domingo, 31 de dezembro de 2017

O lumpenradicalismo e outras doenças da tirania



Achille Mbembe

Do fim do período colonial ao começo dos anos 1990, a maioria dos africanos viviam sob regimes civis ou militares, capitalistas ou socialistas, os adjetivos pouco importam. Eram regimes geralmente de partido único cujo líder era um tirano, isso porque a descolonização dificilmente abriu caminho para a democracia. Na África austral, onde os europeus estabeleceram colônias de povoamento nas diversas fases da longa expansão imperialista, a segregação racial era a lei. Os negros simplesmente não eram sujeitos políticos de direito, e todo o resto se desprendia desse princípio fundamental. 
Após a queda do muro de Berlim, importantes movimentos contestatórios, essencialmente conduzidos por uma coalização heteróclita de forças autóctones, levaram a uma relativa liberação do campo político, ao fim dos partidos únicos e à sustentação de nossas economias nos princípios do mercado. Isso acontecia à medida em que declinava e desaparecia o comunismo na Europa do Leste, antes daquilo que chamaríamos mais tarde de “as primaveras árabes".


Futuro bloqueado


Quase um quarto de século depois dessas experiências de mobilização, a paisagem não é muito luminosa. Hoje, no máximo cinco Estados pós-coloniais podem se vangloriar de serem regimes verdadeiramente democráticos. Para todos os outros, a democracia permanece uma metáfora. Por certo, os golpes de Estado militares tornaram-se raros, mas em muitos casos, a política sempre foi vivida como uma forma mal simulada da guerra, enquanto a força aramada como tal está longe de ser o monopólio dos Estados constituídos. Os mercados da violência não cessam de se proliferar e o fuzil está se tornando um utensílio de trabalho como qualquer outro. 
Por outro lado, um pouco por toda parte, o multipartidarismo se tornou a regra. Mas em muitos países, notadamente na África central, a alternância democrática é desconhecida. O ciclo político da nação se confunde com o ciclo biológico do tirano, de modo que evocar em público a morte deste é uma blasfêmia. O poder só muda de mãos com sua morte, sua fuga para o estrangeiro ou por sucessões manipuladas. Onde estas aconteceram, as mudanças dos dirigentes dificilmente desembocaram em transformações sistemáticas seja na prática institucional seja na cultura do poder. Com frequência as coisas tomaram um curso mais nefasto do que antes, fazendo com que muitos, tomados por uma mistura de nostalgia e melancolia, acabaram por desejar um retorno ao passado. 
Não saímos, portanto, da crise de legitimidade que acometeu muitos dos regimes africanos antes da liberação relativa dos anos 1990. No plano filosófico e cultural, essa crise tinha como causa principal sua incapacidade de desbloquear o futuro. A ausência de qualquer futuro qualitativamente diferente do presente mal foi ultrapassada. Com raras exceções, a mecânica das eleições foi interrompida por toda parte. Em geral, elas foram objeto de dissimulações garantidas por observadores internacionais. Longe de serem catalizadores de mudança, os ciclos eleitorais se tornaram sinônimos de ciclos sangrentos. As “democracias africanas” mostraram que podiam ser conjugadas quase que em todos os gêneros – restaurações autoritárias, sucessões de pais e filhos, poder vitalício, isto é, mudanças na chefia do Estado impulsionadas por movimentos armados ou por forças estrangeiras apoiadas por mercenários. 
Na realidade, vários regimes autoritários empreenderam – e porventura conseguiram – mudanças no começo deste século. Apoiando-se na desregulamentação e na privatização de economias outrora controladas pelo Estado, conseguiram enxertar seus poderes nas redes de finanças e de extração em escala global, o que lhes confere uma relativa imunidade. Agindo dessa forma, eles não são mais responsáveis diante de suas sociedades. 
Por outro lado, eles puderam comprar potentes apoios no seio delas. Colocadas juntas, essas forças, cujas dimensões internacionais não são negligenciáveis, defendem o status quo. Elas são os meios organizados e dispõem da força das armas, do dinheiro e de sólidas redes locais e internacionais. Elas editam leis que lhes são favoráveis e dispõem de tribunais para aplicá-las ou, quando apropriado, para ignorá-las e contorná-las. Esse bloqueio ao poder não é destituído de contradições internas. Com as elites que se fizeram donas e "capturaram" o Estado, tal bloqueio se torna em parte o resultado da economia de extração à medida em que esta ingressa nos circuitos da financeirização.



Resistências esporádicas e informais.



Diante desse bloqueio movido por uma verdadeira consciência de classe e determinado a defender seus interesses até o fim, isto é, a mudar de lado caso as circunstâncias assim determinem e desde que o sistema permaneça no lugar, a sociedade mal consegue se sustentar e ainda menos se movimentar. A multiplicação das organizações não-governamentais, a proliferação dos pastores e de suas igrejas, a liberação das mídias e o acesso às novas tecnologias não permitiram a emergência de verdadeiras contra-elites e contra-poderes. Apesar das resistências esporádicas e informais, as sociedades mostraram que elas podiam quase tudo monetarizar – as guerras sangrentas, as epidemias e calamidades mais horríveis, os desastres ecológicos e suas consequentes fomes e secas, os níveis vertiginosos de brutalidade social e desigualdades econômicas, até mesmo os massacres e, pelo menos, um grande genocídio.
No fundo, como na época colonial, muitos africanos não apenas têm a impressão de estar privados de futuro, mas, como consequência, de não ter mais nada a perder. Pouquíssimos africanos são livres para escolher seus dirigentes ou para se livrar, por meios pacíficos, daqueles que não querem mais.
Governados, no essencial, contra seu consentimento, são muitos aqueles que não acreditam mais na democracia. Alguns, aliás, lutam contra esse conceito. Outros o contestam com todos os meios possíveis. A maioria sonha com um homem forte e providencial, a quem poderia delegar toda responsabilidade em relação a suas vidas e seu futuro. Outros, ainda, estão em busca de líderes capazes de destruir tudo, convencidos de que nada do que renascerá poderá ser pior do que o que existe no presente.
Se este é efetivamente o momento histórico no qual nos encontramos, então a questão que se coloca é cada vez mais a de saber por que esses tiranos duram tanto. Como é que a maioria das tentativas de derrubá-los são retumbantes derrotas, mesmo que a demanda por uma transformação radical nunca tenha sido tão clara? Admitamos que é preciso revertê-las. O que as substituiriam? Como pensar essa mudança e como colocá-la em prática, e com quais forças sociais? De onde seria preciso extrair as energias e as formas de organização e de lideranças capazes de nutrir e de animar a ação da mudança?
Tendo sido por muito tempo objeto de um abandono quase integral por parte dos pensadores e dos movimentos sociais, essas questões agora são agudas. Diversas respostas foram propostas e variam em função das histórias específicas dos Estados africanos. Dinâmicas transcontinentais se abrem. Convergências também. Aqui e lá, elas chegaram a resultados relativamente significativos. Em certos países, muitos se esforçam para superar o medo que por mais de meio século paralisou os espíritos – o medo das prisões arbitrárias, das detenções ilimitadas, dos gritos que saem das salas de tortura, do banimento para as prisões no país ou no exílio. Eles procuram, tateantes, os caminhos para sair da “longa noite”.
A questão da mudança histórica se coloca, aliás, em um momento em que a cólera, a raiva e a impaciência não cessam de crescer, e com elas a histeria, o desespero e a tentação da renúncia, isto é, da fuga para longe. Ainda que compreensíveis, esses afetos impedem de refletir friamente diante de um monstro cada vez mais frio, cínico e determinado, mas, ao mesmo tempo, cada vez mais consciente de suas fraquezas e, portanto, hesitante.
Essa fraqueza do pensamento e a ilusão de que ele poderia ser compensado pelo ativismo constituem uma das razões mais graves dos impasses atuais.
Qual é de fato o contexto? Um ciclo cultural chega a seu fim, com a aparição na cena social das “gerações perdidas", as primeiras a terem experimentado, sem mediação, a brutalidade neoliberal na África e as destruições que ela causou nesses países negativamente expostos a toda mudança brusca de conjuntura. A maioria dos pertencentes a tal geração foi mal educada, vítimas de uma escolarização vendida. Muitos estão cronicamente doentes, desempregados e são estruturalmente não empregáveis. Com as fronteiras externas se fechando por todas as partes, essas gerações não dispõem mais das mesmas oportunidades de imigração das quais se beneficiaram seus antepassados. As igrejas reabasteceram e funcionaram como catalizadoras do transbordamento da raiva, da ira e do ressentimento. As novas tecnologias fizeram com que essas gerações descobrissem um mundo exterior cativante, mas inacessível por falta de permissão, de vistos e outras autorizações. Uma vez que os Estados africanos assumiram as lógicas territoriais herdadas da colonização, as fronteiras internas se fecharam. Eles estão presos, apreendidos em uma armadilha, cativos em seu próprio país: nem movimento, nem mobilidade, e nenhuma mudança significativa como perspectiva.

 
Niilismo e radicalismo


De todas as respostas ao fechamento das sociedades, três particularmente devem chamar nossa atenção, porque participam de transformações culturais e sistêmicas que terão enormes repercussões no continente nos anos que vêm.
De início, há a resposta cada vez mais pronunciada no local, a demanda crescente de autonomia, isto é, o desejo de separação tanto sob a forma da secessão quanto sob a do federalismo. Um modelo de Estado jacobino, questionado mesmo quando do momento de sua invenção, mostra-se cada vez mais como um perigo para muitas comunidades. Os alinhados a essa resposta se inclinam a pequenas unidades de base que, segundo eles, poderiam servir como contraponto à predação galopante e, sobretudo, como alavanca para um desenvolvimento autônomo e equitativo.
Em seguida, surgem as práticas de deserção notadamente pela imigração ilegal, isto é, o lançar-se a riscos mortais.
O acontecimento sem dúvidas mais marcante é o habituar-se às atrocidades e calamidades, a asfixia das lutas populares e o crescimento do que seria possível chamar de lumpenradicalismo, isto é, uma forma de niilismo que passa por radicalismo. O lumpenradicalismo, cujo crescimento é favorecido pelo acesso às tecnologias digitais, opera por anexação das categorias e linguagens da emancipação e seus desvios para as causas e práticas que não têm mais nada a ver com a busca da liberdade e da igualdade ou com o projeto geral de autonomia.
Por certo, é preciso ser cauteloso e não estigmatizar as práticas populares do político, assim como as formas de resistência dos dominados e subalternos, sobretudo quando essa resistência se exprime nas linguagens e nos rituais há muito rejeitados pelos dominantes. Também é preciso não adotar a atitude inversa, que consiste em glorificar tudo que vem dos subalternos e a eles conferir virtudes que não têm. O lumpenradicalismo se refere às ideias e práticas que, longe de contribuir à emergência de uma esfera pública marcada pela civilidade ou ao aprofundamento da democracia, exibe sobretudo práticas não-libertadoras, com frequência ao serviço de um agente político que se exibe, na ocasião, com atributos heroicos e providenciais.
Para compreender o crescimento do poder do lumpenradicalismo na África, é preciso voltar ao tipo de sujeito que fabricou a tirania pós-colonial, notadamente ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Trata-se, em geral, de pessoas que não conhecem o mundo, que dele só têm uma experiência indireta, a das aparências, sob o signo do mercado que deslumbra e do desejo quase irrepreensível que ele suscita. Por outro lado, temos uma geração que só conheceu a tirania e o patriarcado e que foi inscrita nos sistemas de educação que não educam ninguém e que enganam a todos.
A tirania ensinou essa geração a falar uma língua imunda e destituída de símbolos, a língua desses corpos e dessas existências transformadas em esgotos. Ela produziu inumeráveis personagens rachados, centenas de milhares de vidas divididas em relação às quais atores políticos pouco escrupulosos se consideram hoje, por conta e risco, os porta-vozes. São vidas já consumadas pelo ressentimento ilimitado, pela sede de vingança, pelos atrativos inebriantes de uma festa, pela carnificina e pela violência imbecis às quais, elas creem, são chamadas pelo destino. Essa "geração perdida" estima que a única coisa que nos resta a fazer é combater o fogo com o fogo, a imundície com a imundície, a violência com mais violência, voltando o veneno contra aqueles que o fabricaram.
Por fim, trata-se de uma geração que foi socializada de tal maneira que a brutalidade não lhes parece algo repugnante. De fato, sob os regimes tirânicos da África Central, em particular, o culto da brutalidade passa por intermináveis pequenos rituais de humilhação e pequenas rapinas – ataques de injurias e insultos lançados cotidianamente sobre pessoas de todo desconhecidas, as brigas de rua ou entre vizinhos, castigos corporais nas escolas, vexações e ofensas de todos os tipos, tanto por guardas quanto por motoristas de taxi, por policiais em serviço ou por contadores, o estupro dos espíritos, dos corpos e dos nervos pelo Estado e seus representantes. Esses rituais cotidianos são acompanhados por todos os tipos de punções e subordinações, extorsões e predações. O conjunto forma o dispositivo da corrupção, a qual exige uma utilização fundamentalmente arbitrária da lei, notadamente para fins de enriquecimento privado.
É assim que opera a máquina social e suas regras informais são conhecidas por todos. É preciso passar por elas caso se queira obter o que quer que seja. A competição pelos status sociais visa não à derrubada desses dispositivos, mas a neles se inserir ou a obter privilégios no interior das redes que os controlam. Disso decorre que a tirania é muito descentralizada, quase celular. Cada detentor de uma parcela tão pequena de autoridade a exerce em seu proveito e em proveito de sua rede de protetores. Essa molecularização segmentária da brutalidade acabou por fazer da tirania um sistema totalmente infiltrado nos poros da sociedade e cuja reprodução se faz quase de modo mecânico, mesmo quando da ausência do próprio tirano.
O lumpenradicalismo não tem como projeto transformar radicalmente a sociedade. Ele é uma modalidade da luta social e política. Ele visa à captura do sistema e sua derrocada em prol de um aspirante à tirania ou à assimilação deste último e de seus confidentes no seio do sistema com o objetivo de deste tirar proveito para si mesmo e, eventualmente, para os seus (a grande família, a etnia, o clã ou diversos associados). O Estado, em tal dispositivo, não é nem um bem público tampouco um bem comum. Ele é um bem anônimo sobre o qual têm o monopólio aqueles que dispõem tanto da força quanto dos privilégios ou das redes de proteção, no seio não de uma sociedade de iguais, mas que funciona, no essencial, pela força e pela violência.
No mais, o lumpenradicalismo se distingue pelos seguintes traços: seus principais clérigos têm por hábito reivindicar, quando lhes convém, o estatuto de intelectuais; o lumpenradicalismo se caracteriza por suas inclinações anti-intelectuais. Uma oposição intransponível se estabelece entre a faculdade de pensar e a faculdade de agir. O ativismo (compreendido sob a forma do agir sem pensar) é identificado ao heroísmo. De resto, o desejo de heróis prima sobre toda capacidade de exercício das faculdades críticas. Daí a hostilidade em relação às figuras intelectuais livres.
O outro aspecto do lumpenradicalismo está em levar a cultura da brutalidade ao espaço público e o desejo de subjugação. Isso acontece por meio do uso da violência verbal típica dos movimentos de extrema direita, pela colonização dos fóruns na internet, pela intimidação dos oponentes e críticos e pela ausência de limites na linguagem e nos modos. Típica dessa movimentação é, aliás, a crença segundo a qual o vencedor sempre tem razão, e que em toda luta ou enfrentamento os meios pouco importam, apenas o resultado é que conta. A tudo isso é possível acrescentar: uma concepção anti-igualitária (um grande não é um pequeno); um virilismo e hipermasculinismo exacerbados, e daí as constantes referências aos órgãos genitais masculinos e o denegrir dos supostos atributos femininos, isto é, a identificação de toda mulher a uma prostituta.
O lumpenradicalismo funciona, além disso, pelo esfacelamento da memória das lutas passadas ou por suas fragmentações e usos com a finalidade da divisão. De fato, tudo deve acontecer como se nada jamais tivesse acontecido antes e como se tudo começasse agora. O que quer que tenha sido realizado, tudo o que nos precedeu, nos traiu. Nós seríamos os únicos depositários da única verdade nunca antes revelada. De maneira ainda mais decisiva, o lumpenradicalismo considera o assassinato como a manifestação escatológica de toda mudança política digna desse nome. O grande herói é um assassino ou, ao contrário, um mártir. Ele é o protótipo do homem forte; deve ser capaz de matar ou, por outro lado, suicidar-se, já que o suicídio representa uma forma avançada do martírio.
Trata-se, portanto, de uma violência sem projeto político, que vimos acontecer durante as guerras em Serra Leoa ou na Libéria e, antes, na Etiópia. Está acontecendo na faixa que se estende do Sahel e do Saara até o mar Vermelho. Sob sua forma predatória, também está acontecendo no leste da República Democrática do Congo.


Sair da armadilha


Colocar tudo sobre a mesa. Abrir mil canteiros, mil repositórios de vida. Compreender que toda luta acontece em todos os frontes e que tudo é questão de coordenação e de convergência. Restabelecer o pensamento e, com ele, a capacidade de imaginar novas alternativas, inclusive a capacidade de sonhar com outra coisa que não a morte, seja esta sofrida ou infligida. Pois se nós não pensamos claramente por nós mesmos, outros pensarão em nosso lugar.
O horizonte é, desse modo, claro. Trata-se de refundar a política sobre o princípio da não-violência. Para se chegar a isso, devemos necessariamente mergulhar mais uma vez na memória das lutas que nos precederam e daí retirar lições para o futuro. Além disso, será preciso reeducar o desejo, pois o desejo é veículo privilegiado de toda opressão, o desejo de sua própria perda, do suicídio que reveste os adereços da libertação. Será preciso igualmente reaprender a se organizar, a fazer comunidade, aí onde tudo chama à secessão e à separação. E, sobretudo, será preciso reaprender a cuidar dos cérebros, dos nervos e dos corpos arruinados pela tirania. Esse é também um dos objetivos da educação política.
O papel dos intelectuais não é participar da luta pelo poder. Ainda menos tentar exercê-lo. Seu papel é, precisamente, despojar-se à medida do possível de todo poder, renunciar ao exercício de todo senhorio. Não se trata de interpelar quem quer que seja, mas de se fazer, ao menos uma vez, os mestres da ascese. É sob tal condição que os intelectuais poderão exercer a função de guarda que lhes atribuiu meu mestre Jean-Marc Ela, a função reservada àqueles que não dormem no ponto; ou, como lhes convidava Frantz Fanon, serem companheiros de estrada no caminho de saída de uma longa noite – em uma palavra, servidores e testemunhas de tudo o que vem.

Achille Mbembe. Le lumpen-radicalisme et autres maladies de la tyrannie. Publicado no Le Monde em 28/12/2017. Disponível em: http://www.lemonde.fr/afrique/article/2017/12/28/le-lumpen-radicalisme-et-autres-maladies-de-la-tyrannie_5235406_3212.html  (trad.: Vinícius N. Honesko)

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Realistas de Madri (Thyssen-Bornemisza, 9 de fev. a 22 de maio de 2016)


 Giorgio Agamben 

A mostra que aconteceu ano passado no museu Thyssen-Bornemisza de Madri marcou uma importante data na história da pintura de nosso tempo, pois, dentre outras coisas, impõe a revogação do singular monopólio que uma difusa tendência museográfica pretende ter sobre o sintagma “arte contemporânea". De fato, as obras dos sete pintores e escultores expostas na mostra cobrem um período que vai do fim dos anos cinquenta do século XX até hoje e, portanto, são, sem sombra de dúvidas, contemporâneas. Igualmente indubitável é o fato de  tratar-se de um grupo, no sentido próprio do termo: amizade e solidariedade de formação e de intentos ligam desde o início as quatro mulheres (Isabel Quintanilla, Amalia Avia, Maria Moreno e Esperanza Parada) e os três homens (Antonio, Francisco e Julio López) em uma intimidade tão estreita que é difícil encontrar um equivalente ao grupo em toda a arte do século XX. Entretanto, justamente por isso, eles sempre declinaram qualquer intenção estratégica de “grupo". “Éramos amigos" e isso bastava, mesmo se a amizade fosse por vezes tão intensa a ponto de se transformar em amor: quatro dentre eles (Isabel Quintanilla e Francisco López – que conheci em Roma na Accademia di Spagna no início dos anos sessenta –, Antonio López e Maria Moreno) se casaram. 
A rubrica “realistas de Madri”, que dá título à mostra, talvez soe incongruente (seria como intitular "realistas venezianos” uma mostra que reunisse quadros de Bellini, Tiziano e Giorgione) e prova mais uma vez, como se fosse necessário, que o vocabulário da crítica de arte de nosso tempo deverá, cedo ou tarde, sofrer uma drástica revisão; todavia, os termos realidad, o qual me lembro de ter escutado  Francisco Lopez pronunciar enquanto modelava na argila suas esculturas, e forma real, com que Antonio Lopez nomeia o objeto de sua pintura, por certo designam a estrela polar por meio da qual esses artistas orientam tenazmente seu olhar.
Francisco Calvo Serraler, no catálogo da mostra, observa que o realismo, que começa na metade do século XIX e ainda hoje continua, é talvez o movimento de vanguarda mais duradouro de nosso tempo. A palavra “realismo”, no entanto, tem sentido apenas caso se especifique o que se entende por “realidade” – o que, em particular, tais artistas têm em mente quando falam de realidade. Uma primeira indicação de resposta pode ser oferecida pela frequência com que eles elegem, como tema de suas telas, desenhos, esculturas, portas e, sobretudo, janelas – pensemos, entre outros, na estupenda Noche (1995), em Puerta roja (1978), em El atardecer en el studio (1975) e em La ventana (1970), de Isabel Quintanilla, em La cocina de Tomelloso (1972), de Maria Moreno, em Ventana de noche (1972), de Francisco Lópes, ou ainda em Quarto de baño, de Antonio López. O próprio Serraler oportunamente lembrou que a equiparação do quadro a uma janela a partir da qual se contempla a realidade remonta a Leon Battista Alberti (De pictura, I, 19). Ainda mais singular é que justamente essa janela se torne aqui o objeto da visão do pintor, quase como se, para ele, não se tratasse de representar diretamente a realidade, mas, antes de tudo, a própria pintura. A especial autorização de modernidade desses artistas não consiste, assim, apenas em ter trazido novamente à vida a janela albertiana que a arte moderna havia pretendido excluir da pintura; antes, fazendo dela o tema de suas telas, eles a colocaram em questão com muito mais radicalidade do que as vanguardas de que eram contemporâneos. A realidade – e tal é a mensagem deles – não é o que a janela da pintura representa: real é apenas a coincidência de pintura e realidade na superfície da tela. Por isso, com uma singular inversão, a janela que eles representam não abre à luz e ao mundo visível, mas – como na Noche, de Quintanilla, e na Ventana di Noche, de Francisco Lópes – às trevas da noite. Com razão Guillermo Solana, em sua introdução, fala de uma arte dos umbrais, uma arte das soleiras: como um ícone bizantino invertido, a tela é aí a soleira que coloca em comunicação dois mundos incomensuráveis – que não são mais o terreno e o divino, o typos e o prototypos, mas a própria arte e a própria realidade.  

Giorgio Agamben. Realistas de Madrid, Thyssen-Bornemisza, Madrid (9 febbraio - 22 maggio 2016). In.: Pictura, n. 2. Macerata: Quodlibet, Junho/2017. p. 265-269. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Maria Quintanilla. La Noche. 1995.       

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

A língua da glória - Giorgio Agamben



Da Ética estão disponíveis hoje nas livrarias várias traduções ao italiano, mas nenhuma acompanhada do texto original latino. E a filosofia tem em comum com a poesia o vínculo indissolúvel e quase "musaico"[1] que a liga à língua original (não importa se materna ou adquirida). Isso não apenas porque, como já se disse, a terminologia – tão importante na filosofia – é algo como o momento poético do pensamento, mas também, e sobretudo, porque a operação que a filosofia realiza diz respeito acima de tudo à linguagem, é um caminho na língua, através da língua e em direção à língua. Por isso, ler filosofia sem nem ao menos a possibilidade de verificação no texto ao lado é simplesmente impossível.
É nessa perspectiva que devemos olhar para o latim de Spinoza, aparentemente tão resignado e escolástico, que estudos recentes mostram estar repleto de sintagmas terenzianos[2] – portanto, cômicos e de registro baixo. Esse latim não é de modo algum redutível a uma língua instrumental – a língua dos doutos europeus, por certo mais acessível que o português (provável língua materna do filósofo, mesmo se nos exemplos de Compendium Hebraicae linguae ele parece preferir recorrer ao ladino, o espanhol falado pelos sefarditas) e o holandês, esta que, ainda assim, Spinoza utiliza no Breve tratado. Gilles Deleuze certa vez comparou o latim de Spinoza a uma "embarcação sem idade" que, imperturbável, segue o eterno e incomparavelmente sereno rio de seu pensamento. Não é assim (é o próprio Deleuze a sugerir). A língua aparentemente neutra da Ética está em relação de absoluta intimidade com a operação de pensamento que nela se realiza; operação da língua e operação do pensamento são, aliás, de algum modo discerníveis. Mas de que operação se trata?
O que define a operação mais própria do pensamento de Spinoza, seu gesto característico, é que ele se assemelha de maneira singular a uma inoperosidade, a um desativar, a um aquietar. O próprio Spinoza chama essa inoperosa operação acquiescentia in se ipso e a define "uma alegria nascida disso, que o homem contempla a si mesmo e a sua potência de agir". Já se sugeriu que Spinoza poderia aí ter sido influenciado por Uriel da Costa, que com frequência usa o adjetivo descansada[3] a respeito da alma. É mais provável que nessa plena contemplação da própria potência se possa escutar um eco da menuchah hebraica, do descanso sabático de Deus depois da obra da criação. Filão já havia observado que a inoperosidade (anapausis, Paulo dirá Katapausis ou sabbatismos) de Deus não significa apenas inércia ou apraxia, mas indica uma forma particular de agir. E é notório que, na interpretação rabínica, no sábado estão proibidos apenas as obras produtivas: uma obra de pura destruição seria permitida. A verdadeira festa não é imobilidade e repouso; é, antes, o gesto que desativa e torna inoperosas todas as obras dos homens. Spinoza chama "contemplação da potência” uma inoperosidade interna, por assim dizer, à obra, uma praxe sui generis que consiste em expor e tornar inoperosa toda potência de agir e de fazer. E essa inoperosidade, diz Spinoza, é a máxima felicidade que a mente pode atingir.
Como pensar, então, uma acquiescentia in se ipsa da língua? Se transpomos para a língua a definição spinoziana, teremos aí uma língua que contempla a si mesma e a própria potência de dizer. Uma língua em estado de menuchah e sabatismo, que torna inoperosa e expõe de maneira festiva todas as suas possibilidades de dizer. O simples e escolástico latim de Spinoza (não por acaso uma língua não mais falada, como o hebraico) é essa língua que não quer mais dizer nada, mas contempla a própria potência de dizer. Como um templo em ruínas perdido em uma paisagem desabitada, ela não parece dirigir-se a ninguém e nem mesmo pedir para ser escutada. Repousa em si mesma, beata.
Por isso Spinoza pode escrever – com uma intenção polêmica e ao mesmo tempo irônica, cujo objetivo talvez ainda não tenha sido compreendido – que a “aquiescência" não se distingue da glória (re vera... acquiescentia a gloria non distinguitur). A "glória" que aí está em questão é o kabod da tradição hebraica, o terrível e deslumbrante esplendor que acompanha as aparições de YHWH na Bíblia. A mente e a língua em estado de aquiescência são "gloriosas”, mas se trata de uma glória que perdeu seu caráter ativo e tremendo e agora é simplesmente a auréola imperceptível que mostra sua inoperosidade. O latim da Ética é essa glória.

Giorgio Agamben. La lingua della gloria. In.: Baruch Spinoza. Etica. Texto latino da edição crítica de Carl Gebhardt. Trad.: Gaetano Durante. Prefácio: Giorgio Agamben. Macerata: Neri Pozza, 2014. pp. 7-9.  




[1] N.T.: Referente às musas.
[2] N.T.: Trata-se de uma referência a Terentianus, poeta latino nascido na Mauritânia que viveu provavelmente no final do século II d.c.. Escreve três livros importantes no que diz respeito à gramática latina: De letteris, De syllabis, De metris. No primeiro, trata da escritura e pronúncia das vogais e consoantes, no segundo retoma a temática do primeiro e acrescenta um estudo sobre os ditongos e sílabas e no terceiro, incompleto, expõe a teoria da métrica e breves noções de prosódia.
[3] N.T.: Em português no original.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Por que não assinei o apelo sobre o ius solis? - Giorgio Agamben


Ao que parece, ainda que eu tenha declarado expressamente que não pretendia assinar o apelo sobre o ius soli, meu nome de alguma forma foi nele inserido de modo ilegítimo. As razões de minha recusa obviamente não dizem respeito ao problema social e econômico da condição dos imigrantes, face ao qual compreendo toda importância e urgência, mas à própria ideia de cidadania. Estamos tão habituados a dar por certa a existência desse dispositivo que nem mesmo nos interrogamos sobre sua origem e significado. Parece-nos óbvio que cada ser humano, no momento de seu nascimento, deva ser inserido em um ordenamento estatal e, desse modo, encontrar-se sujeitado às leis e ao sistema político de um Estado que não escolheu e do qual não pode mais se desvincular. Aqui não é o caso de traçar uma história desse instituto, que atingiu a forma que nos é familiar apenas com os Estados modernos. Tais Estados chamam-se também Estados-Nação porque fazem do nascimento o princípio da inscrição dos seres humanos em seu interior. Não importa qual seja o critério processual dessa inscrição, o nascimento de genitores já cidadãos (ius sanguinis) ou o lugar do nascimento (ius soli). O resultado é, em todo caso, o mesmo: um ser humano se encontra necessariamente sujeito de uma ordem jurídico-política, qualquer que seja ela naquele momento – a Alemanha nazista ou a República Italiana, a Espanha falangista ou os Estados Unidos da América –, e deverá, de tal momento em diante, respeitar as leis e receber os direitos e obrigações correspondentes desse Estado.
Estou perfeitamente ciente de que a condição de apátrida ou imigrante é um problema que não pode ser evitado, mas não estou seguro de que a cidadania seja a melhor solução. Em todo caso, a meu ver, ela não pode ser algo de que se orgulhar e um bem a ser partilhado. Se fosse possível (mas não o é), assinaria com prazer um apelo que convidasse a abjurar a própria cidadania. Segundo as palavras do poeta: "a pátria será quando todos seremos estrangeiros”.

18 de outubro de 2017. 

Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-perch-on-ho-firmato-l-appello-sullo-ius-soli (Trad.: Vinícius N. Honesko)
 
Imagem: Filme Fuocammare, direção: Gianfranco Rosi (2016)

terça-feira, 26 de setembro de 2017

O verdadeiro karma do Ocidente

Chiara Valerio entrevista Giorgio Agamben.
Se nesta vida respondemos por nossas ações através um sistema de leis e na outra por elas respondemos, segundo o budismo, através de reencarnações sucessivas, o motivo está – escreve Giorgio Agamben no ensaio Karman – no fato de que moral religiosa, direito e ética fundam-se sobre o princípio de que cada ação é ligada às suas consequências e a tal princípio

Há alguns anos Agamben dividiu o mundo em dois grupos. Os seres viventes e o conjunto de instituições, saberes e práticas que controlam e orientam os gestos e os pensamentos dos seres viventes: os dispositivos.

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Professor, o direito – cujas portas, se fosse um edifício, seriam a causa e a culpa – é um dispositivo do qual é preciso subtrair-se?

Agamben: O direito é uma parte demasiado essencial de nossa cultura para que seja possível simplesmente dele se subtrair. Também é verdade, no entanto, que o nascimento do cristianismo coincide com uma crítica implacável da Lei. É difícil imaginar uma objeção mais radical do que a contida nas afirmações de Paulo, para quem a sem lei não existiria pecado e o messias é o fim e o cumprimento (o telos) da lei. Todavia, como você sabe, a Igreja de modo paciente reconstruiu o edifício da lei que o cristianismo primitivo pretendia ter colocado em questão, mesmo se pontualmente fenômenos como o franciscanismo tenham por vezes reivindicado a possibilidade de uma vida fora do direito. Penso que uma sociedade vivível possa resultar apenas da dialética de dois princípios opostos e, de algum modo, coordenados: o direito e a anomia, um polo institucional e um não institucional ou anárquico – ou, para usar suas expressões, os seres viventes e os dispositivos históricos. Isso é evidente na linguagem: uma língua viva resulta da relação harmônica entre espontaneidade (o "falar materno” de Dante) e regra (a língua "gramática" de Dante). Parece-me que hoje essa dialética esteja por toda parte – tanto na língua como nas relações sociais – distorcida e esfacelada.

O senhor escreve “a vontade age como um dispositivo cujo escopo é o de tornar controlável o que o homem pode fazer". Também a vontade é um dispositivo do qual escapar?

Agamben: No livro procurei justamente mostrar que o conceito de vontade (quase desconhecido no mundo antigo) é o dispositivo por meio do qual a teologia cristã pretendeu fundar a ideia de uma ação livre e responsável e, portanto, imputável a um sujeito: é o "livre arbítrio" que define tanto a ação humana quanto a divina (o Deus cristão não age por necessidade como o deus de Aristóteles, mas por arbitrium voluntatis). A vontade é o mistério insondável que está na base do conceito de ação legalmente sancionável (o crimen-karman) sem o qual a ética e a política moderna se arruinariam. Se o homem antigo é um homem que pode, o homem moderno é, ao contrário, um homem que quer. Em meu livro a crítica do primado do conceito de ação procede assim concomitantemente a uma crítica do conceito de vontade. Sempre me espantou que de Aristóteles a Hannah Arendt a ideia de ação sempre tenha permanecido de modo imutável no centro da tradição do ocidente. Não sei se consegui, mas, de todo modo, tentei mover para outra parte o lugar da ética e da política.

Permanecemos na evolução do “o homem que pode” ao “o homem que quer”. Marina Cvetaeva observava que “Não posso” é a superação de todos os meus "não quero", o corretivo de todos os meus quereres. Que relação deveria haver entre vontade e potência hoje?

Agamben: Respondo com as palavras de uma outra grande poeta russa. Anna Akmatova conta que, nos anos das perseguições, enquanto por meses ficava na fila diante da prisão em Leningrado, onde estava preso seu filho, uma mulher um dia a reconheceu e lhe perguntou: “pode dizer isto?". A poeta se calou por um instante e, então, sem saber como e porque, sentiu aflorar nos lábios a resposta: “sim, eu posso.” O que pretendia dizer? Por certo, não que tinha um tão grande talento ou uma tão grande maestria sobre a língua a ponto de poder dizer tudo o que queria dizer. Aquele “eu posso” não se referia a nenhuma certeza ou habilidade e, todavia, empenhava-a e colocava-a integralmente em jogo. É algo do gênero que tinha em mente Spinoza quando definiu a maior alegria acessível ao homem como a contemplação do que se pode fazer. Por isso a transformação cristã e moderna da potência em vontade me parece deletéria.

Landau, em “A física para todos", observa: “Se de repente o peso de papel dá um salto, vocês pensariam estar vendo coisas. Se isso se repete, vocês se colocariam imediatamente a procurar a causa que tira esse corpo do estado de repouso. Por isso é natural considerar racional o ponto de vista segundo o qual os corpos em repouso não se movem sem a intervenção de uma força". É racional pensar que os corpos humanos não se movam, não realizam ações, sem a intervenção de um fim?


Agamben: No livro, a crítica do fim é inseparável daquela feita à ação. Um dos pressupostos que estamos habituados a considerar como certo é que toda ação seja dirigida a um fim e que isso seja o bem a que o agente, a cada vez, necessariamente se propõe. Desse modo, uma vez que o fim é concebido como algo transcendente ou até mesmo externo, o bem é separado do homem. Como me parece mais convincente, a ideia epicurista segundo a qual nenhum órgão do corpo humano fora criado com vistas a um fim e que toda coisa que nasce gera no uso seu bem! Por meio do gesticular a mão encontra seu prazer e seu uso, por meio do olhar o olho se enamora da visão e as pernas, dobrando suas articulações, inventam a caminhada. De resto, é o que vemos acontecer nas crianças e é o que nos sugerem as artes como a dança, que não têm outro fim senão a pura exibição de um gesto, daquilo que um corpo pode fazer. Por isso procurei substituir o paradigma da ação que se dirige a um fim por aquele do gesto que se subtrai a toda finalidade.

Um filósofo disse que definir os termos é o momento poético do pensamento. Como o senhor definiria o fim?

Agamben: Dou uma resposta ao mesmo tempo estoica e zen: o fim é o que se atinge apenas com a condição de jamais se determinar um fim.

Se “age contra a lei quem faz aquilo que a lei proíbe” e se “não há pena sem culpa", o que nasceu primeiro: a culpa, a lei ou a sanção?

Agamben: Como Paulo havia compreendido ("a lei veio para que a culpa abundasse”), todo jurista inteligente sabe que o princípio segundo o qual "não há pena sem culpa" é, na realidade, invertido naquele segundo o qual "não há culpa sem pena”. "Não há pena sem culpa” significa que a pena pode ser infligida apenas como consequência de certo ato, mas a culpa existe somente em virtude da pena que a sanciona. A sanção não é acessória à lei: a lei consiste essencialmente na sanção.

Em “O Nome da Rosa” Eco conta que o volume da comédia de Aristóteles jamais foi encontrado porque tratava do riso, e o riso cria desordem. Em Karman o senhor (como já Guilherme de Baskerville) deduz isso a partir do volume a respeito a tragédia e mesmo levanta a hipótese de que Aristóteles o teria escrito para dirigir uma crítica a Platão. Qual?

Agamben: Na Grécia o conceito de uma ação culpada é elaborado pela primeira vez por meio de uma reflexão sobre o herói trágico. É o que faz Aristóteles na Poética quando escreve que a felicidade consiste na ação e que na tragédia os homens não agem para imitar os caráteres, mas assumem livremente seu personagem através das ações. Mesmo se Aristóteles não tenha completado seu tratamento da comédia, podemos deduzir que o personagem cômico age, ao contrário, para imitar seu caráter e que, por isso, suas ações jamais podem a ele ser imputadas sem uma culpa. Platão, que tinha sob o travesseiro não as tragédias, mas os mimos de Sófron, faz com que seu herói antitrágico, Sócrates, diga que “ninguém faz o mal voluntariamente”, o que implica a impossibilidade da tragédia.

A filosofia se interessa antes de tudo pelo ser, mas o ser mostra-se de pronto com suas “qualidades”: possibilidade, contingência e necessidade. O senhor observa que é necessário refletir sobre a utilização que a filosofia faz dos verbos modais: "posso”, “quero”, “devo”. Vou expor em algumas palavras um tanto arriscadas. A língua da política, aderindo (às vezes mesmo nos corpos) à televisiva, progressivamente aboliu as subordinadas, as “qualidades” das frases: modais, temporais, causais. Sem essas “qualidades” somos obrigados a um falar (e a um agir) privado de consequências. Existe um modo de manter a complexidade da linguagem e não permanecer fechado no presente do indicativo (e televisivo) do estar no mundo?

Agamben: Se sua pergunta é de ordem poética-literária, então respondo com os poemas tardios de Hölderlin, nos quais os nexos sintáticos são abolidos e suspensos, e no verso parece que sobrevivem apenas nomes em seu isolamento (por vezes, até mesmo uma só partícula: aber, que significa "mas”). Há na poesia uma tradição, de Arnaut Daniel a Mallarmé, que tende obstinadamente não à frase, mas ao nome – aliás, talvez, em última análise, toda poesia é apenas uma tensão em direção ao nome, o qual, por definição, é subtraído a toda articulação modal. Se sua pergunta é de ordem ético-política, responderia então que se trata de desfazer o nexo perverso entre os três verbos modais que Kant colocou como fundamento de sua ética: “se deve poder querer”. Essa frase monstruosa é o condensado paródico dos dispositivos que meu livro procura desativar.

Na orelha do livro se lê "Giorgio Agamben ensinou Filosofia teorética... foi visiting professor...”. Se eu perguntasse sobre dados biográficos no tempo presente? 
Agamben: Responderia ao modo de Spinoza: “contempla o que pode e o que não pode fazer". Sempre amei o mote maravilhoso de van Eyck: “Als ich kann”, “como posso”. Conhecer os próprios limites significa conhecer a medida da própria potência e da própria impotência. 
Imagem: Bhagavata Purana - Manuscrito - 1520-40. Museu Rietberg, Zurique.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O arqueólogo e o historiador



A obra de Giorgio Agamben e de Patrick Boucheron se desenvolveram a uma boa distância uma da outra. O que há de comum entre o filósofo italiano e o historiador francês? Talvez justamente aquilo que parece separá-los: a língua – as línguas: o italiano e o francês que eles compartilham. Mas também o “terreno”, não exclusivo mas preferido, de uma Itália medieval e renascentista que eles percorrem. E sobretudo a importância que eles concedem à escrita e à variedade de seus regimes no exercício do pensamento. Há também, tanto em um como no outro, uma convicção que resume o termo foucaultiano arqueologia: é preciso interrogar as tradições da história caso se queira forjar conceitos para descrever o presente. E essa arqueologia, tanto Agamben como para Boucheron, é indissociável de uma inquietude política.

Critique tomou a iniciativa de lhes propor a entrada em um diálogo que prosseguiu por todo o outono de 2016. Essa entrevista, por questões e respostas, se desenrolou sem protocolo nem programa preestabelecido, sem fim previsto: ela foi interrompida (suspendida?) apenas pelo “fechamento” deste número especial. Ela não é a conclusão, mas a fermata[1].

Patrick BOUCHERON. – Na advertência de
O Uso dos Corpos, você explica como esse livro conclui e não conclui o grande empreendimento de Homo sacer. Pois uma tal pesquisa, você diz, “como toda obra de poesia e de pensamento, não pode ser concluída, mas apenas abandonada e, eventualmente, continuada por outros”. Nós devemos falar do abandono – e notadamente de suas implicações políticas. Mas detenhamo-nos inicialmente ao que você sugere como uma eventualidade: uma vez que você tem uma ideia tão elevada, quero dizer tão soberanamente poética, do ato de pensar, o que você pode esperar dos “outros” para inspirar, acompanhar e continuar sua obra?

Giorgio AGAMBEN. – Seria preciso subtrair de sua questão toda implicação psicológica, que estaria deslocada. Eu digo isso porque sempre me criticam por certo pessimismo – ou, o que dá no mesmo, por um exagero de otimismo. Não se trata também de esperança ou de seu contrário, pois se perdermos as esperanças nos outros – como nós estamos hoje totalmente autorizados a fazer – perdemos também as esperanças em si mesmos e caímos assim na psicologia.

De início, seria necessário precisar quem são os “outros”. Eles certamente não são a posteridade. Os outros, pelo contrário, eu os concebo num futuro anterior, quer dizer, como um passado no futuro ou um futuro no passado. Eles são, para retornar à sua questão, aqueles que serão tornados possíveis quando o trabalho arqueológico do pensamento tiver sido abandonado e não acabado. E esse passado futuro é o único presente que nós podemos alcançar, se é verdade – como é verdade – que toda história é sempre história contemporânea. Nesse sentido, os outros já estão aí, eles estão sempre a acontecer, mesmo se eles aí não estão e se aí jamais estiverem.

Para dizer de outro modo, os “outros” não proveem de uma necessidade – eles são da ordem daquilo que eu chamo uma exigência, eles são o que o pensamento exige, independentemente de sua existência factual. E a exigência é para mim a categoria filosófica por excelência. É em uma exigência desse gênero que deveria pensar Averróis quando dizia que a espécie humana exige que sempre haja um filósofo para se unir ao único intelecto separado.

Patrick Boucheron. – Um só filósofo, isso pode bastar, de fato diz Averróis: sempre haverá um filósofo no mundo. Mas, ao mesmo tempo, Averróis coloca o pensamento no exterior, quer dizer fora da interioridade do sujeito. Pouco importa então quem pensa, pouco importa quem sabe, o que importa é que se pense e que se saiba – e relativamente à espécie humana, tudo já é sabido. É essa a exigência da filosofia tal como você a concebe? Mas, nesse caso, como pode ela suportar uma forma de vida tão radicalmente anti-heroica? Dito de outro modo: de que maneira a sua escrita filosófica aceita a soberania do nome próprio?


Giorgio AGAMBEN. – Creio que seria necessário inverter a opinião atual que define o averroísmo pela separação entre os indivíduos e o pensamento. Parece-me, antes, que o verdadeiro problema de Averróis consiste em reunir o que ele separou, quer dizer o que ele chama de copulatio, a união íntima entre hic homo e o intelecto separado. A solução que ele dá é que o que torna possível a copulatio são os fantasmas que se encontram no indivíduo, isto é, a imaginação. Eu compartilho inteiramente dessa ideia. O que possibilita o pensamento é a imaginação, e a imaginação é aquilo que é mais próprio a cada homem. Dito de outro modo, o pensamento não pertence verdadeiramente ao indivíduo, mas por meio de seus fantasmas este pode se unir a ele e marcá-lo com algo como uma assinatura – com a condição de que os fantasmas desapareçam imediatamente no ato de pensamento.

Patrick BOUCHERON. – Retornemos a essa exigência, que faz, para Averróis, do sujeito o lugar suficiente e insuficiente do pensamento. Que consequência ela pode ter sobre nossa forma de vida? Eu penso no modo como você comenta, ainda em O Uso dos Corpos, a respeito do que dizia Guy Debord sobre a “clandestinidade da vida privada”: ela nos acompanha como um passageiro clandestino, quer dizer, de maneira separada e inseparável e, no entanto, você diz que é talvez nessa “presença homônima, indistinta, à sombra” que reside o segredo da política.

Giorgio AGAMBEN. – É em um de seus primeiros filmes que Guy evoca “essa clandestinidade da vida privada da qual sempre só possuímos documentos ínfimos”. É dessa demasiada íntima vida clandestina que Guy, como aliás toda a tradição política do Ocidente, não conseguiu dar conta. E, no entanto, a ideia de “situação construída” implicava a possibilidade de encontrar algo como o que ele chamava “a passagem ao Noroeste da geografia da verdadeira vida”. E se, em seus filmes como em seus livros, Guy volta à sua biografia, ao rosto de seus amigos e aos lugares onde morou, é, creio, porque ele sentia, de modo intuitivo, que era justamente aí que se ocultava o arcano da política, diante do qual toda biografia e toda política só poderia naufragar. O elemento político autêntico insiste na clandestinidade da vida privada, mas se a tentarmos agarrar ela nos deixa entre as mãos apenas o insípido e incomunicável cotidiano. Na verdade, era o significado político dessa clandestinidade – que Aristóteles havia ao mesmo tempo incluído e excluído da cidade – que eu desde o princípio tentei interrogar. Também eu procurava, à minha maneira, a passagem ao Noroeste na geografia da verdadeira vida.

Patrick BOUCHERON. – Falemos justamente de uma outra passagem, aquela que nos leva de uma investigação a outra. Como você trabalha? É sempre um livro que remete a um outro ou você se deixa levar por um filme, uma obra, uma conversa? Você sabe como chegam até você suas ideias e por que você se fecha repentinamente nesta ou naquela biblioteca – agora a literatura patrística, depois as regras franciscanas?

Giorgio AGAMBEN. – Em cada um dos livros que escrevi ou que abandonei há sempre um não dito que exige ser retomado e desenvolvido, como em toda vida há algo de não vivido que procura não tanto ser vivido, mas não ser esquecido. Mesmo se frequentemente não estou consciente disso, é isso, creio eu, que me obriga, como você diz, a me fechar – ou antes a me perder – nesta ou naquela pesquisa, nesta ou naquela biblioteca. É então do passado que vêm as ideias e é por isso que a investigação arqueológica é sempre duplicada por uma outra arqueologia, mais íntima e mais secreta.

Patrick BOUCHERON. – Essa outra arqueologia, “mais íntima e secreta” tem a ver com o ascetismo? Se a política da inoperosidade visa a essa deposição ou a essa destituição que você parece defender, a potência radicalizada em “potência de não” escava algo diferente de um pequeno refúgio de contemplação onde nós trabalhamos para nos tornarmos ingovernáveis?

Em outras palavras, o que quero perguntar é se você perdeu toda esperança política nas capacidades do instituído de nos assegurar uma vida coletiva desejável, uma vez abrandados ou debilitados os impulsos sempre relançados da energia instituinte? Eu penso evidentemente na democracia, mas não apenas.

Giorgio AGAMBEN. – Você toca numa questão – a da relação entre a instituição e a destituição na nossa sociedade – que decorre da própria constituição da cultura humana. Um bom exemplo é a linguagem. É algo essencialmente duplo, compartilhado, como nos dizem os linguistas, entre um ato espontâneo de discurso individual (é a “fala” de Saussure) e uma instituição muito complexa que se chama “língua”. À diferença da fala, esta não é algo de imediato, mas uma instituição, no sentido próprio do termo, constituída por meio de um trabalho secular de análise e reflexão. Ora, todo verdadeiro ato de linguagem resulta de uma dialética entre esses dois polos inseparáveis e heterogêneos: se o lado instituído se torna exorbitante, teremos frases estereotipadas e uma comunicação inerte.

Da mesma forma, creio que toda sociedade humana resulta de uma dialética entre um polo institucional e um polo que nós podemos chamar, por comodidade, destituinte ou não instituído (convém precisar que o polo instituído não coincide necessariamente com as instituições estatais). Se a dialética entre os dois polos permanece viva, a sociedade será viável; se, ao contrário, como ocorre hoje nas democracias pós-industriais, o polo instituído cresce e se tecniciza até sufocar o outro, a vida política se torna impossível.

Fica claro que não se trata de preservar um pequeno refúgio de contemplação, mas, ao contrário, de tornar possível a vida política. A contemplação de que você fala seria, nesse sentido, uma atividade política por excelência.

Patrick BOUCHERON. – Há um contraste na sua obra entre os trabalhos breves e incisivos (frequentemente decorrentes de conferências ou de seminários) e os seus livros arquitetados como tratados. Como você sente esse duplo regime de escrita? E no caso de Homo sacer, o que você espera da reunião em um só volume de diferentes livros cuja ordem de aparição não correspondia à sem dúvidas complexa numeração elaborada posteriormente? Trata-se de fato de uma reordenação ou de um meio de se criar outras surpresas, de percorrer diferentemente L´Aventure (para retomar o título de um pequeno livro recentemente traduzido em francês)?

Giorgio AGAMBEN. – É importante precisar que esses volumes não foram reunidos posteriormente; eles respondiam a uma concepção – ou, se você quiser, a uma “aventura” – que era presente desde o início. Quanto ao duplo regime de minha escrita, creio que há algo que é consubstancial à filosofia. A história da “forma” filosófica – ou da filosofia enquanto gênero literário – está ainda por ser feita. O caso de Platão é nesse sentido exemplar. No momento em que ele escolhe (inspirando-se em um gênero de prosa absolutamente menor, os mimos de Sófron) o diálogo como forma filosófica, Platão tinha atrás de si a tradição dos fisiólogos pré-socráticos, que escreviam, como Parmênides, poemas nos quais o autor não se colocava o problema da forma e tomava diretamente a palavra em primeira pessoa com o shifter “eu”. É contra isso que Sócrates, no Fédon, explica que não seria possível falar simplesmente da natureza, mas que era preciso antes de tudo “buscar nos discursos, nos logoi, a verdade dos entes”. Como dizia Kojève, a filosofia é esse discurso que, falando de algo, deve falar também do fato de que se está falando desse algo. É por isso que o diálogo se torna em Platão uma forma extremamente complicada, na qual com frequência alguém relata um diálogo que aconteceu antes, o que faz com que a forma dialógica se duplique em uma narrativa interna, que a interrompe e a subtrai à toda ficção teatral. Daí também a falsa lenda segundo a qual, ao lado dos diálogos exotéricos, destinados ao não-iniciado, teria havido na Academia escritos esotéricos, destinados aos alunos. Creio, ao contrário, que exotérico e esotérico, discurso sobre as coisas e discurso sobre a linguagem não cessam de se cruzar e de se separar na fala filosófica.

Patrick BOUCHERON. – A propósito dessa fala filosófica, volto à reedição em um só volume de
Homo sacer que permite atravessá-lo inteiramente a partir do index de nomes. O de Émile Benveniste, por exemplo, permite uma experiência de leitura singular. Percebo o quanto a reflexão (ou o devaneio) etimológico serve frequentemente de trampolim à sua argumentação – é também o caso, por exemplo, de O que é o comando? A arkhé das palavras é ao mesmo tempo começo e comando?

Giorgio AGAMBEN. – Desde o meu primeiro encontro com ela, no final dos anos 1960, a obra de Benveniste jamais cessou de me acompanhar. O que então me tocou especialmente é o momento em que Benveniste se torna cada vez mais consciente da insuficiência da semiologia saussuriana e radicaliza a oposição saussuriana entre “língua” e “fala” como fratura insuturável entre o semiótico e o semântico. A linguagem humana é dividida, nós o vimos, em dois planos inseparáveis e, ao mesmo tempo, incomunicáveis, e é essa ruptura que Benveniste procurou ultrapassar, sem o conseguir, nos últimos anos de sua vida. Há nele um enunciado incontornável sobre o qual eu não cessei de refletir: “O mundo do signo é fechado. Do signo à frase não há transição, nem por sintagmação, nem de outro modo. Um hiato os separa”. A filosofia foi para mim o esforço que consiste na superação dessa cisão, em encontrar para a língua uma voz e uma matéria.

Patrick BOUCHERON. – Os historiadores dos textos que você mobiliza em sua investigação filosófica (em particular a literatura patrística em O Reino e a Glória, as fontes litúrgicas em Opus dei ou as regras monásticas em Altíssima pobreza) com frequência se fascinam – e por vezes se irritam – com sua capacidade de atravessar a camada de interpretações acumuladas na literatura erudita para ir direto à fonte. Como você assimila isso? Por que você sempre deseja, em um momento, encontrar-se a sós com a fonte? Você acha que o trabalho de pesquisa poderia resultar do mesmo mistério da literatura, tal como você o evoca magnificamente em O Fogo e a Narrativa?

Giorgio AGAMBEN. – Você acaba de tocar em um ponto absolutamente decisivo, que concerne à significação que tem para mim o trabalho do filólogo. O título da obra prima de um grande filólogo italiano, Giorgio Pasquali, é nesse sentido instrutivo: História da tradição e crítica do texto. O acesso ao texto que queremos ler só nos é permitido pelo conhecimento crítico da tradição que o transmitiu até nós, e ele quase nunca é o original; esse texto é apenas o que nós podemos alcançar remontando a contrapelo a história de sua tradição. Daí para mim a lição política da filologia. O que ela nos mostra é que nós recebemos sem exceção nossa cultura – como aliás nossa língua – através de uma tradição histórica, que já está sempre mais ou menos conscientemente alterada e corrompida. O original não é o que o filólogo chama de arquétipo: à diferença deste, o original não se situa no passado, mas acontece no presente, no instante em que o filólogo se mede com a tradição num corpo a corpo que é necessariamente político e filosófico ao mesmo tempo. E é aqui que se insere o que eu gostaria de chamar, com Michel Foucault, de ponto de surgimento, que não coincide exatamente com a fonte que a tradição nos transmitiu. E é nesse ponto que o arqueólogo se separa do historiador, com o qual ele compartilhava até então o caminho e o método.



[1] N.T.: Fermata, também conhecida por Suspensão em italiano, significa parada. Trata-se do equivalente em português para a expressão “point d´orgue”, como se encontra na entrevista original. A expressão também remete às passagens mais intensas do diálogo que estão aqui relatadas. 

Fonte: « L’archéologue et l’historien. Dialogue avec Giorgio Agamben », Critique 2017/1 (n° 836-837), p. 164-171.
Artigo disponível em: http://www.cairn.info/revue-critique-2017-1-page-164.htm  
Tradução: Benjamin Brum Neto 
Revisão: Vinícius N. Honesko
Imagem: Ticiano. A punição de Marsias. 1570-76. National Museum, Kroměříž.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Impossibilidade absoluta de conformar-se


Eu escrevo na impossibilidade absoluta de conformar-me. A maioria dos que você chama de "mandarins bem-pensantes da cultura" não passa de um bando de galinhas assustadas. Eles tentam fazer pressão sobre minhas assumidas irregularidades de comportamento, como forma de me enquadrar. Se eu me enquadrasse, eu ganharia página inteira na imprensa conformista. Eles gostariam que eu calasse sobre tudo, mas eu não me calo sobre nada. Para essa canalha, o meu pecado é eu ser poeta & intelectual na total insubordinação. Roberto Piva. Antropofagia e outros escritos. São Paulo: Córrego, 2016. p. 10.  


Os mandarins execrados por Piva disseminaram-se como hordas por todos os cantos do país. Um tempo em que a própria direita-escrota adota triunfante um estilo descolado. Como continuar um professor da classe rica branca e fadada ao mandarinato tecnocrático em meio ao golpe, à miséria econômica, política e intelectual que veio à tona num país de canalhas empoderados? É preciso escrever e lutar e cuidar das rotas de fuga. Na insubordinação total. É preciso matar temer e mendes que coabitam parasitariamente em nossa psiquê. No servilismo diário ao troco de vinténs, smartquinquilharias e subaposentadorias. No calar-se nosso de cada dia. No culto aos heróis paulistanos & cariocas e suas formas-de-vida condominiais. A esquerda acadêmico-safatleana não salvará nem a si mesma. Ir ao interior do interior do interior. Brigar em bares sujos. Cuidar de suas armas, amar e criar. Milhares e milhares de quilombos. Não se negocia com escravocratas! Era improvável que permanecessem tanto tempo nessa região inóspita e estéril, sem nada além de suas próprias forças e entusiasmo. Mas era sua única e real rota de escape. Continuar apenas pela impossibilidade absoluta de conformar-se. O Brasil é mais vasto que suas misérias e representações.   


imagem: guerreiras amazonas, Jean Cousin (1522-1595). 

segunda-feira, 3 de julho de 2017

O valor da desenvoltura - Massimo De Carolis




O espírito do liberalismo clássico está ligado, sem sombra de dúvidas, à reivindicação de uma aliança paritária e horizontal entre os membros individuais da comunidade contraposta às estruturas verticais que, ainda em pleno século XIX, eram endossadas por todo gênero de autoridade constituída: tanto a política quanto, e não menos, a moral e a religiosa. A ideia liberal era que a desenvoltura[1] dos indivíduos, deixados livres para perseguir os próprios fins subjetivos, pudesse gerar uma ordem espontânea, maleável e criativa, em benefício de todos. E que a rede de privilégios autorizados pela ordem constituída só poderia reprimir e frear a dinâmica criativa, em nome de hipotéticos valores coletivos na realidade modelados sob medida por meio do poder exercido pelas classes dominantes. A economia – que, à época, significava a indústria, o comércio e a circulação de mercadorias – valia como exemplo comprobatório de quanto uma similar ordem espontânea era superior àquela passível de se obter por meio do comando. Tal modelo de liberalismo econômico parece ter falido de modo irreparável nos anos entre as duas guerras mundiais e, entre as tantas respostas mais ou menos radicais para tal falência, o neoliberalismo foi a única a manter-se fiel à intuição de partida: a superioridade da ordem espontânea em relação a qualquer possível configuração da ordem constituída. Explicar a falência dos mercados e para eles projetar uma reviravolta adequada à profundidade da crise torna-se assim o problema candente. Em certo sentido, a resposta neoliberal já estava implícita no ponto de partida. Se a ordem espontânea havia falido apesar de sua intrínseca superioridade, a única explicação para isso era a de que grupos e sujeitos mais ou menos organizados tivessem conseguido abusar dela, manipulando a dinâmica espontânea exclusivamente em proveito próprio e, assim, às custas da desenvoltura coletiva. Apontar o dedo contra a especulação e os monopólios ou, da mesma forma, contra as organizações sindicais e os grupos de pressão com caráter explicitamente político mudava pouco as coisas, naquela altura, do ponto de vista lógico. A receita ainda permanecia a de criar as condições técnicas e jurídicas para que o mercado pudesse estabelecer de maneira unívoca e objetiva o valor efetivo das atuações, protegido de qualquer possível abuso. Na nova perspectiva, a preparação de um dispositivo técnico imparcial, posto que cego, valia como garantia de que, para o jogo da cataláxia, vencesse, no fim, verdadeiramente o melhor, e não o representante da vez do poder constituído. E o sucesso do programa, em última análise, se deu por conta da capacidade de interceptar um gênero de desejo que os processos de dinamização estavam tornando cada vez mais profundo e difuso: o desejo de ver reconhecidas e realizadas as próprias potencialidades, expondo os próprios sonhos à prova dos fatos, porque, em um mundo dominado pela contingência, é esse o único modo de fazer com que se consolide seu autêntico valor. A questão basilar tornara-se, em suma, a correta medição do valor (o valor de toda performance, de toda ideia, projeto ou empresa). A vida social foi assim invadida, de modo maciço, por tecnologias de medição e de incremento do valor, cujo escopo declarado era valorizar ao máximo a desenvoltura coletiva, com o pressuposto de que apenas confiando sua medição a algoritmos impessoais e cegos se neutralizaria na raiz o risco do abuso de poder. Sabemos agora, por experiência direta, que o pressuposto não correspondia à realidade dos fatos. Aliás, que era verdade seu contrário. Que quanto mais a fundo os dispositivos de cálculo penetram na vida social, mais essa “vida” é colocada a serviço das relações de poder, a criatividade é submetida ao controle e a inteligência é esvaziada e transformada em mera técnica administrativa. Procurando neutralizar e escapar das figuras tradicionais do poder, as práticas administrativas sugeridas pelo neoliberalismo favorecem, na realidade, a gênese de grandes aglomerados de poder com caráter reticular, nos quais força econômica, autoridade política e competência técnica são agora facetas de um mesmo cristal. E a tornar o processo inevitável é justamente a pretensão de fundo de calcular o valor e, com ele, a potencialidade e a desenvoltura intrínsecas à vida coletiva. Porque calculável não é, justamente, a potencialidade em si mesma, mas apenas o poder.

[1] N.T.: O termo utilizado por De Carolis é intraprendenza, que também poderíamos traduzir por empreendimento. De fato, o uso deste último – assim como seus correlatos, como “empreendedorismo” – tem se expandido no que diz respeito sobretudo a temas relacionados à dinâmica econômica no âmbito dos mercados. Porém, optei por utilizar desenvoltura por dar maior abrangência à ideia de “cálculo” a respeito da qual De Carolis trata no texto.

Trecho extraído de Massimo De Carolis. Il rovescio della libertà. Macerata: Quodlibet, 2017. Disponível em: https://www.quodlibet.it/de-carolis-valore-intraprendenza (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Vincenzo Campi. Vendedora de frutas. 1580 c. Pinacoteca di Brera, Milano.

sábado, 17 de junho de 2017

Estudo sobre a memória XIV

A noite sempre continua a mesma: desde os primeiros anos até esses encontros fortuitos que com ela travamos. "Os ausentes sopram e a noite é densa. A noite tem a cor das pálpebras do morto. Toda noite faço a noite. Toda noite escrevo. Palavra por palavra eu escrevo a noite", certa vez disse Alejandra Pizarnik, ela que pensava ser sua cabeça uma fumaça cinza-azulada que subia em ondas desde a ponta quase apagada de um cigarro. Os caminhos têm um sentido: rua beija-flor, rua condor, rua eurilemos, rua falcão, rua harpia, rua ibis, rua jacutinga e nesse esquadro de pássaros pelos quais me oriento desde tenra infância o mundo girou ao ponto de para fora dele me lançar. Não há mais mundo comum neste lugar que me é tão comum. Porém, ainda assim a noite continua a mesma, e, a cada volta no vazio da ordem alfabética ornitológica, passado, presente e futuro fazem uma constelação que escrevo com as letras que tentam desenhar a voz de um profeta. Um profeta que já não anuncia nada, que traz consigo apenas o grito de um anúncio que me diz que o mesmo da noite sempre será um completo outro. Também sobre esse lugar Lévi-Strauss falou algo: "De São Paulo rumo a oeste há uma linha aberta por uma companhia de colonização inglesa que funda, a cada trinta quilômetros, uma cidade. Numa delas quem por primeiro morou foi um francês." Os sentidos falavam inglês, francês e depois polonês, italiano, espanhol, mas, na noite, eles não dizem senão o silêncio: se esgarçam e, justamente, mostram o silêncio que vem da voz dos profetas (sempre, sempre une voix venue d'ailleurs). Não há ordem nos pássaros e, tal como as do morto, as grandes pálpebras desta cidade se fecham deixando apenas o absurdo do silêncio dos cantos ausentes dos pássaros: estes já não têm voz alguma e, engaiolados, nos deixam como único possível esta atividade sem esperança da escrita. Imagino cada pássaro (talvez da mesma forma como há anos imaginava) nesta estranha caminhada noturna, mas suas imagens só voltam, neste sem sentido, para me dizer que aqui jazem meus mortos, e nada mais. Apesar de tudo, e depois de um tempo, ainda escrevo com o lápis cravado no esquecimento.

terça-feira, 13 de junho de 2017

O que resta? - Giorgio Agamben


Giorgio Agamben


1.

“Tenho tamanha desconfiança no futuro que faço projetos só para o passado”. Essa frase de Flaiano – um escritor cujos trocadilhos devem ser levados extremamente a sério – contém uma verdade sobre a qual vale a pena refletir. O futuro, como a crise, é de fato hoje um dos principais e mais eficazes dispositivos do poder. Que ele seja acenado como um ameaçador pesadelo (empobrecimento e catástrofes ecológicas) ou como um radiante porvir (como pelo doentio progressismo), em todo caso, trata-se de dar a ideia de que nós devemos orientar nossas ações e nossos pensamentos unicamente por ele. Isto é, que devemos deixar de lado o passado, que não se pode mudar e que é, portanto, inútil – ou, no máximo, deve ser conservado em um museu –, e, quanto ao presente, que por ele devemos nos interessar apenas na medida em que serve para preparar o futuro. Nada de mais falso: a única coisa que possuímos e podemos conhecer com alguma certeza é o passado, enquanto o presente é, por definição, difícil de se apreender e o futuro, que não existe, pode ser inventado de cabo a rabo por qualquer charlatão. Desconfiem, tanto na vida privada quanto na esfera pública, de quem lhes oferece um futuro: esse aí está quase sempre procurando capturá-los ou enganá-los. “Jamais permitirei à sombra do futuro”, escreveu Ivan Illich, “de pousar sobre conceitos por meio dos quais procuro pensar o que é e o que foi”. E Benjamin observou que na recordação (que é algo diversa da memória como imóvel arquivo) nós agimos, na realidade, sobre o passado, o tornamos de algum modo novamente possível. Flaiano tinha então razão ao nos sugerir fazer projetos sobre o passado. Só uma investigação arqueológica sobre o passado pode nos permitir ter acesso ao presente, enquanto um olhar dirigido unicamente ao futuro nos expropria, com nosso passado, também do presente.

2.

Imaginem entrar numa farmácia e pedir um remédio de que têm necessidade urgente. O que fariam se o farmacêutico lhes respondesse que tal remédio foi produzido há três meses e, portanto, não está disponível? É exatamente isso que hoje acontece ao entrar numa livraria. O mercado editorial se tornou hoje um Absurdistão no qual a circulação exige que o livro seja mantido na livraria pelo menor tempo possível (com frequência não mais de um mês). Como consequência, o próprio editor programa livros que devem exaurir suas vendas – se acontecem – a termo breve e renuncia a construir um catálogo que possa durar no tempo. Por isso, eu – que ainda assim permaneço sendo um bom leitor – tenho cada vez mais desgosto ao entrar numa livraria (naturalmente existem exceções), onde as bancadas são ocupados apenas pelas novidades e onde é cada vez mais difícil encontrar o remédio (isto é, o livro) de que tenho vital necessidade. Se livreiros e editores não se voltarem contra esse sistema, em boa medida imposto pelas grandes distribuidoras, não deveremos nos espantar se as livrarias desaparecerem. Da mesma forma como surgiram, não poderemos nem mesmo por elas chorar.

3.

Nicola Chiaromonte certa vez escreveu que a pergunta essencial, quando consideramos nossa vida, não é o que tivemos ou o que não tivemos, mas o que resta dela. O que resta de uma vida – mas também e ainda antes: o que resta de nosso mundo, o que resta do homem, da poesia, da arte, da religião, da política, hoje que tudo com que estávamos habituados a associar a essa realidade tão urgente está desaparecendo ou até mesmo se transformando a ponto de se tornar irreconhecível? Ao entrevistador que lhe perguntava “o que resta, para a senhora, da Alemanha em que nasceu e cresceu?”, Hannah Arendt respondeu: “resta a língua”. Mas o que é uma língua como resto, uma língua que sobrevive ao mundo do qual era expressão? E o que nos resta quando nos resta apenas a língua? Uma língua que parece não ter mais nada a dizer e que, todavia, obstinadamente resta e resiste, e da qual não podemos nos separar? Gostaria de responder: é a poesia. O que é, com efeito, a poesia senão o que resta da língua depois que desta desativaram uma a uma as normais funções comunicativas e informativas? Lembro que Ingeborg Bachmann certa vez me disse que não era capaz de ir ao açougue e pedir: “me dê um quilo de bife”. Não creio que quisesse dizer que a língua da poesia é uma língua mais pura, que se encontra além da língua que usamos nos açougue ou em outros usos cotidianos. Creio, antes, que a língua da poesia seja o indestrutível que resta e resiste a toda manipulação e a toda corrupção, a língua que resta mesmo depois do uso que dela fazemos nos SMS e nos tweet, a língua que pode ser infinitamente destruída e todavia permanece, assim como alguém escreveu que o homem é o indestrutível que pode ser infinitamente destruído. Essa língua que resta, essa língua da poesia – que é também, creio eu, a língua da filosofia – tem a ver com o que, na língua, não diz, mas chama. Isto é, com o nome. A poesia e o pensamento atravessam a língua em direção ao nome, àquele elemento da língua que não discorre e não informa, que não diz algo sobre algo, mas nomeia e chama. Um breve texto que Italo Calvino costumava dedicar aos amigos como seu “testamento espiritual” se fecha com uma série de frases quebradas e quase sem fôlego: “tema da memória – memória perdida – o conservar e o perder aquilo que se perdeu – aquilo que não se teve – aquilo que se teve atrasado – aquilo que levamos atrás – aquilo que não nos pertence...”. Eu creio que a língua da poesia, a língua que resta e chama, chama justamente o que se perde. Vocês sabem que tanto na vida individual quanto na coletiva a massa das coisas que se perdem, a profusão dos ínfimos, imperceptíveis eventos que todo dia nos esquecemos, é tão ilimitada que nenhum arquivo ou nenhuma memória poderia contê-la. O que resta, a parte da língua e da vida que salvamos da ruína, tem sentido apenas se intimamente tem a ver com o perdido, se é de algum modo para[1] este, se o chama pelo nome e responde em seu nome. A língua da poesia, a língua que resta, nos é cara e preciosa pois chama o que se perde. Porque o que se perde é de Deus.

Essas notas reproduzem parte da intervenção no Salão do livro de Turim no dia 20 de maio de 2017.


13 de junho de 2017.



[1] Agamben utiliza o termo “per”, que pode ser traduzido tanto por “para” como por “por”. Já em seus textos sobre o poeta espanhol José Bergamín – em específico, sobre “A decadência do analfabetismo” – o filósofo seu utiliza desse jogo: o falar para e o falar por (em lugar de). É claro que também é toda a argumentação que Agamben levanta a respeito do “testemunho” em, sobretudo, “O que resta de Auschwitz”. 


Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-che-cosa-resta (tradução: Vinícius N. Honesko)

Imagem: Pieter Bruegel, o Velho. A Torre de Babel (detalhe). 1563. Kunsthistorisches Museum, Viena.  

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Caro Giulio, que tristeza essa Einaudi



A carta aberta de Giorgio Agamben, que aqui publicamos, contém um duríssimo ato de acusação face às vertentes atuais da editora Einaudi, e diz respeito principalmente a uma obra de mil páginas de Walter Benjamin intitulada “Baudelaire, um lírico na idade do capitalismo avançado”[1], até agora conhecida apenas parcialmente na França e na Alemanha. Dentre os mais conceituados estudiosos de Benjamin, Agamben foi o supervisor crítico da obra completa do filósofo publicada pela Einaudi. O primeiro volume, “Metafisica della gioventù”, veio à luz em 1982. Em 1986 é publicado o mastodôntico “Parigi capitale del XIX secolo” (mais de mil páginas). Em 1994 saiu “Ombre corte”, que reunia os escritos de Benjamin dos anos de 1928 e 1929. Agamben já havia falado sobre “misteriosos atrasos” em relação à obra-prima ensaística de Benjamin sobre Baudelaire, muito esperada entre os estudiosos, mesmo alemães. Atraso seguido pela troca de propriedade da Einaudi, depois de ter sido adquirida pela Mondadori. A obra, que havia sido entregue por Agamben à editora torinense em março de 1993, muitas vezes parecia que estava mesmo para sair, mas sempre patinava. Vittorio Bo, administrador representante da Einaudi, sempre foi muito tranquilizador: “A obra é muito complexa: não existem outras razões para o atraso da publicação”, é uma declaração sua para nosso jornal em junho deste ano (1996). Vittorio Bo prefere não responder, como diz Giulio Einaudi nas poucas linhas que nos enviou e que publicamos nesta mesma página. Eis o texto da carta aberta que Giorgio Agamben enviou a Giulio Einaudi.



Caro Giulio,

Ainda me lembro perfeitamente do dia em que, no distante 1981, você me confiou a organização da edição italiana das obras de Benjamin. Graças a Italo Calvino, eu há pouco começara a fazer parte do grupo de consultores da editora que se encontrava às quartas, na rua Umberto Biancamano n.1, e em cujas reuniões não raro encontrava Primo Levi, o próprio Italo, Franco Fortini, Cesare Cases e muitos outros amigos e intelectuais. Nasceram assim as Obras completas de W. Benjamin, que, juntos, queríamos que fossem novas em relação à edição alemã (dispostas como são em ordem cronológica e enriquecidas desde o primeiro volume por textos por mim encontrados) e que foram consideradas, por críticos estrangeiros, como um modelo de legibilidade e de rigor. Entre 1982 e 1986 saíram, um depois do outro, quatro volumes, aos quais se seguiram uma longa interrupção devido à crise financeira que afligiu a editora. Em 1991 retomei a organização a partir de uma obra de excepcional importância: a reconstrução e a publicação, em primeira edição mundial, do livro sobre Baudelaire no qual Benjamin havia trabalhado nos últimos anos de sua vida. De fato, encontrei em Paris um volume considerável de manuscritos benjaminianos que permitiam reconstruir, em seus particulares, uma obra da qual até então se conheciam apenas fragmentos sem ordem. O texto, em que trabalhava já há dois anos, foi entregue à editora em maio de 1992. Mas aqui começam as desventuras que motivam esta minha carta. Pouco depois que a editora passou à propriedade da Mondadori (isto é, ao grupo Fininvest) e a publicação da obra foi suspensa sem explicação. Pedi imediatamente meu afastamento da organização das obras de Benjamin e, graças também à sua intervenção pessoal, me foi assegurado que a obra seria recolocada na programação. Aceitei, assim, a organização de mais um volume das obras, “Ombre corte”, que saiu em 1994 e na qual se anunciava a publicação do livro sobre Baudelaire como volume XII das obras. Mas desde então as coisas não mudaram: a publicação do livro era constantemente postergada e a cada carta de protesto minha se seguiam vagas desculpas. Chegamos, assim, ao 20 de junho deste ano, quando, numa entrevista publicada no La Repubblica, respondendo a uma pergunta de Daria Galateria, tornei públicos meus temores. O conselheiro representante da Einaudi, ao ser interpelado por telefone por um redator do La Repubblica, declarou textualmente que a obra seria publicada o mais breve possível. Exatamente um mês depois recebo, ao contrário, uma carta do mesmo conselheiro representante em que me pedia para cortar e alterar substancialmente o livro (selecionar partes das seções individuais, de maneira a obter um livro com volume mais enxuto), porque de outro modo a obra não seria publicada pois podia prejudicar a reedição do precedente volume benjaminiano sobre Paris. Era como pedir para que um especialista em Dante encurtasse de modo substancial um manuscrito inteiramente novo da Comédia que ele acabara de encontrar para não prejudicar as precedentes edições. Diante da minha firme recusa de manipular o texto e de prosseguir na organização dos outros volumes enquanto o livro, já pronto, não fosse publicado, comunicaram-me que a editora havia decidido me retirar da organização das obras de Benjamin. Isto é, no mesmo momento em que a editora assumia para si a não leve responsabilidade de impedir ao público italiano a leitura da obra inédita de um nos maiores filósofos e escritores do século XX, ela se mostrava tão privada de escrúpulos a ponto de, por isso, retirar da organização das obras de Benjamin aquele que as havia idealizado e preparado seu planejamento. Caro Giulio, em verdade muito tempo se passou desde aquele distante 1981, e é talvez tempo para que ambos reconheçamos isso, mesmo se compreendo as razões que podem levar você a procurar defender a continuidade com o passado. Da minha parte, é com dor e pesar que comunico que não terei mais nada a ver, nem como autor nem como colaborador, com a editora que ainda leva seu nome e que tanta importância teve na história da cultura italiana do século XX, mas que, na verdade, hoje é apenas uma flor de papel na lapela de um império financeiro que cumpre uma ação nefasta e corrupta na cultura e na sociedade italiana.

Giorgio Agamben.



Caro Giorgio,

... Caro Giorgio, as razões técnicas, que eu compartilho, com base nas quais pensamos que não seja justo publicar o livro de Benjamin nos moldes como você propôs serão ilustradas para o leitor amanhã, nestas páginas, por Vittorio Bo. Aqui, deixe-me exprimir todo meu desgosto por sua presunção no que diz respeito às menções que faz a Mondadori e Fininvest, como se isso tivesse alguma coisa a ver com nossas decisões editoriais.

Giulio Einaudi.

 
Disponível em: http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/1996/11/13/caro-giulio-che-tristezza-questa-einaudi.html?refresh_ce (13/11/1996)


[1] N.T.: A obra somete foi publicada em 2012, depois que as obras de Benjamin entraram para o “domínio público”, pela Editora Neri Pozza. Cf. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Un poeta lirico nell’età del capitalismo avanzato. A cura di Giorgio Agamben, Barbara Chitussi, Clemens-Carl Härle. Macerata: Neri Pozza, 2012.