segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A realidade potencial - Visões do possível e do impossível


 

Eduardo Pellejero


Não somos mantidos vivos por legisladores e militares, isso é relativamente óbvio. Somos mantidos vivos por homens de fé, homens de visão. Eles são como germes vitais no processo sem fim de nos tornarmos qualquer coisa.



Henry Miller




Não escolhemos o tempo que nos toca viver. Estar lançados no mundo é próprio da existência humana, conforme uma das marcas da finitude e constitui uma das dimensões da nossa historicidade - a mais evidente, a mais dura, a mais difícil de aceitar. Não escolhemos o tempo que nos toca viver.   
Porém, o próprio tempo não é simples. Sob a sua configuração histórica num estado de coisas concreto, além do seu rebatimento sobre o presente, o tempo não deixa de fluir, segundo uma pluralidade de linhas intempestivas, que dependem para devir-mundo da nossa adesão ou do nosso compromisso - e essa é outra das dimensões da nossa historicidade. Podemos trabalhar o tempo, no tempo, contra o tempo, em proveito de um tempo por vir.
Entretanto - o tempo é sempre um conjunto de tempos heterogêneos, de variações, de modulações, de singularidades; isto é, de virtualidades num devir composto que assombra a linearidade da história, o seu fechamento à conta de um sistema qualquer de representação, deixando entrever nos seus interstícios, nas suas falhas, figuras da realidade potencial; quero dizer, dando conta da contingência da existência, da abertura do ser, do mistério da liberdade.

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Habitualmente o tempo se nos apresenta sob a forma das condições da experiência possível, dos limites da experiência possível. De tanto fazer essa experiência, internalizamos a necessidade de reconhecer tais limites - o que é possível e o que não é, o que está ao nosso alcance o que não. Abrimos assim mão do impossível, da imponderável potência do mundo, e de todas as dimensões do tempo que abrem a experiência à experimentação.
Neste contexto, experimentação quer dizer colocar em causa o sistema da representação. O possível e o impossível, como assinala Badiou, só ganham sentido no marco de algum sistema particular de representação. O tempo pode desempenhar um papel estratificador em cada um desses sistemas, como quando falamos, com pesar ou resignação, do tempo que nos toca viver; mas também pode ser solidário desses pequenos acontecimentos que fazem ruir o próprio sistema da representação quando conduzimos a experiência além dos seus limites ordinários, permitindo que o não representado, o impossível de ser representado, venha à representação, abra um horizonte de pesquisas, nos dote de novos órgãos.  
Na experimentação o tempo não é marco, mas desvio, e promove acontecimentos tanto no interior dos indivíduos como na espessura da sociedade, dando lugar a novas relações com o meio, com as instituições, com os outros, com a natureza, com a cultura, com o trabalho, com a linguagem e o corpo - e, em última instância, com o próprio tempo. Na experimentação o tempo manifesta “a força de contestação própria da vida poética”, como diria Deleuze, isto é, através de mil deslocamentos, recusa, confronta, desafia, e algumas vezes torna inúteis os dispositivos do saber e do poder que tendem a canalizá-lo (os dispositivos do tipo crise, reconciliação, ameaça comunista ou inimigo interior, terrorismo, etc.).

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A fabulação é um dos modos de conceituar essas experiências que fazemos com o tempo, e também com a linguagem e a verdade, com o corpo e as imagens, com o devir e a história, com o possível e o real.
A criação e a resistência, a imaginação e a revolta, estão intimamente ligadas à fabulação, na medida em que a ruptura com o tempo que nos toca viver, com as condições da experiência possível, passa por autênticas visões da realidade potencial, isto é, pela apreensão súbita de singularidades, relações e afetos que insistem sob as figuras históricas que dominam o campo da ação, o horizonte da percepção e o palco das ideias.
Visões não quer dizer fantasias. A razão rebelde manteve sempre um profundo compromisso com o real. Por exemplo, a força de Lawrence - a observação é de Deleuze - não está na sua imaginação (sobre a qual o próprio Lawrence tinha sérias dúvidas), mas no modo em que Lawrence soube projetar no real imagens arrancadas ao real (a si mesmo e aos seus amigos árabes).
Em verdade, o que se faz ao fabular não é afirmar algo que não é real - não se trata de um simples devaneio, nem de um erro, nem muito menos de uma confusão. O que se faz ao fabular é afirmar que o real não se esgota nas totalizações estratégicas do sistema da representação - trazendo à tona tudo aquilo que é negligenciado ou depreciado, omitido ou descartado: todos esses elementos dos quais o sistema da representação não quer ou não pode dar conta.
Noutras palavras, a fabulação é um movimento, não de correspondência ao real, mas de produção ou mobilização do real; um movimento expressivo pelo qual somos capazes de recolher tudo aquilo que escapa à linguagem, tudo aquilo que excede os limites do possível e do realizável, do verdadeiro e do consensual, em ordem a pôr em comum esses fragmentos esparsos na experiência.
Enquanto fluxo de palavras criadoras de universos inexistentes, mas insistentes, isto é, integrantes da realidade humana, na fabulação confluem a virtualidade e a potência.

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Sempre existem, em todo o momento, em toda a sociedade, pontos fora do marco da representação - não importa o tempo que nos toque viver. À força de trabalho e de imaginação, esses pontos vão abrindo o tempo ao tempo, isto é, a história ao devir, a linguagem ao real, e o nosso destino à tarefa e à festa da liberdade. Longe de furtar-nos às responsabilidades que nos impõe a atualidade histórica, a fabulação nos convoca a agenciar os signos e as coisas, os corpos e as ideias segundo uma lógica cujo valor só pode ser conferido a posteriori - nas figuras às que possa vir a dar lugar: nos encontros, nos movimentos, nas obras e nas instituições que de algum modo se insinuam nas falhas da ordem que pesa sobre nós e que o nosso trabalho e a nossa criatividade podem vir a atualizar.

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As mulheres saem à rua e fabulam relações já não determinadas pelas estruturas do patriarcado. Os estudantes se reúnem em plenárias e fabulam caminhos para a emancipação intelectual. Os migrantes caminham rumo ao norte e fabulam um mundo de fronteiras abertas.
Certamente, o sujeito de enunciação da fabulação é paradoxal, a meio caminho entre a desujeição do mundo que procura deixar atrás e a subjetivação imponderável na qual se encontra envolvido.
Logo, a sua palavra é imprópria, como assinala Rancière sempre que fala dessas cenas de desidentificação através das quais os seres humanos rompem com o lugar que lhes é atribuído numa partilha qualquer.
Por fim, o porvir que abre é indeterminado, diferenciado mas indeterminado, real sem ser atual. Essa irresolução prática não é um defeito, uma falha no seu funcionamento, mas o correlato dos princípios que estabelecem a sua potência. Carmen Rivera Parra me lembrava que Virginia Woolf considerava que o caráter escuro do futuro, o caráter incerto e indefinido do futuro, longe de preocupar-nos, devia animar-nos a pensar, porque essa escuridão significa que o futuro não se encontra fechado, que ainda está em jogo, mesmo se não somos capazes de entrever claramente como se configura o futuro: para que o futuro venha à luz temos que adentrar-nos no escuro!

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            Porque não são a expressão de um sujeito constituído, e porque se endereçam sem pressupor a sua adequação ou a sua verdade, as imagens que projeta a fabulação são uma espécie muito particular de fantasmas; possuem a elusiva consistência dos fantasmas, articulando indiscernivelmente espectros do passado e assombrações do futuro. Com um olho nas ruínas que o progresso deixa ao seu passo, como o anjo de Benjamin, e o outro nas alternativas ignoradas que balizam o seu porvir, como o vidente de Rimbaud, a fabulação tece relações intempestivas, estabelece familiaridades artificiais, projeta precursores obscuros e indetermina o curso do tempo.
Antecipando-se à atualização dos agenciamentos que esboça, agenciamentos que, à falta de condições necessárias, existem apenas como “potências diabólicas do futuro ou como forças revolucionárias por construir-se”, a fabulação complica o mapa da realidade. Coloca assim em questão as estruturas que dão forma ao mundo e um sentido à história. Mas não troca uma imagem do futuro por outra. As suas imagens são tateantes. Não prefiguram: movem.

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Conjurada no burburinho das ruas ou na solidão do quarto próprio, a fabulação é sempre da ordem da expressão do comum, do que em comum temos e colocamos em jogo (o mundo, os outros, etc.). Antropologia especulativa, a denominava Juan José Saer, que definia o seu âmbito de intervenção ao nível das representações que dominam a nossa vida imaginária e, a partir desta, a nossa vida real.
Como esclarece Deleuze, a fabulação não é uma forma de escapar do mundo que existe; é um modo de criar as condições para a expressão de outros mundos possíveis, por sua vez capazes de desencadear a transformação do mundo existente. Contra a posição particular que ocupamos como sujeitos na história, presos nas malhas do saber e do poder, as palavras e a vida encontram na fabulação a potência do devir, da mudança, da transformação - “seiva que faz florescer uma e outra vez, contra qualquer intempérie, invencivelmente, a árvore do imaginário”.
Cada vez que a configuração do tempo que nos toca viver parece decidir de forma palmatória e terminante o que podemos fazer como indivíduos e como sociedade (e o que não, o que é possível (e o que não), o que deve entender-se por real e quais são os limites da verdade, cada vez que isso acontece, digo, essa atividade genérica que define os animais que somos manifesta a sua intrínseca potência, trabalhando os elementos que constituem historicamente os núcleos de interpretação do real, desprendendo dos grandes conglomerados conceituais pequenas percepções que insinuam uma multiplicidade de relações diferenciais entre si: redes de afeto, matrizes de ideias, esquemas de agenciamento - envolvem mundos, essas pequenas percepções, uma pluralidade de mundos possíveis!

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A resistência e a criação são sempre da ordem do acontecimento e estão acompanhadas de visões. O acontecimento é sempre a ruína do sistema da representação; as visões, o princípio de um ato de fabulação. Seja o caso de Maio de 68. Deleuze escreve: “Maio de 68 é em princípio da ordem de um acontecimento puro, livre de qualquer causalidade normal ou normativa... Houve muitas agitações, gesticulações, palavras, idiotices, ilusões em 68, mas isto não é o que conta. O que conta é que foi um fenómeno de vidência, como se uma sociedade visse de repente tudo o que continha de intolerável e visse também a possibilidade de outra coisa. É um fenómeno coletivo sob a forma: Algo possível, ou me asfixio...”.
Resistir e criar começam necessariamente por um fenômeno de percepção. Uma pessoa pode aceitar o tempo que lhe toca viver, aceitar o inferno e tornar-se parte dele, como dizia Calvino, até deixar de percebê-lo. Mas uma pessoa também pode recusar esse tempo, negar que a vida seja possível enquanto tenhamos que viver contemplando esse inferno. Ser de esquerda não é uma questão de moral, é uma questão de percepção. Tal era a tese de Deleuze: simplesmente não é possível viver vendo certas injustiças, não é possível viver enquanto certos problemas não encontrem uma solução adequada.
Por isso mesmo, a resistência e a criação devem prolongar-se na procura dos arranjos necessários para mudar o horizonte da nossa percepção, dando corpo a essas fugazes visões de novos espaços de liberdade. Recusar o tempo que nos toca viver é, sim, em primeiro lugar, ver tudo de repente, lançar um olhar enviesado sobre tudo aquilo de que a nossa época se orgulha e entrever os trabalhos e as festas de outros mundos possíveis; mas é também, imediatamente, abraçar tudo aquilo que, no tempo, anuncia outro tempo, e cuidar disso para que prolifere, ganhe força, floresça. Isto é, mais uma vez, como dizia Calvino: “reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir-lhe espaço”.
Quero dizer que para que essas aberturas de possível que caraterizam as descontinuidades históricas sejam algo mais do que um fenômeno de vidência, para que essas novas sensibilidades que associamos aos pequenos acontecimentos da percepção possam desenvolver-se e amadurecer, é necessário articular arranjos apropriados.
Essa criação de laços, conexões e redes, era para Deleuze a tarefa própria da pragmática militante a que abria espaço a sua filosofia, porque mesmo que os acontecimentos escapem, em maior ou menor medida, à nossa vontade comprometida, envolver-nos neles e com eles, agenciar o nosso desejo com o que dão a ver, está sempre ao nosso alcance - ainda que possa representar muito trabalho, grandes sacrifícios, isto é, o tempo que nos resta viver.

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Necessitamos do possível - e, ainda mais importante, do impossível - para respirar. Mas ao mesmo tempo ao (im)possível há que fazê-lo. A fabulação pode clarear momentaneamente zonas do real ou parcelas do social que o sistema da representação ignorava ou preteria, mas o seu devir-mundo depende sempre e para sempre de nós.
Tive este sonho: andava pela selva fechada a golpes de facão. Onde a folha golpeava, abria-se o mato e eu via um caminho. Mas cada vez que olhava para trás para medir o meu avanço constatava que a vegetação voltara a levantar-se como um muro e era como se nunca tivesse passado ninguém por esses cantos.
Já cuidaram alguma vez de um jardim no sertão? Com o devido cuidado isso é possível. A terra é fértil, o sol não falta, as plantas prendem e florescem. Porém, basta um dia em que, por cansaço ou negligência, uma pessoa não cuide da rega para que tudo volte a confundir-se na mudez mineral do deserto.
Felizmente somos muitos e entre todos damos conta de muito do muito que é importante, ainda que por vezes nos distraiamos e algo que valorizávamos, algo que cuidáramos por gerações, algo que dávamos por assegurado, de repente desapareça e seja necessário começar tudo de novo (como aconteceu com os direitos laborais em tantos lugares do mundo), ou, todavia, nem sequer seja possível recomeçar, porque não restou nada (como aconteceu com o Museu Nacional no Rio).

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Alguns momentos só adquirem sentido pelos rodeios aos que nos obrigam, pela tensão que nos impõem, e - a longo prazo - pela percepção a que nos abrem. O incêndio do Museu Nacional iluminou fugazmente a noite em que nos adentramos - algumas pessoas (muitas) contra-efetuaram esse acontecimento trágico e iluminaram e des(cons)truíram outras zonas sensíveis da nossa atualidade. Guardamos uma dívida com eles. No meio do desastre as suas palavras nos iluminaram e aqueceram. Que a noite não se abata definitivamente sobre nós depende de uma infinidade de gestos análogos, que desafiam, ingênua mas essencialmente, as leis da entropia (a fabulação é também, como Foucault dizia da ficção, a negentropia do mundo).
O curso da história obedece em certo sentido às leis da sucessão e da causalidade, mas a resistência ao curso da história, as suas invenções e os seus acontecimentos, os seus lutos e as suas lutas, coexistem como elementos heterogêneos que compõem um plano temporal singular do tipo constelação. Nesse plano singular estamos juntos de um modo imediato e definitivo, sempre que nos envolvemos num ato de criação ou de resistência, toda a vez que recuperamos a nossa fé em nós e nos outros, e acreditamos no mundo, “suscitando pequenos acontecimentos que escapam ao controlo, ou fazendo nascer novos espaço-tempos, mesmo de superfície ou de volume reduzido”.
Não escolhemos o tempo - este tempo - que nos toca viver. A este tempo dizemos não. Mas não devemos esquecer que essa negação é produto de uma afirmação anterior e em certo sentido essencial: a afirmação do tempo como espaço de variação, a afirmação das visões que lançam o tempo sempre além de si mesmo (e a nós com ele), a afirmação das pequenas percepções e das grandes ideias que envolvem e desenvolvem tempos no tempo, contribuindo para a atualização da nossa liberdade. 
Alguém dirá que, perante a insuportável configuração da realidade, fabulo. Como poderão entender, não me interessa negar isso. Não acalento a pretensão de estar no verdadeiro. Mas também não sinto que me encontre no falso. Se erro, o faço junto a todos, como todos - de olhos bem abertos ao que é, e também ao que não é, pelo menos à primeira vista, visível. E falo do que vejo, apenas falo do que vejo. Quiçá nem sempre com justiça e justeza, mas sim, sempre, com honestidade. Tomara que, nas minhas palavras, consigam entrever vislumbres de outras ordens de relações possíveis, e encontrem em vocês a força necessária para que um dia venham a ganhar corpo e valor.

 Imagem: Adriano Choque





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