quinta-feira, 31 de março de 2016

Pequeno parágrafo sobre o amor III



Conjugar o verbo amar é tocar as bordas do impossível, traçar seus esboços, fingir entender a vida. Mas fingere não é a porta à ficção? E não é a ficção a entrada da vida destes animais falantes que somos? É sempre a distância a dominar nosso corpo, e são as palavras que preenchem cada frase os alforjes vazios a nos iludir com possibilidades. De que valem a vontade de dizer e os desenhos de amor se valer pode ser só mais um verbo intransitivo? Nenhuma conjugação do amor é suficiente para libertar essa sensação que vem do balanço deste ônibus que nos leva ao único possível: o distante. Aí, nesse lugar algum, os verbos são conjugados sem a preocupação do sentido e a vida transcorre em seu leito vaporoso, etéreo, tocando coisas silenciosas e apagando os rastros disso que um dia ousamos dizer amor.

Imagem: Pieter Brueghel (o jovem). Dois casais camponeses. 1600-10.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Brasil, 1964-2016


Em 28 de outubro de 2002, o ex-operário e líder  de um dos maiores partidos de esquerda da América Latina, recém empossado presidente do Brasil, dá sua primeira entrevista no cargo ao Jornal Nacional, da Rede Globo de Telecomunicações, uma grande empresa que apoiou o golpe militar de 1964 e se fortaleceu durante o período da ditadura. 
De 2002 a 2016, ano em que a sucessora de Lula é confrontada por um processo golpista, apoiado por esta emissora e gestado pelo parlamentar que mais se beneficiou com os desvios na petrolífera estatal, membro da bancada evangélica e conhecido nos subsolo do crime organizado, e em que o próprio ex-presidente Lula é ameaçado de prisão por supostos crimes cometidos durante o cargo, nada foi feito para rever as concessões de empresas de rádio e TV declaradamente envolvidas com o governo dos militares e com tudo aquilo que o período de ditadura representou: torturas, desaparecimentos, emparelhamento das questões brasileiras aos interesses ianques (ver documentos do wikileaks divulgados no documentário "O dia que durou 21 anos", https://www.youtube.com/watch?v=U91gtFREBY0 - imprescindível quem busca entender as aporias políticas que ainda cercam o país).
Em 31 de março de 1964 tratava-se de derrubar um presidente democraticamente eleito que pretendia estabelecer reformas (capitalistas) de base, como uma redistribuição menos injusta e produtivamente eficaz no campo, uma reforma educacional, reformas no setores bancário, fiscal, administrativo, às voltas com um debate desenvolvimentista acerca de uma maior presença estatal em áreas estratégicas, como a produção da energia nacional ou o intervencionismo econômico. 
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, como foi chamada uma série de manifestações de massa ocorridas no mês de março de 1964, formada por membros da classe média e endinheirados da aristocracia econômica brasileira, bradou contra "o comunismo", em nome de um moralismo reacionário preocupado com o fantasma da ameaça soviética no Brasil e propiciou o fantasmático suporte de legitimidade para o golpe dos militares (que, sabe-se, já possuíam o auxílio da IV Frota ianque na hipótese de resistência de João Goulart). 
Em 2016, trata-se de derrubar um partido que em quatorze anos de gestão propiciou um paraíso na terra aos banqueiros (os lucros de Itaú e Bradesco estão acima do PIB de muitos estados nacionais), empreiteiras e aos imperadores da mídia - que já se beneficiavam de todas as regalias previstas no pacto não declarado de transição pós-ditadura -, embora com algumas concessões em direitos sociais e, ao menos nos mandatos de Lula, um maior protagonismo no campo internacional, fortalecendo tratados comuns entre países não alinhados na América Latina. 
Mesmo sem confrontos declarados por parte do PT, um partido tão adepto às políticas neoliberais e resiliente à gestão governamental (no sentido foucaultiano do termo) que já não por ser chamado como um partido de esquerda, consensualista e dócil com as elites ao ponto de manter absolutamente intocados os temas que ainda fazem do Brasil um país semi-colonial (cujas fortunas remetem ao grileiros, donos de escravos e detentores da dívida pública), os herdeiros da marcha de 64 voltam às ruas clamando pela destituição de uma presidente eleita, pela punição dos "corruptos" e pela "extirpação religiosa de todos os males" em um país que não conseguiu levar aos tribunais nem mesmo os torturadores ligados à máquina ditatorial, cujos presidentes militares, golpistas criminosos, ainda são nomes de ruas e tratados como heróis nacionais. 
O PT se acovardou. Em um cenário de chantagens vindas de pequenos golpistas, não ousa demonstrar o mínimo de poder - legitimado pelas urnas - e cassar a concessão de uma empresa golpista como a Rede Globo de Televisão. 
Os militares foram substituídos por pequenas hienas carniceiras de toga - http://flanagens.blogspot.com.br/2012/11/o-que-e-uma-hiena.html -, as faculdades de direito no Brasil foram e continuam a ser o dispositivo por excelência da razão colonial no país (durante o império, os bacharéis em direito que retornavam de Coimbra formaram o primeiro corpo de burocratas nacionais a serviço de um projeto colonial) e o obscuro juiz Moro é a expressão hegeliana da sórdida arrogância, da politicagem pequenez e do autoritarismo da minoria que venceu no Brasil pós-colonial. É o velho capitão do mato com as vestes do magistrado provinciano. Assim como Gilmar Mendes é a reencarnação contemporânea do dono de escravos aspirante a capitão hereditário, lambedor das botas do colonizador (seja da antiga Lisboa ou da atual Miami).    
Entre o presidencialismo neoliberal de coalizão, exposto pelo sistema partidário brasileiro que capturou seus partidos de esquerda, e o retrocesso autoritário representado pelo coxinhas neo-fascistas com camisetas caras da CBF de José Maria Marin, e contra as falsa alternativa do bom-mocismo do moralismo cristão despolitizado, capitalismo gerencial e "fofo" simbolizado em Marina Silva e na "política" das redes sociais, é preciso pensar uma via radical e estrutural, concreta, que passe por uma lei de mídias consistente (abolindo os monopólios), um controle efetivo sobre o capital especulador e uma revolução agrária que deixe efetivamente no passado a imagem colonial do pais exportador de commodities. 
Dado que há um bloqueio institucional a estas alterações, só nos resta pensar ao modo zapatista, que inclui o dispositivo de um Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN): territórios livres, não utópicos, em que pensar um outro mundo possível seja possível. 

“É verdade, somos profissionais. Mas a nossa profissão é a esperança. Um belo dia decidimos virar soldados para que noutro dia os soldados não sejam mais necessários. […] Por isso somos soldados que querem deixar de ser soldados. Mas para que os soldados não sejam mais necessários é preciso virar soldado e disparar uma certa quantidade de chumbo quente, escrevendo liberdade e justiça para todos, não para alguns, mas para todos, todos os mortos de ontem e de amanhã, os vivos de hoje e de sempre, por todos aqueles que chamamos de povo e pátria, os excluídos, os que nasceram para perder, os sem nome, os sem rosto."