãos dos manequins. Por que essa exibição de um teatro sanguinário? Sem dúvidas para substituir as imagens que faltam – aquelas que talvez desapareceram com a ocupação americana, aquelas que não existiram porque não havia pessoas para fazê-las, ou aquelas que faltavam porque a Bomba deixou somente poucos restos humanos para fotografar. Não há, portanto, nem poderia haver, imagens do evento atômico. E mesmo se houvesse, seriam suficientes?
Essa questão da “representabilidade do inimaginável” liga Hiroshima à Auschwitz. Pois, não obstante a sistemática narcisista e pornográfica da documentação nazista dos campos, também não há imagens das câmaras de gás, a não ser os quatro fragmentos de filmes do Sonderkommando cuja publicação deu lugar à polêmica e ao belo texto de Georges Didi-Huberman, Images malgré tout. A interdição absoluta de fotografar as câmaras de gás (também para os SS) não impediu detentos anônimos de arrebatar do inferno de Auschwitz essas quatro imagens difusas, únicos documentos fotográficos conhecidos representando o funcionamento do dispositivo principal dos campos de extermínio. Esse valor simbólico das imagens únicas do sistema de destruição do povo judeu são o epicentro do debate sobre a capacidade da imagem dizer o indizível da Shoah. Imagens inadequadas, pois elas mostram apenas muito pouco face à amplitude do Holocausto. Imagens inexatas, já que imprecisas. Imagens fragmentárias que saberiam figurar somente uma verdade insignificante face à escala “impensável” de Auschwitz. E desse fato, se não é possível ter imagem total, única e integral da Shoah, não é preciso invocar todas as imagens? Gerard Wajcman, desse modo, argumenta a invisibilidade do genocídio ao lado de Claude Lanzmann, o qual chegará a dizer: “se tivesse encontrado um filme existente (...) girado por um SS e mostrando como três mil judeus, homens, mulheres, crianças, morriam juntos, asfixiados numa câmara de gás do crematório II de Auschwitz, se tivesse encontrado isso, não só não iria mostrar, mas o teria destruído. Não sou capaz de dizer o porquê. É assim.”[2]
Diante de Lanzmann, para quem nenhuma imagem é capaz de dizer essa história, Jean-Luc Godard, na Histoire(s) du cinéma, trabalha uma montagem de imagens existentes para demonstrar que todas as imagens falam apenas disso, concedendo-lhes até mesmo um potencial redentor já que “mesmo marcado de morte / um simples retângulo / de trinta e cinco / milímetros / salva a honra / de todo o real”.[3] Nessa polaridade tornada polêmica, a oposição entre iconoclastas e iconófilos interessa-me sobretudo pelas vias que abre aos artistas diante desse diagnóstico partilhado sobre a pobreza das imagens: aqueles que, como Lanzmann, as abandonam para se consagrar à palavra e ao testemunho e aqueles que, com Godard, as revêem, relêem e as fazem colidir para reinventá-las à luz da História. Em relação a essa dialética, é preciso agregar uma terceira via, a de Watkins: diante da natureza lacunar da imagem, fabriquemos as imagens! Fabriquemos um excedente de imagens, uma barragem de imagens, uma overdose de imagens. E mais, pelo dispositivo do falso documentário, elevemos essas imagens ao estatuto de documento-simile.
É evidente que, sobre o terreno delicado das grandes tragédias humanas, a fabricação de imagens é uma empresa perigosa... A armadilha pode ser aquela da mediocridade cinematográfica e da banalidade bem intencionada. Nos simulacros de Auschwitz de Steven Spielberg, o que gera problema é a inserção, numa pura ficção clássica, do preto e branco em falsas imagens de arquivos para “aumentar” uma indústria espetacular. Roberto Benigni opta por uma encenação quase burlesca da tragédia – um pouco superficial para o gosto de alguns, seu filme, no entanto, junta-se à estratégia de Imre Kerstész (quem, aliás, o defendeu) e do essencial do teatro israelense sobre a questão, tratando menos de “falsas imagens” do que de pura teatralização enquanto único meio possível para evocar a Shoah.
A questão é, portanto, a de saber onde situar a grande obra factográfica de Watkins. Sua tarefa cinematográfica (tenho até vontade de falar de missão, já que seu método de trabalho revela-se um sacerdócio) compreende ao menos dois objetivos: re-visualizar episódios históricos em prol de um revisionismo dominante, para deles se re-apropriar (Culloden, La Commune) e inventar cenários apavorantes no seu realismo (A Bomba, Punishment Park) por urgência política. Os dois gêneros se juntam na sua vontade profilática. Também os murais históricos são filmados com um dispositivo de mise en abîme midiático, um anacronismo que permite desenvolver um olhar critico sobre as questões da escritura da História pelos “mass-media” e sublinhar a contemporaneidade dos jogos políticos de acontecimentos que datavam de muitos séculos. Mas o engajamento é mais urgente ainda nos filmes de pura ficção: A Bomba devia ser difundida três anos após a crise dos mísseis de Cuba, na qual a humanidade foi fortemente ameaçada de Armageddon, e os excessos de Punishment Park não pareceriam mais muito fictícios na era de Guantânamo, do waterboarding e das extraordinárias rendições da CIA.
Para Maurice Blanchot “há um limite no qual o exercício de uma arte, qualquer que seja, torna-se um insulto à infelicidade”. Watkins aborda o problema em sentido inverso: um insulto à infelicidade seria não exercer a arte para alargar seus limites. Falar de “indizível” em relação ao horror do genocídio não leva àquilo que Giorgio Agamben descreve como uma “adoração mística”, a qual contém o risco de tender ao silêncio?[4] Para Watkins, é o silêncio que seria intolerável, portanto, ele trabalha para cumprir o documento-testemunho no documento-imagem: da imagem mental que emana de palavras e de dados históricos, ele fabrica as imagens. Ele confia na sua eficácia desde que estejam fora do registro neutralizador da imagem-clichê banalizadora, a partir da qual se equivocam Spielberg ou Benigni, e isso por dois meios: seu volume (repetição, excesso e caráter explícito) e sua proximidade (ele as traz para próximo de nós, em Kent, e não em um Japão distante e exótico). O imperativo político consiste em trazer violentamente a matéria para nossas salas, Bring the War Home, como pronunciaria Martha Rosler ao atualizar o método choque de Orson Welles com sua rádio-transmissão de A Guerra dos Mundos.
A questão da fabricação, da falsificação ou da descontextualização de documentos leva a duas questões essenciais: o que faz imagem e o que faz uma imagem. Para Watkins, a imagem tem uma função alarmista (no sentido positivo do termo), portanto, ele elabora o espaço fictício do documento e alarga sua função preventiva. Nesse sentido, suas imagens se parecem com as imagens mentais que se descolam dos documentos de Hiroshima, aquelas que me fizeram entrever o que teria sido o fim da guerra sem centenas de milhares de vítimas civis dos bombardeamentos atômicos, ou visualizar a sorte desoladora que fez com que Kokura fosse poupada e Nagasaki aniquilada. E é talvez essa aproximação, justamente, o que explica a reação exposta por essa amiga japonesa no cineclube: de maneira figurata, ela já tinha visto esse lugar. Mais familiar com a matéria, ela tinha mais capacidade do que nós de apreender o projeto de Watkins naquilo que ele é, a saber, o ante-memorial de um cataclismo iminente, mas evitável.
Justapor uma ficção que se dirige para o documento e documentos que abrem a via de uma ficção. Fazer com que dialoguem num mesmo espaço de exposição.
Georges Didi-Huberman diz, sobre a importância das imagens apesar de tudo, sublinhando que em “cada produção testemunhal, em cada ato de memória, as duas – linguagem e imagem – são absolutamente solidárias, não cessam de trocar suas lacunas recíprocas: uma imagem aparece ali onde parece falhar a palavra, uma palavra muitas vezes surge ali onde parece falhar a imaginação.”[5]
Da mesma maneira, Factographies propõe uma reflexão sobre praticas artísticas que tornam absolutamente solidários documento e ficção, cada um superando a insuficiência do outro. E já que a dialética Watkins / Museu de Hiroshima, produção testemunhal do teria / terá sido, joga-se ao redor da ideia essencial do ante-memorial, a introdução de uma nova peça à exposição se impõe. Factographies deve incluir a documentação do projeto Commemor (Comissão Mista de Troca de Monumentos aos Mortos), 1970, no qual Robert Filliou orquestra, com a potente leveza que o torna aqui indispensável, uma troca fictícia de monumentos aos mortos entre as cidades da Holanda, da Alemanha e da Bélgica no lugar de verdadeiras guerras. Commemor como resposta escultural ao gesto cinematográfico de Watkins.
Bruxelas, 18 de outubro –
Por acaso, durante um passeio, visito a galeria Jan Mot, onde acontece o vernissage da exposição de Deimantas Narkevicius com a projeção de seu filme The Dud Effect. Acaso que faz bem às coisas: estou prestes a completar a seleção das obras para Factographies e esbarro nesse filme que é em parte inspirado, ou, digamos, realizado, em A Bomba de Watkins. Narkevicius nele exibe a antípoda dos acontecimentos fictícios de Kent, em 1965: o lançamento de mísseis nucleares de tipo R-14 a partir de uma base soviética na Lituânia nos anos setenta.
The Dud Effect é o contraponto de A Bomba desde o ponto de vista narrativo (exibe o lançamento ao invés do impacto), mas também estilístico: tudo é feito para tornar ordinária, burocrática e ordenada a ação que acontece. Nada de emoção nos planos, apenas uma descrição clínica de uma rotina administrativa. Não é questão de tomada de decisão no lançamento dos mísseis (portanto, nada de abertura explícita sobre questões morais) e seu impacto é apenas ligeiramente sugerido. A maior parte do filme mostra um oficial anônimo ditando, ao telefone, ordens de natureza técnica para interlocutores, também eles, anônimos (“posto 101”, “posto 505”). Documentário (já que baseado em verdadeiros procedimentos) mais do que ficção cinematográfica (nada botão vermelho, nada de console eletrônico, apenas uma voz em um telefone e um homem impassível). No momento do lançamento, o rosto do oficial é simplesmente sobreposto pela luz dos reatores fora de campo. A sequência dos acontecimentos é sugerida em planos de natureza circundante, um som de vento violento, depois uma série de planos fixos atuais de instalações nucleares soviéticas em avançado estado de ruína (silos vazios, hangares afundados). Trata-se de um mundo pós-apocalíptico ou apenas de ruínas do tempo, as marcas confirmadoras do fim do império soviético? E se se trata da segunda hipótese, por que não nos confortamos por essas imagens de um passado que, justamente, nem existiu?
No teria sido do Museu de Hiroshima, no terá sido de Watkins e no condicional simples de Filliou, é preciso, portanto, agregar o não foi de Narkevicius. Nessa conjugação de obras, entre outras constantes relacionadas com seu valor “memorial”, de modo essencial está a questão de tempo e de verdade, ou ainda, do modo como o tempo coloca em crise a noção de verdade.
Essas diferentes narrações dos fatos ilustram o paradoxo dos “futuros contingentes”, problema filosófico revisitado desde a Antiguidade e resumido assim por Gilles Deleuze: “Se é verdade que uma batalha naval pode acontecer amanhã, como evitar uma das duas consequências seguintes: ou o impossível procede do possível (já que, se a batalhe acontece, não é mais possível que ela não aconteça), ou o passado não é necessariamente verdadeiro (já que ela podia não acontecer).”[6]
Leibniz chega a uma solução muito apropriada para esse paradoxo: a batalha naval (como o bombardeamento atômico) pode acontecer ou não acontecer, mas não é no mesmo mundo, ela acontece em dois mundos que não são “compossíveis” entre si. Invertendo a noção de “incompossibilidade” ele resolve o paradoxo oferecendo uma pausa à crise da verdade, já que é o incompossível (e não o impossível) que procede do possível. “O passado pode ser verdadeiro sem ser necessariamente verdadeiro.” E, a partir disso, Deleuze evoca a resposta de Borges a Leibniz (e nós invocamos Watkins e Narkevicius da mesma maneira): “a linha reta como força do tempo, como labirinto do tempo, é também a linha que se bifurca e que não para de se bifurcar, passando por presentes incompossíveis, retomando passados não-necessariamente verdadeiros.[7]
Os documentos e obras de Factographies dialogam nessa simultaneidade. A exposição se constrói, de algum modo, ao redor dessa ideia deleuziana das “potências do falso” para destronar e substituir a forma do verdadeiro – potência artística, criadora, na qual a narração abandona o estatuto verídico para se fazer falsificável, e isso não em nome de uma simples subjetividade de autor (“cada um com sua verdade”), mas por uma real necessidade pela qual não haveria outra saída que locupletar o espaço entre story e history.

Éric Baudelaire é artista. Seu trabalho sobre a Anabase será exposto este verão no centro de arte contemporânea da Sinagoga de Delme. Uma versão deste texto foi publicada no número 2010 da revista Trouble, catálogo de uma exposição fictícia intitulada Factographies.

[1] Mesmo se mais tarde, numa entrevista concedida em 1965, o Dr. Oppenheimer evocava o primeiro teste nuclear no deserto de Alamogordo nestes termos: “We knew the world would not be the same. A few people laughed, a few people cried. Most people were silent. I remembered the line from the Hindu scripture, the Bhagavad-Gita ; Vishnu is trying to persuade the Prince that he should do his duty, and to impress him, takes on his multi-armed form and says, ‘Now I am become Death, the destroyer of worlds.’ I suppose we all thought that, one way or another.”
[2] Citado em George Didi-Huberman, Images malgré tout, Les Éditions de Minuit, p 122.
[3] Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinéma, Paris, Gallimard-Gaumont, 1998, I, p. 86.
[4] Cf. Giorgio Agamben, Ce qui reste d’Auschwitz, Rivages, 1999.
[5] George Didi-Huberman, Images malgré tout, op. cit., p 39
[6] Gilles Deleuze, Cinéma 2, L’Image-temps, Les Éditions de Minuit, p.170.
[7] Ibid., p 171.
Texto publicado em Vacarme 55, printemps 2011. Disponível em: http://www.vacarme.org/article2027.html (tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Kenichi Nakano. Centro de Hiroshima depois da bomba. 1975.