segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"Les salauds”


A esterilidade da vida cotidiana e “metropolitana” da espécie de “animal laborans” hoje disseminada em escala ubiquamente planetária está ligada sobretudo à quase total impossibilidade, o que transfere um desespero adorniano a qualquer indivíduo minimamente lúcido, de escape frente aos horizontes estabelecidos pelo espirit de sérieux nela incrustado. Sobre como se manifesta este espírito de seriedade, respeitabilidade, mediocridade e simulações farisaicas, Hannah Arendt, em ensaio de 1946, nos dá alguns acenos: “o homem ‘sério’ é aquele que pensa em si mesmo como diretor de sua empresa, como membro da Legião de Honra, como membro da faculdade, mas também como pai, como marido ou como qualquer outra função seminatural, semi-social. Assim fazendo, concorda com a identificação de si mesmo com uma função arbitrária que lhe foi atribuída pela sociedade.” De 1946 até os dias que correm é impossível não constatar a catastrófica universalização do “espírito de seriedade”, domesticando inclusive os últimos redutos “oficiais” de não alinhamento: o espaço institucional das artes, progressivamente dominadas por uma mercantilização e “profissionalização” inauditas (nada mais que um epifenômeno do grande fluxo estrutural de generalização e sofisticação da sociedade contemporânea do espetáculo) e o espaço da chamada intelectualidade, ou daquilo que nas últimas décadas se viu drasticamente reduzir ao entorno dos campi universitários (e, nesses locais, salvo exceções, aos diminutos espaços dos departamentos de “ciências humanas”). É preciso ressaltar, contudo, que a novidade deste massivo “espírito de seriedade” não se evidencia equivalente à empáfia ou presunção do “homem de gênio” que outrora ligava diretamente sua vida a uma atividade que consideraria “superior” frente aos imperativos da vida anônima da “plebe inculta” ou não iniciada. A síndrome do homem sério e médio se revela no “sintoma psíquico”, hoje epidêmico, de vincular todas as dimensões do “mundo da vida” à esfera laboral ou atividades adjacentes ao labor (como o estudante, em uma vida intermediária e iniciática à religião mor do mercado de trabalho), representando a instância do trabalho um qualificador privilegiado, senão único, do “ser no mundo”. Ser professor, ser político, ser advogado, ser gari, ser operador de telemarketing... Este é o bios, desesperadamente trivial e prosaicamente operoso, da vida humana sobre a terra.

(Nada mais do que tentou Sartre exprimir em “A Náusea” com a figura do “salaud”, ou, em português mais chulo, o salafrário, usada para intitular os respeitáveis, ou figurões, de uma determinada cidade interiorana).


Mas além da figura do “homem sério” é possível observar outro “modelo antropológico” dominante que aparentemente se colocaria em posição antagônica ao primeiro, mas que, em verdade, apenas exporia a outra face, menos ingênua e mais niilista, do respeitável “salaud” (e que até não impediria sua concomitância). É o que também Sartre buscou delinear com a figura da má-fé. O individuo que age com má-fé consegue perceber a insuficiência e arbitrariedade de tais máscaras como instâncias de definição da vida socialmente permitida. Porém, seja por covardia, preguiça ou oportunismo, simplesmente age como se estivesse frente a uma heteronomia vinda das leis naturais. Hipocritamente serve-se desta forma de partilha do próprio mesmo que ao preço de ver sua própria vida cotidianizada, sitiada e insossa (com a contínua percepção pessoana de ser “uma cadáver adiado que procria”).

Uma pequena suspensão e comentário final. O espirit de sérieux da versão de capitalismo do presente (ousando uma tão abrangente transposição de conceitos) se dirige às mais heteróclitas multidões do mundo, inclusive àquelas que sobrevivem na lei marcial do relógio ponto e das decisões dos gendarmes gerenciais especializados em (sintagma que poderia facilmente ser incluído no vocabulário fascista) “recursos humanos”, vivendo diariamente na roldana marcada “nos vãos entre as plataformas e os trens”, no sono curto e intranqüilo e nos finais de semana dedicados ao entretenimento (entorpecedor e servil ao tempo vazio e homogêneo do trabalho, como o todo entretenimento). Sem adentrar no comentário de Marx de que o proletariado é a classe que não possui fronteiras nacionais ou, em termos mais correntes, “identitárias” definidas (i.e. o nuclear são suas condições materiais), e mesmo utilizando o conceito de proletariado em termos meramente operativos, estas multidões são justamente aquelas que não conhecem uma propriedade também no sentido amplo de um pertencimento mundano ou, em outros termos, aquele grupo de pessoas que estaria mais exposto a ser reduzido, em sua própria rotina, à figura da pura vida biológica enquanto tal. E é justamente esta massa que mais de perto vê e fisicamente sente tanto a fragilidade, violência e unidimensionalidade do bios contemporâneo, tendo que se amoldar às figuras mais bizarras e impessoais de qualificação (algo que o séc. XIX já conhecia mas que em nosso tempos chega ao paroxismo), como a direta vinculação desta qualificação parcial com sua própria presença na terra. Basta pensar no drama de um indivíduo economicamente assimilado e dependente do mercado (como todos somos até os nervos no presente), porém pobre e desempregado.


É desta impropriedade da situação da vida dos vencidos que talvez restem fagulhas potencialmente incendiárias para desmentir e profanar a propriedade séria e respeitável enquanto tal. Aí se elucidaria, de forma oblíqua, a enigmática alusão de Marx de que não se pode falar de um “proletariado” sem falar de sua própria (e potencial) abolição.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O Inesquecível


- A criatura humana não vale muito e sua memória está cheia de buracos que nunca será capaz de tapar. Mas quanta coisa não se deve fazer daquilo que se esquece para sempre. Só assim o que se realizou serve de apoio ao pouco que para sempre se guarda. Todos esqueceram sua vida cotidiana. No meu caso, ela constava de multidão de móveis que tive de limpar todo santo dia, o sem-número de pratos que deviam ser lavados e, como todo mundo, sentei-me diariamente para comer. Mas, como para todo o mundo, isso é coisa que se sabe mas da qual não me recordo realmente, como se ela tivesse acontecido sem atmosfera, com bom ou mau tempo. O próprio prazer que me coube tornou-se um espaço sem atmosfera, e ainda que me reste a gratidão por este elemento da vida, os nomes e as feições que outrora significavam gozo e até amor somem diante de mim. A cada dia, a parte que deles desaparece, transformando-se numa gratidão parecida com um copo vazio, aumenta. Copos vazios, copos vazios! E no entanto este vazio não existiria, nem esse esquecimento, caso não tivesse sido criado o que não pode ser esquecido. Com mãos vazias, o que se esqueceu carrega o inesquecível, e este nos carrega. Com o esquecido alimentamos o tempo, alimentamos a morte; mas o inesquecível é um presente que a morte nos faz, e no momento em que o recebemos ainda estamos na realidade aqui, mas, ao mesmo tempo, já chegamos lá, onde o mundo cai nas trevas. Pois o inesquecível é uma fração do futuro, uma fração da intemporalidade que nos é outorgada antecipadamente, que nos suporta e abranda nossa queda na escuridão, fazendo-nos pairar suavemente. (...)


Trecho do conto “Narrativa da Criada Zerline”. In: BROCH, Hermann. Os Inocentes. [Die Schuldlosen]. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 104-105. Imagem: Francesco Salviati. Detail einer Wand: Kairos, fresco (1552-1554). Palazzo Sacchetti, It.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Murilo Mendes por Murilo Mendes

(B)
Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito. Atraem-me a variedade das coisas, a migração das idéias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da história. Sou contemporâneo e partícipe dos tempos rudimentares da matéria - desde 900 bilhões de anos? -, do dilúvio, do primeiro monólogo e do primeiro diálogo do homem, do meu nascimento, das minhas sucessivas heresias, da minha morte e mínima ressurreição em Deus ou na faixa da natureza, sob uma qualquer forma; do último acontecimento mundial ou do acontecimento anônimo da minha rua. Na gruta de Altamira disse; eu estava aqui na época em que gravaram estes bichos. As portas da percepção abriram-se no momento-luz inicial dos tempos; talvez nunca se fechem. O minúsculo animal que sou acha-se inserido no corpo do enorme Animal que é o universo. Excitante, a minha fraqueza: alimenta-se dum foco de energia em contínua expansão.
(C)
De substrato pagão; covarde; oscilante; incapaz de habitar o faminto, o leproso, o pária; aterrorizado ante a cruz trilíngüe - máximo objeto realista - oclusa ao olho dos doutores, travestida pela montagem teatral de Roma barroca-poliédrica; obsedado pelo Alfa e o Ômega; bêbado de literatura, religião, artes, música, mitos; imbêbado de política, economia, tecnologia; expulso dos teoremas; tachado de analfabeto pelo físico nuclear e pela história, dama agitadíssima; consciente da força agressiva do mundo moderno, da espantosa ambigüidade da natureza humana, indecisa entre adorar a matéria ou destruí-la; dinâmico na inércia, inerte no dinamismo sou.
MURILO MENDES, Poesia Completa e Prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 46.