terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Réveiller!


domestica-se
a débil paixão 
cultivam-se em caixotes 
minúsculas esperas 
congelam-se em alguma geladeira doméstica 
aquelas boas lembranças prestes a se decompor 
nutritiva matéria podre
curtida na covardia do presente  
ganha-se um sabor insosso 
palatável apenas com o ralo sumo da espera  
e do tempero agridoce de um casamento e dígitos na conta bancária 
afinal, ele outrora criara esperas demasiadas! 
hoje amadureceu, cultiva apenas um jardim 
o que exige cortar cogumelos venenosos 
afastar estranhos, matar insetos 
cercar milimetricamente
obedecer a um Deus 

a erosão infinita do abismo  
já levou a casa do vizinho   


    

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

As línguas e os povos



Giorgio Agamben


Os ciganos fazem sua aparição na França no curso das primeiras décadas do séc. XV, em um período de guerras e de desordens, na forma de bandos que afirmavam ser provenientes do Egito e eram guiados por indivíduos que se autoproclamavam duques do Egypto parvo ou condes do Egipto minori:
“Datam de 1419 os primeiros relatos sobre grupos de ciganos no território da França atual (...) em 22 de agosto de 1419 são vistos no vilarejo de Châtillon-en-Dombe, um dia depois o grupo alcança Saint-Laurent de Mâcon, a seis léguas de distância, sob as ordens de um certo André, duque do pequeno Egito (...) Em julho de 1422, um bando ainda mais numeroso dirige-se para a Itália (...) Em agosto de 1424, os ciganos chegam pela primeira vez às portas de Paris, após atravessarem a França em guerra (...) A capital está ocupada pelos ingleses, e toda a Île de France está infestada de bandidos. Alguns grupos de ciganos, guiados por duques ou condes do Egypto parvo ou do Egypto minori atravessam os Pirineus e seguem até Barcelona.” (François de Vaux de Foletier, Les Tsiganes dans l’ancienne France).      
É mais ou menos no mesmo período que os historiadores datam o nascimento do argot, como língua secreta dos coquillards e de outros bandos de malfeitores que prosperaram nos anos tormentosos que assinalaram a passagem da sociedade medieval ao Estado moderno:
“É certo, como se disse, que os chamados coquillards usam entre eles uma língua secreta [language exquis], que outras pessoas não conseguem entender sem ensinamento, e que por meio dela conseguem reconhecer todos os membros dos referidos Coquille.” (Depoimento de Perrenet no processo dos coquillards).
Simplesmente colocando em paralelo as fontes relativas a estes dois fatos, Alice Becker-Ho conseguiu realizar o projeto benjaminiano de escrever uma obra original composta quase inteiramente de citações. A tese do livro é aparentemente anódina: como indica o subtítulo (“Um elemento negligenciado nas origens do argot das classes perigosas”), trata-se de demonstrar a derivação de uma parte do léxico do argot do rom, a língua dos ciganos. Um breve, mas essencial, “glossário” ao final do volume elenca os termos argóticos [argoticis] que “possuem um eco evidente, porém não de origem certa, dos dialetos ciganos da Europa.”
Esta tese, que não ultrapassa o âmbito da sociolinguística, implica, porém, outra mais significativa: como o argot não é propriamente uma língua, mas uma gíria*, então os ciganos não seriam um povo, mas os últimos descendentes de uma classe de foras da lei de uma outra época:        
“Os ciganos são nossa medievalidade conservada; uma classe perigosa de outra época. Os antigos termos ciganos dos diversos argot são como os ciganos enquanto tais, que desde suas primeiras aparições, passaram a adotar o patronímico dos países que atravessavam – gadjesko nav – perdendo de algum modo sua identidade no papel, à vista de todos aqueles que supunham saber ler.” 
Isto explica por que os estudiosos jamais conseguiram aclarar as origens dos ciganos, tampouco conhecer verdadeiramente sua língua e seus costumes: a enquete etnográfica torna-se impossível pelo simples fato de que seus entrevistados mentem sistematicamente.
Por que esta hipótese, certamente original, mas que trata de uma realidade popular e linguística inteiramente marginal, é importante? Benjamin escreveu certa vez que nos momentos cruciais da história o golpe decisivo deve ser dado com a mão esquerda, atingindo-se os pinos e articulações ocultas da máquina do saber social. Ainda que Alice Becker-Ho mantenha-se discretamente nos limites de sua tese, é provável que ela esteja perfeitamente consciente de que depositou, em um ponto nodal de nossa teoria política, uma mina pronta para ser detonada. Não temos, de fato, a mínima ideia do que seja um povo e nem do que seja uma língua (é evidente que os linguistas podem construir uma gramática, ou seja, aquele conjunto unitário dotado de propriedades descritíveis que se chama língua, apenas supondo o factum loquendi, isto é, o puro fato de que os homens falam e se entendem entre si, que resta inacessível à ciência), contudo, toda nossa cultura política se funda no colocar em relação estas duas noções. A ideologia romântica, que deliberadamente operou este agenciamento, e deste modo, influenciou amplamente tanto a linguística moderna como a teoria política ainda dominante, buscou esclarecer algo obscuro (o conceito de povo) com outra coisa ainda mais obscura (o conceito de língua). Através da correspondência biunívoca que assim se instituiu, duas entidades culturais contingentes e com contornos indefinidos se transformaram em organismos quase naturais, dotados de características e leis próprias e necessárias. Pois, assim como a teoria política deve pressupor sem poder explicar o factum pluralitatis (chamemos assim, com um termo etimologicamente ligado ao de populus, o puro fato de que os homens formam uma comunidade), também a linguística deve pressupor sem interrogar o factum loquendi, a simples correspondência destes dois fatos funda o discurso político moderno. 
A relação cigano-argot põe radicalmente em questão esta correspondência no instante mesmo no qual a reencena parodicamente. Os ciganos estão para o povo como o argot está para a língua; mas, no breve instante em que a analogia se mantém, lança um relampejo sobre a verdade que a correspondência língua-povo destinava-se secretamente a encobrir: todos os povos são bandos e “coquilles”, todas as línguas são gírias e “argots”.                             
Não se trata aqui de avaliar a correção científica desta tese, mas muito mais de não deixar escapar sua potência libertadora. Para aqueles que têm sido capazes de manter os olhos fixos nela, as máquinas perversas e tenazes que governam nosso imaginário político perdem imediatamente seu poder. Que se trate, afinal, de um imaginário, deve agora ser evidente para todos, quando a ideia de povo perdeu desde muito toda a realidade substancial. Mesmo admitindo-se que esta ideia não tinha tido jamais um conteúdo real, para além do insípido catálogo de características elencadas pelas velhas antropologias filosóficas, ela teve seu sentido esvaziado por este mesmo Estado moderno que se apresentava como seu guardião e a sua expressão: malgrado o falatório dos bem intencionados, atualmente o povo não é nada mais que o suporte vazio da identidade estatal e unicamente como tal obtém reconhecimento.  
Para quem ainda nutre alguma dúvida sobre o assunto, uma rápida observação do que ocorre em nosso entorno será instrutiva: se as potências mundiais pegam em armas para defender um Estado sem povo (o Kwait), os povos sem Estado (curdos, armênios, palestinos, bascos, judeus da diáspora) podem, ao contrário, ser oprimidos e exterminados impunemente, para que fique claro que o destino de um povo só pode ser uma identidade estatal e que o conceito de povo apenas tem sentido se recodificado naquele de cidadania. Aqui, também, o curioso estatuto das línguas sem dignidade estatal (catalão, basco, gaélico, etc.), que os linguistas tratam naturalmente como línguas, mas que de fato funcionam muito mais como gírias ou dialetos e assumem quase sempre um significado imediatamente político. O círculo vicioso de língua, povo e Estado revela-se particularmente evidente no caso do sionismo. Um movimento que pretendia a constituição em Estado do povo por excelência (Israel) se vê obrigado, por isso mesmo, a reencenar uma língua puramente cultual (o hebraico) que já havia sido substituída no uso cotidiano por outras línguas e dialetos (o ladino, o ídiche). Mas, aos olhos dos guardiões da tradição, esta mesma reencenação da língua sacra se apresentava como uma grotesca profanação, da qual a língua ainda se vingaria (“Nós vivemos em nossa língua”, escrevia, de Jerusalém, Scholem a Rosenzweig em 26 de dezembro de 1926, “como cegos que caminham sobre um abismo, ... essa língua é grávida de futuras catástrofes, virá o dia em que ela se voltará contra todos aqueles que a falam”).
A tese segundo a qual todos os povos são ciganos e todas as línguas gírias dissipa este círculo vicioso e permite vislumbrar de um modo novo aquelas diversas experiências de linguagem que periodicamente afloram em nossa cultura, apenas para causarem mal-entendidos e serem reconduzidas à concepção dominante. Que outra coisa faz Dante, no De vulgari eloquentia, ao narrar sobre o mito de Babel, dizendo que cada categoria de construtores da torre recebeu uma língua própria incompreensível para os demais, e que de cada uma destas línguas babélicas derivam as línguas faladas no seu tempo, se não apresentar todas as línguas da terra como gírias (a língua dos mistérios não seria a figura por excelência da gíria?)? E contra esta íntima marginalidade [gergalitá] de todas as línguas, ele não sugere (segundo uma secular falsificação de seu pensamento) o antídoto de uma gramática e uma língua nacional, mas uma transformação da experiência mesma da palavra, a qual chama “volgari illustre”, uma espécie de emancipação [affrancamento]  – não gramatical, mas poético e político das gírias mesmas em direção ao factum loquendi.               
Assim, o trobar clus dos trovadores provençais é, enquanto tal, de qualquer forma, a transformação da língua d’oc em uma gíria secreta (não muito diversamente do que fez Villon, escrevendo no argot dos coquillards algumas de suas baladas); mas aquilo de que fala esta gíria, nada mais é, então, que uma figura de linguagem, assinalado como lugar e objeto de uma experiência de amor.  E, tratando de tempos mais recentes, não seria de estranhar que para Wittgenstein a experiência da pura existência da linguagem (do factum loquendi) poderia corresponder à ética, e que Benjamin confiasse a uma “pura língua”, irredutível a uma gramática e a um idioma particular, a figura da humanidade salva.
Se as línguas são as gírias que cobrem a pura experiência da linguagem, assim como os povos são as máscaras, mais ou menos exitosas, do factum pluralitatis, então nossa tarefa certamente não pode ser a construção destas gírias em gramáticas tampouco a recodificação dos povos em identidade estatais; ao contrário, somente rompendo em um ponto qualquer o nexo existência da linguagemgramática (língua) – povo – Estado, o pensamento e a práxis estarão à altura de seu tempo. As formas desta interrupção, nas quais o factum da linguagem e o factum da comunidade emergem por um instante à luz, são múltiplas e variam segundo os tempos e as circunstâncias: reativação de uma gíria, trobar clus, pura língua, uso minoritário de uma língua gramatical... De qualquer maneira, é claro que a aposta em jogo não é simplesmente linguística ou literária, mas, sobretudo política e filosófica.



Extraído de Mezzi senza fine: notte sulla politica. Turim: Bollati Boringuieri, 1996. pp. 54-59. Tradução: Jonnefer Barbosa

Imagem: Ara Güler, Istambul. http://www.araguler.com.tr/ 
   
(1) Optamos por traduzir o termo italiano gergo por gíria, ao contrário de jargão (tradução mais literal), por entender que, além de conservar o sentido, ressalta a dimensão informal e política que a palavra também possui em português.       

domingo, 29 de dezembro de 2013

Carta para a destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.

Querida, sinto que as cartas de outrora nada mais foram do que vãs tentativas de mapear o impossível. Insisto em escrevê-las, porém. Inútil, mas, como a vida, o resto que me resta. Danço com palavras nas pontas de meus pensamentos - também eles, matérias vivas de palavras -, mas nada me coloca em movimento pelas trilhas que traço nestes mapas. Aqui vai mais um: incompreensível e indigesto tal como nosso último entreolhar-se. Esta carta cheira a ranço! Não pelos detalhes faltantes que poderiam indicar algum caminho em que sua impossibilidade se mostraria possível, mas porque tudo falta. Não há vida nesses olhares perdidos das moças que por mim passam, não há lugar onde reler as cartas que de algum modo um dia nos levaram a paragens estranhas, não há palavras nos lábios dessa desconhecida que me fita com olhos arredios. Uma série de ausências que só me faz perceber, de modo ainda mais pungente, a sua impossibilidade. Aquilo que um dia foi sorriso, ao notar o detalhe quase imperceptível de ternura nos jogos de palavra, agora falta; aquilo que, dentro do peito, se debatia em infinitos desejos quando da chegada da missiva, agora falta. A sensação incômoda da sua presença tão ausente, hoje, torna-se a condutora torpe desse fio de pensamento que se esgarça nesta que, talvez, é minha última tentativa de traçar algum caminho. Mas não posso segurar o cheiro lúgubre do ranço que emana a cada palavra que escrevo, querida. Não suporto a alvura do papel, porém a podridão das letras também é inevitável. Vivo este paradoxo, querida, sabendo que tão infame como sua impossibilidade é a minha insistência e inutilidade. Gostaria de escrever: "salve, para nunca mais", mas quiçá termine assim, mais uma vez, a condicionar o que em palavras é incondicionado: o silêncio que assombra toda palavra.

Do seu remetente impossível.

Imagem: Johannes Veermer. Mulher em azul lendo uma carta (detalhe). 1663-4.  Rijksmuseum, Amsterdam


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A eterna traição dos brancos

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Cansados de serem deuses, periodicamente os homens se lembram de que são homens, e começam a exaltar tal condição de homens como se ela fosse superior àquela dos deuses.

Não sei se já foi observado que, em todos os tempos, no instante em que os homens se reconhecem apenas como tais e nada mais, a civilização, por sua vez, colapsa, como se à vida do mundo fosse preciso, para que ela possa se manter à máxima altura de seu destino, o suporte da imaginação exacerbada dos homens.

As crises do humanismo, com um notável paralelismo, sempre correspondem às crises da civilização. A coincidência, é preciso que se diga, é estranha. Quando o estado da civilização já é de desespero e quando a ideia de cultura já está em via de total regressão, os  homens então põem-se a falar de humanismo, como se o homem tivesse poder de escapar da Natureza, como se a anarquia dominante não tivesse acontecido, antes de tudo, por causa dessa ideia estreita e aviltante do homem que, através dos séculos, não cessou de se camuflar sob o termo humanismo: do humanismo do Renascimento ao humanismo materialista de hoje.

Humanismo sempre significou que o homem reduzia a Natureza ao seu talante, que ele fazia do padrão “homem” uma espécie de medida comum, tanto física quanto moral, à qual, de maneira periódica, deviam se referir todas as coisas do mundo.

E tal momento sempre é aquele em que se propaga o culto de uma faculdade especificamente human, a razão, e no qual o duplo ponto de vista, da moral e da psicologia humanas, entende suas crueldades em todos os sentidos.

É desconcertante perceber que fora do homem a moral não existe e que o ponto de vista materialista, que procura fazer da razão humana uma sorte de chefe universal, chega apenas a um servilismo, o servilismo do homem diante da Natureza, pois o homem se faz escravo de sua própria moral e prisioneiro dos tabus que ele mesmo criou.

Por sua vez, essa concepção de moral da natureza e da vida – segundo a qual o homem sente em si mesmo sua própria vida como distinta da Natureza – corresponde a uma ideia dualista das coisas. E sempre vimos nascer o humanismo nas épocas que separaram o espírito da matéria e a consciência da vida.

Tal concepção é europeia. O mundo branco, através dos séculos, sempre fez dessa particularização uma especialidade.

Quando na Europa aconteceram guerras religiosas, estas sempre foram feitas contra a eterna unidade do espírito. A guerra dos albigenses foi contra os partisans da vida unitária enquanto, no curso das guerras religiosas na Índia, foram os partisans da dualidade da vida e da preexistência da matéria que, invariavelmente, acabaram por ser massacrados.

Através dos tempos, o mundo hindu manifestou uma inextirpável crença na sua ideia monista do homem, da Natureza, do espírito e da vida.

E o budismo herético foi extinto na Índia pelos brâmanes ao longo de guerras que duraram duzentos ou trezentos anos.

Buda, o grande Buda, foi um traidor. É considerado como traidor na Índia, e os brâmanes não deixam de proclamar isso.

Não é no Renascimento do século XVI que de modo próprio retorna a infantilidade pouco invejável dessa diminuição do homem e dessa ideia anárquica da vida. Havia na Grécia, no século IV antes de Cristo, uma escola de filósofos céticos que colocavam a vida à medida do homem e qualificavam como contos pueris os mitos divinos sobre os quais a autêntica civilização da Grécia tinha se edificado, mitos estes em que a vida subterrânea e mágica tinha feito fermentar o drama esquiliano.

De Ésquilo a Eurípides o mundo grego seguiu uma curva descendente. Nas escolas contamos que o homem, graças a Eurípides, pôde ter uma ideia mais justa e racional da Natureza. A verdade é que Eurípides destruiu a consciência da Natureza com sua concepção mesquinha e humanizada da vida. Os ignorantes falam da eterna cultura da Grécia e sobre o mesmo plano colocam Ésquilo, Sófocles e Eurípides, sem ver o mundo que os separa e sem ver que os três nomes representam as três etapas de uma curva funesta que conduziu, de século em século, o homem a renunciar seus poderes.

O termo “humanismo”, na realidade, nada mais significa que uma abdicação do homem. Para os mitos divinos, o homem é o igual da Natureza que ele compreende sinteticamente; mas quando nasce o espírito analítico, o homem imagina penetrar a Natureza e dissecar seus segredos, exatamente como um cirurgião disseca um músculo ou separa os órgãos do corpo; de modo que, no mesmo instante, assim como o cirurgião cessa de estar à escuta do corpo, o homem perde seu contato com a Natureza, pois é apenas pelo instinto que podemos penetrar a alma da Natureza. Diga-se o que quiser contra o conhecimento instintivo, mas é ele que torna possíveis todas as grandes invenções humanas. É a imaginação sem limites do homem que em todos os tempos nutriu as civilizações. Cada vez que reaparece o espírito racional, essa reaparição indica que um mundo vai morrer. Ora, no espírito da raça branca, há uma tara que, periodicamente, a leva a negar que a compreensão do mundo não pode se limitar e a se concentrar num saber que talvez seja claro, mas inútil, pois se apoia apenas em objetos mortos, os membros dispersos e inanimados da Natureza.

A luta, hoje, está localizada entre o saber ocidental, preciso e morto, e o saber confuso, mas que vive uma eterna existência, do monismo oriental.



p.s.: Não devemos confundir a alta metafísica do Oriente, tal como nos foi transmitida desde o século VIII antes de Cristo, nas versões escritas dos Vedas (metafísica que une o espírito e a matéria em um todo indestrutível, refletindo-se, por sua vez, por partes, no mundo do Sangsara ou domínio da ilusão universal), eu repito, é preciso não confundir essa alta metafísica monista com as falsificações que nos são oferecidas pelo teosofismo inglês de H. –P Blavatsky e Annie Besant. A escola teosófica é inglesa e representa o esforço feito pelo Intelligence Service para meter seu nariz até nas doutrinas do Oriente.





Em 1936 Artaud permanece uma semana em Havana, onde escreve vários artigos para jornais cubanos. Este texto, o único reencontrado, foi publicado em Carteles, em 1º de novembro de 1936. A edição, nas Obras, foi feita por Marie Dézon e Philippe Sollers.



Antonin Artaud. L’Éternelle Trahison des Blans. In.: Oeuvres. Paris, Gallimard. 2004. pp. 681-683. (Tradução: Vinícius N. Honesko) 

Imagem: Artaud.  La bouillabaisse de formes dans la tour de Babel. aproximadamente 1948.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Da angústia noturna


Na escuridão do quarto, a angústia entra disfarçada de sombra. Passa sorrateira pelas visões daquele que já não é mais do que um corpo moribundo, que sonha em cores um idílico passado cheio de vitalidade. Talvez a ideia dantesca seja, em seu caráter visceral, logo, presente, a única proposição capaz de dar conta do ingresso da angústia nos espaços de descanso: o inferno é a memória de Deus. A memória, no silêncio da noite, responde pela abertura da porta e um vazio absoluto preenche aquele quarto em que jaz o moribundo. Mas, dizia M. Eckhart, "estar vazio de todo o criado é estar cheio de Deus". Nietzscheanamente, o corpo descobre-se deus, e não um mero professor pestilento e desencantado. O vazio da angústia, que ali, naquela escuridão massacrante, era a ausência de qualquer rosto senão na forma fantasmática das imagens pré-oníricas, era similar ao choro de Odisseu à beira-mar: o herói que olha para o mar e percebe a inclemência da natureza, e, num fugaz instante, tem aguda ciência da morte e da fragilidade de seu corpo, que, em breve, sem deixar sombras ou vazios, voltará ao deserto de onde veio. A memória divina, que agora era também a sua, mostra-se, nesta noite de angústia, como aquilo que é: um imenso inferno descolorido e vazio em que, com pincel e guache, alguns fantasmas tentam deixar suas marcas impossíveis... 

Imagem: Michael Wolgemut. Circe e Ulisses. 1493.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

666

Penso que este deserto foi construído. É povoado por ruídos metálicos, vozes, milhões de fotografias virtuais, mas não passa de um deserto mesquinho forjado na solidão e no desespero de muitos. Não, eu não tenho facebook. Você me encontrará nos lugares mais inapropriados, como um bicho, buscando uma toca para se esconder. Meu desespero não se resolve nisso aí. Não quero ser como o pároco de Unamuno que, mesmo se vendo ateu, continua com suas liturgias, invectivas, com o lenga-lenga. Tenho ojeriza a pregações, mesmo o breviário religioso dos "malditos" de departamento. A filosofia, a literatura, as ciências humanas em geral foram indevidamente apropriadas pelos canalhas e pelos parasitas de cátedra, pelos "coletivos", pelos famintos por um nome literário ou, simplesmente, "curtidas". Basta. Mudar a vida e semear no deserto sem ser um pregador? Mas não se pode plantar nada em desertos artificiais, e este deserto foi construído à base de forjas pesadas, com camadas impenetráveis de galvanização. Não, nem a guerrilha, o último  poço dos escrúpulos quixotescos, nem o ópio barato, apenas um buraco, uma proteção provisória contra o relento mortífero, onde eu possa dormir algumas noites de sono tranquilo, um sono sem sonhos, só. Condenado ao deserto quero fazer deserto ao meu jeito, exijo que não o edulcorem, estas tábuas frias, palavras e objetos perdidos serão o rastro de alguém que quer ser esquecido.     

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Carta à destinatária impossível...


Para minha destinatária impossível.
Querida, o mundo cabe na brisa de um suspiro. Toda vez que penso que talvez poderia ter tido sua possibilidade, lembro também que jamais esse tempo composto condicional - esse poderia ter tido - constitui uma possibilidade, senão a falência de todas elas. Ainda hoje pensei em te escrever, depois de meses. Hesitei e, depois de lembrar de um sorriso teu, comecei, inadvertidamente, como um boneco ventríloquo nas mãos de seu senhor. Esta carta pode ser a última, como deveria ter sido a última (o que só confirma a fragilidade dos tempos compostos), porém, ainda pulsa em mim um diálogo infinito com tua voz, meiga e, ao mesmo tempo, dura. Há sempre um resto de conversa que fica, um não dito que permanece latente, como que a querer, a todo instante, nos fazer calar diante de um suposto encontro dos nossos olhares - encontro este que poderia ter acontecido horas, ou dias, ou meses, ou anos atrás. A composição dos tempos parece ser um empecilho, querida: eu, num aqui-agora inadmissível, tu, num aqui-agora para mim de todo desconhecido. Há aqui, na minha frente, enquanto escrevo, um casal que se despede. Tristes e com lágrimas nos olhos, parecem dizer um adeus que nem Borges poderia supor. Talvez seja de fato a última vez que se veem; ou, ainda, por não saber o porquê da despedida, tudo não passe de elucubração da minha parte. Mas algo me parece certo: poderiam não ter se despedido. Tudo se compõe, querida, como esses tempos faltantes e condicionantes da vida. O imprevisível desta minha carta está no fato de que eu já poderia ter decidido não escrevê-la - como, porventura, em outro dia nublado, tenha feito. Entretanto, aqui estão estes sinais, aborrecidos e teimosos e aos quais chamamos letras, formando seu composto (que em língua inglesa é seu homônimo) de que mais gostam: a carta. Já te disse que cartas são mapas que, por sua vez, não conseguem dar conta de nenhum lugar (e, como o mapa da China borgeano, estas minhas cartas jamais dão conta do que eu poderia ter te contado). Todavia, querida, ainda há pouco sentida, no meu peito descoberto, a brisa do meu próprio suspiro me fez lembrar de ti. Foi como a passagem do mundo pelo meu peito desnudo, foi como o toque de um deus cadavérico à espera da reencarnação, foi como ouvir sua voz impossível. De todo modo, querida, escrevo como esse suspiro; de uma só vez, sem ler nem reler o que escrevo, como que a tentar surpreender minha voz enquanto escrita, como que a tentar apanhar, em pleno voo, a cotovia das lembranças que me dita essas palavras, como que a sorrir, como te vi, de soslaio, enquanto a brisa do meu sopro tocava minha pele. Sem mais, querida, espero - sem esperanças - poder vê-la num agora incomposto, num tempo em que, talvez, não haja condições, mas tão somente nossas vozes a se abraçar, sem choro e sem letras, como que a borrar as letras desta carta que, talvez, tenha o desenho do mapa que sempre quis te dar.

Do seu remetente impossível.

p.s.: nos meus pós-escritos, sempre vão notícias dos postais. Aqui te mando um postal com o mapa zodiacal do hemisfério sul, desenhado por Dürer, em 1515.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Noite de tauromaquia

A noite seguiu insólita, talvez como jamais antes. Uma espécie de monólogo esquizofrênico tomava conta de sua cabeça e, como um toureiro a bailar com o animal ferido na arena, parecia que aquela voz, tão sua e, ao mesmo tempo, tão outra, era a única coisa a povoá-lo. Já estava certo de não ser o valente homem paramentado para o virtuosismo, mas sim o touro fragilizado e que espumava de ódio e cansaço. A voz era incansável e dela não havia fuga. Foram seis horas de desespero, talvez a tourada mais custosa de toda sua vida noturna, e, desta vez, não em sonho. Assim que percebia a fadiga do insone, a voz girava sua muleta vermelha, a única coisa com cor desta noite, e com seus volteios o deixava ainda mais atônito. Por que tamanha dureza? Por que essa retração aos obscuros cantos das conversas infinitas, onde essa voz de ninguém - desse eu envaidecido e, por isso, covarde - se gabava da sua soberania? A infinita tristeza parecia arrolar uma lista com todos os tique-taques percebidos e contados pela voz nesta noite. Era uma técnica de tortura? Cansado e sangrando em demasia, o insone - que, tolo, pensava não ter nada a ver com esse eu - desistiu da entrada nos sonhos e abraçou o pesadelo com os olhos abertos. A noite havia preparado, com seus sopros frios das mensagens de demência e morte, a espada. Era a parte final do espetáculo noturno da tauromaquia. Entre a carne viva e lamuriante distendida sobre o leito e a feroz voz imperiosa armada com sua espada não havia mais nenhuma distância. A lâmina penetrava, fria e lancinante, e, sem mais, não deixou senão suas marcas, seus traços: estes, justamente estes, as letras, com os quais agora, como um vagabundo do Hades, desenho a dança da noite.

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. A Arena dividida. 1825. Biblioteca Nacional, Madrid.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Pequeno parágrafo sobre a morada


Nestes rincões desertificados, a atmosfera pesa como névoa fria ao desabrigo. Uma sordidez quase palpável em meio a espectros vagantes parece dar o ritmo da vida. Vejo como querem tocar, com a ponta dos dedos, as águas frias do Estige, pensando alcançar uma espécie de imortalidade. Consomem-se e, com seus rostos cadavéricos, mostram-me seu vazio profundo na cavidade ocular, como que a insultar-me por minha petulante insistência em querer vê-los. Nenhum Virgílio me acompanha nesta barca e meu passeio não tem o rumo celestial. Vago, como um tolo, nisto a que, um dia, chamei de minha morada...

Imagem: Sandro Botticelli. Divina Comédia. (Manuscrito Hamilton 201.) 1480s. Staatliche Museen, Berlin.

domingo, 13 de outubro de 2013

Pequeno parágrafo sobre a vitalidade


Lendo "O Idiota", de Dostoiévski, Walter Benjamin diz: "a vida imortal é inesquecível, esse é o sinal que nos permite reconhecê-la. É a vida que, sem monumento e sem lembrança, mesmo sem testemunho, deveria ser inesquecida. Não pode ser esquecida. Esta vida permanece, por assim dizer, sem recipiente nem forma, a imperecível. E dizer 'inesquecível' significa mais do que dizer que não podemos esquecê-la; é remeter a algo que está na essência do inesquecível mesmo, por meio do que ele é inesquecível." O sem forma que é a vida, a duração de um modo de existir que só é interrompido pela decomposição das relações que compõem seu modo de existir em um outro possível, envolve um tempo indefinido, como disse Spinoza (Ética, III, 8). Tal indefinição componente da duração, oposta por Deleuze à eternidade (esta que, entretanto, coexiste com a duração, mas não é apreensível pela memória), de alguma maneira a nós se apresenta como vitalidade. Em todos os movimentos, em toda persistência no ser, na única substância possível, a vida histórica - a vida de qualquer príncipe idiota, incompatível com as idiotas vidas dos transeuntes de nossas dementes cidades - parece ser a única condizente à possibilidade da permanência, sem forma e inesquecível na infinita substância divina. Entretanto, a vida "sonhada" como pura presença num mundo em que deus transcende a vida, é o que vislumbra e insiste em tentar a todo custo criar o mundo do capital: forjar seres que se submetem ao pesadelo de pureza histórica, à teodicea concretizada no consumo ininterrupto e único gerador de vida. O homem médio (muito bem descrito por Pasolini, na voz de Orson Welles) que hoje repete sem cessar a necessidade de vida, que aspira o grande elixir an-histórico comprável em qualquer esquina, não percebe minimamente as potências do inesquecível e se deixa levar pelos modelos, pelas formas de vida patenteadas, por uma suposta imagem do eterno transcendente que o fascina como redenção pós-histórica (já o velho Oswald enunciou com ironia: "é a partilha do ócio a que todo homem nascido de mulher tem direito. E o ideal comum passa a ser a aposentadoria, que é a metafísica do ócio"). O ininterrupto desejo de tempo livre, de lazer, nada mais é do que a fantasia da vitalidade em estado puro (livre das sevícias do trabalho que, por outro lado, carrega também no mundo do capital uma função à vitalidade: justamente a condição sine qua non da "pura vida", o primeiro estágio da vida que produz vida gloriosa). No nosso tempo, somos o sonho não realizado da vida, sempre em busca de vida.  

Imagem: Antonio de Pereda. Vanitas. Museo Provincial de Bellas Artes, Saragossa.         

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Segunda carta sobre a crueldade



Paris, 14 de novembro de 1932.


A J.P.[1]

Caro amigo,

A crueldade não se sobrepôs ao meu pensamento; nele ela sempre viveu: mas era preciso que eu tomasse consciência disso. Eu utilizo a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor exterior à necessidade inelutável sobre a qual a vida não saberia se manifestar; quer-se o bem, ele é o resultado de um ato, o mal é permanente. Quando o deus escondido cria obedece à necessidade cruel da criação que ele impôs a si mesmo, e ele não pode não criar, portanto, não admitir no centro do turbilhão voluntário do bem um núcleo de mal cada vez mais reduzido, cada vez mais comido. E o teatro, no sentido de criação contínua, de inteira ação mágica, obedece a essa necessidade. Uma peça em que não houvesse essa vontade, esse apetite cego de vida e capaz de passar sobre tudo, visível em cada gesto e em cada ato, e no lado transcendente da ação, seria uma peça inútil e falha.

Antonin Artaud 
 
[1] O destinatário é Jean Paulhan

Antonin Artaud. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. p. 567. (Trad.: Vinícius N. Honesko)


terça-feira, 1 de outubro de 2013

Dom e dever



Entrevista com Roberto Esposito
O senhor elaborou o conceito de “impolítico” compreendido não como anti-política, mas como tentativa de uma política mais radical...
O tema do impolítico nasce da sensação de que as categorias do léxico político contemporâneo estejam, de algum modo, exauridas e não iluminam realmente aquele âmbito do agir humano que chamamos “política”. As causas de tais exaurimentos são múltiplas e têm diversas origens, mas encontram um ponto de enraizamento irruptivo na crise dos anos 20 e 30 deste século [séc. XX], que não por acaso é o período em que, no âmbito da filosofia, Heidegger opera a desconstrução da metafísica e Wittgenstein realiza uma tentativa similar no âmbito da linguagem científica. Naqueles anos, na obra de escritores como Hermann Broch ou Maurice Blanchot, de filósofos como Simone Weil, Georges Bataille e Hannah Arendt, de teólogos como Karl Barth, emerge uma linha de pensamento que, ainda que na extrema diversidade existente entre eles, procura tomar os conceitos e a realidade da política “pelas costas”, isto é, observá-los também desde o lado que normalmente o pensamento político clássico deixa à sombra ou, de modo decisivo, esconde. Essa tentativa é justamente o que defini “impolítico”, escolhendo tal termo também para marcar a diferença do que emerge desses autores em relação a outras noções, em aparência afins, como, p.ex., a anti-política. A relação impolítica, como aliás demonstram as biografias de quase todos os autores que pesquisei, não é, com efeito, contrária à política, não é portanto anti-política, mas é uma forma de radicalização do engajamento político no pensamento. O impolítico, em substância, é a relação intelectual que por um lado observa a realidade política – isto é, os conflitos de interesse, o poder – de modo muito realista, enquanto, por outro lado, não considera essa realidade mesma um valor em si, não lhe fazendo nenhuma apologia e, assim, ausentando toda teologia e filosofia da política. O impolítico, em suma, é uma maneira desconstrutiva de observar a política que traz à luz como, geralmente, a tradição filosófico-política sempre insistiu no problema da ordem – isto é, em como ordenar a sociedade –, em qual seja o melhor regime e, assim, sempre acabou por evitar a questão de fundo da própria política, qual seja, o conflito. No pensamento filosófico-político moderno, por exemplo, já em Hobbes, que é seu iniciador, a irredutibilidade do conflito é substancialmente recalcada. Hobbes diz, com efeito, que para que haja ordem todo tipo de conflito deve desaparecer, portanto, é preciso um soberano que exercite o poder sem deixar espaço não apenas a alguma forma de conflitualidade, mas, de fato, a qualquer forma de agregação. A ordem, desse modo, foi pensada como radicalmente contraposta ao conflito que, assim, foi visto como eliminável. Ao contrário dessa concepção, o impolítico procura fazer reemergir a realidade, a irredutibilidade, do conflito pois, como já dizia Platão, “em cada homem, em cada alma, há uma luta entre diversas partes, cavalos que levam a biga em direções opostas”. O conflito, como sabiam também santo Agostinho ou Maquiavel, é uma realidade originária, um costume irrenunciável da realidade e da civitas, pois está dentro de cada um de nós.

Mas a ideia do contrato, como é compreendida pelo liberalismo, não leva em conta essa originalidade e irredutibilidade do conflito?
A ideia do contrato, formulada por Hobbes, por Rousseau e por outros pensadores, e que é em grande parte transferida ao liberalismo, parte do pressuposto de que originariamente, ao menos do ponto de vista lógico, os homens entre si estejam numa posição de absoluta igualdade e podem, desse modo, firmar um contrato que, como tal, portanto, implica uma substancial paridade entre os contraentes. Autores como o já citado Maquiavel, Vico e o próprio Hegel, objetam contra tal concepção dizendo que, assim como na realidade essa igualdade originária jamais existiu, é preciso estar ciente de que as relações de força precedem e determinam a forma da contratação, fato que, dentre outras coisas, significa que o direito tem a ver com a força. Tendo em conta tudo isso, é preciso então reconhecer que por certo o liberalismo propõe-se como uma teoria que elimina, ou ao menos neutraliza, as relações de força por meio da lei, mas isso não suprime o fato de que, na realidade, mesmo o liberalismo de algum modo legitima as relações de força preexistentes. Essa legitimação é devida também ao fato de que o liberalismo coloque como seu fundamento um modelo individualista do ser humano, e o modelo individualista é, ao menos no início, um modelo não solidário. Não por acaso Hobbes sustenta que antes do contrato as relações entre os indivíduos sejam aquelas do homo homini lupus, isto é, relações agressivas. Também na origem da tradição liberal, portanto, há essa consciência de que os indivíduos estão em perpétua competição, e, com efeito, o liberalismo ao mesmo tempo certamente regula e legitima as  forças existentes. No liberalismo esses dois aspectos são, para mim, inseparáveis, mesmo se tendo a acentuar o segundo, sobretudo em relação àqueles que apresentam o liberalismo como um Éden, como a solução definitiva.

Se o conflito não é de nenhum modo reduzível, e se as relações sociais são portanto marcadas pela força, então também a democracia só pode ser uma técnica de gestão de tal conflito e não um sistema centrado sobre valores partilhados...
Também com respeito à democracia, como ao contrato social, existem duas grandes opções teóricas. Uma é aquela que, a partir de Rousseau, chegando, por certos caminhos, também a Marx, considera a democracia positivamente, entendendo-a como o sistema social baseado sobre o valor da igualdade. Por consequência, tal sistema seria mais do que um simples sistema de regras, pois conteria em si uma opção, um valor, sempre por ser atingido e que, enquanto tal, orienta-o. A outra linha de pensamento, em particular Weber, mas também Kelsen, Schumpeter e tantos outros, sustenta, ao invés, que a democracia não pode ser centrada sobre um valor porque não é possível definir, justo por reconhecer a igualdade entre os membros da sociedade, qual seja o valor supremo enquanto faltar qualquer instância superior. Para tais pensadores, portanto, a democracia só pode ser uma técnica, isto é, um conjunto de regras e de procedimentos que regulam o confronto político, em cujo interior os valores sustentados pelos diversos grupos sociais remetem-se entre si. Creio que o que deve ser evidenciado, em relação a essas duas diferentes opções, é que entender a democracia como valor – ou ainda, como o maior valor a ser cumprido –, mesmo que ela seja o contrário do totalitarismo, pode causar o risco de um deslocamento para uma forma totalitária. Isso acontece porque compreender a democracia como a encarnação de um valor implica, de algum modo, que deva haver alguém que assim encarne aquele valor e o faça ser respeitado também por aqueles que não se sentem representados por tal valor.
Dito isso, entretanto, não se pode esquecer que também a democracia compreendida como técnica, como conjunto de regras ou de procedimentos, tem fortíssimos limites. Não se pode esquecer, com efeito, que mesmo a técnica não é neutra, antes de mais nada porque existe quem tem os instrumentos práticos e conceituais para gerenciá-la e quem, por outro lado, de tais instrumentos está privado. Exatamente por considerar os riscos e os limites dessas diversas concepções da democracia que nasce a minha tese, que, por um lado, interpreta a democracia de modo essencial como um conjunto de regras, mas, por outro, sustenta que justo por isso ela sempre deve ter como pano de fundo um chamado a um “outro de si”, isto é, o chamado impolítico à comunidade. O que procuro indicar, em suma, é um modo de manter a própria democracia em um difícil equilíbrio e impedir tanto que ela seja vista como um valor insuperável quanto que o simples fato de ser uma técnica, que por vezes gerencia os valores sociais, possa ser visto como uma solução em si.

Mas falar de “comunidade” não é de per se contraditório em relação à ideia de política, de polis?
Ao contrário, é preciso estar atento em relação aos termos. A polis, a esfera política, é o âmbito, o espaço público, que se constitui colocando em relação entre si os sujeitos, os indivíduos enquanto tal, sem se perguntar de onde tais indivíduos vêm, onde se origina a sua “consistência” que a polis deveria colocar em relação. A comunidade, ao menos no modo como procurei delineá-la no meu último livro, é, ao contrário, aquilo que coloca em crise a forma do sujeito, mas que a este também é subjacente, pois há comunidade onde algo da subjetividade, compreendida como uma forma plena e realizada, rompe-se, e é apenas nessa ruptura que realmente se situa a comunicação. A comunicação não pode ser, e não é, aquela da esfera pública, pois na esfera pública a comunicação vem como contratação – no melhor dos casos, como diálogo, isto é, como reconhecimento recíproco –, enquanto o pensamento radical da comunidade implica algo a mais, algo que precede a própria constituição da subjetividade. Em suma, comunidade é o munus, isto é, o “dom” que é também “dever”, que se mostra quando os sujeitos sentem que não são realmente “proprietários” de si mesmos, que não são “feitos por si”, mas que são “criaturas”; que aquilo que os faz ser “sujeitos” não depende deles e que, portanto, a identidade não é uma propriedade. A comunidade, desse modo, sempre tem a ver com o impróprio, com o anônimo, e justo porque é dom e dever anônimo, por um lado, jamais existe, jamais é plenamente realizada, enquanto, por outro lado, sempre existe, pois originariamente somos em comum, somos lançados em um mundo que nos precede.
Por tudo isso, a comunidade não é realizável como forma política – quando isso aconteceu, quando uma forma política diz de si mesma “Eu sou a comunidade, eu a realizo plenamente”, como sabemos, chegou-se ao totalitarismo, mas sempre por isso, todavia, a comunidade é também o horizonte que a política deveria afrontar de modo contínuo.
De fato, se devêssemos procurar um lugar onde a comunidade pode emergir, é mais fácil que tal lugar seja aquele em que haja situações de extremo mal estar, por exemplo, um campo de refugiados, mais do que em um parlamento.
O confronto parlamentar, com efeito, é possível apenas enquanto se baseia na identificação dos sujeitos individuais com seu papel – parlamentares, deputados, líderes de partido –, de modo que é um confronto no qual a identidade não está em jogo, justo por basear-se naquela identidade, que, pelo contrário, eles falam e contratam. De modo oposto, em um encontro improvisado, em um encontro entre indigentes em um hospital, por exemplo, as identidades não são mais máscaras, não exprimem mais um papel, e é exatamente quando a institucionalidade se fragmenta, rompe-se, que a comunidade, destituindo a instituição, emerge. Tudo isso no plano teórico, pois nas relações normais certa institucionalidade está sempre presente, mas o importante é a consciência de que essa institucionalidade não é o todo.

O seu apelo à comunidade como horizonte da política é, em certo sentido, um modo para manter constantemente aberto o jogo entre o que define os indivíduos e a representação que deles é feita...
Que o nosso “existir” [esserci] seja sempre um “ser com”[essere con], isto é, que nenhum de nós tenha em si a sua origem, parece-me um fato evidente que reivindico e defendo, mas é também verdade que, justo em virtude desse originário “ser com”, esse nosso próprio “existir”[esserci] apenas pode ser sempre representado. Dizíamos antes: não se sai do papel, daquilo que somos para os outros, e essa impossibilidade faz parte da nossa historicidade, esta que, entretanto, não exaure o elemento originário do nosso “existir” [esserci]. Isso, em outras palavras, quer dizer que no ato do nascimento ou no átimo da morte, isto é, nos dois momentos decisivos da nossa existência – mas também no instante da absoluta dor – o ato da representação, do papel, daquilo que alguém representa, quase falta por completo e deixa apenas aquilo que é. Essa é claramente uma condição limite, uma condição que na vida efetiva é quase ausente, porém, é uma condição de algum modo pensável. A comunidade é aquilo que nesse pensamento-limite se mostra, é o munus – do qual advém, justamente, communitas, comunidade –, o dom/comprometimento, que nos determina mas que sempre nos foge, nos ultrapassa. É por isso que a dimensão da comunidade é sempre marcada pela ausência, pelo vazio, pelo risco, e não por uma presença cuja apropriação nos seria possível.

A comunidade, ao menos como o senhor a trata, parece assim uma dimensão dificilmente atingível nas sociedades contemporâneas, estas que são de todo conformadas nos paradigmas da modernidade e centradas sobre a técnica...
Sem dúvidas tenho a tendência a ver comunidade e modernidade em termos prevalentemente opositivos, pois o que a comunidade indica contrasta com o paradigma fundante da modernidade. De fato, enquanto a comunidade apela constantemente ao originário “ser com” e ao seu caráter inapreensível, a modernidade, pelo contrário, afirma-se segundo o paradigma da imunização e da concretização. Com a modernidade, o indivíduo começa a pensar sua existência como autofundada por completo, portanto, como substancialmente bastante a si mesma e que deve salvaguardar como tal e, para tanto, para operar essa salvaguarda, torna-se necessário construir recintos ao seu redor e é preciso imunizá-la do contágio e do contato com os outros. Seria possível até mesmo dizer, pensemos na Aids e também na imigração, que o problema central que emerge no nosso tempo é o da imunologia em sentido médico, jurídico e político.
Dito isso, entretanto, ainda estou convicto de que, hoje, pensar a comunidade não quer necessariamente dizer vê-la desde uma perspectiva nostálgica, como um retorno ao pré-moderno ou a uma fase pré-técnica. Não creio que comunidade, modernidade e técnica – esta que não me parece remeter apenas à modernidade – sejam necessária e radicalmente contrapostas, mas, ao contrário, sou levado a pensar que é preciso imaginar essa ideia de comunidade tanto nos valores da modernidade quanto na própria técnica.
Por certo, como expuseram Heidegger e outros pensadores, a técnica, e em particular a técnica moderna, constituiu-se a partir de uma lógica orientada ao domínio e, desse modo, tem em si elementos potencialmente destrutivos e impositivos. De outro lado, entretanto, é também verdade que a dimensão técnica provavelmente é ligada à nossa própria origem como homens. Um homem fora da dimensão técnica não é pensável.

No fundo, não realiza também um gesto técnico o homem primitivo de Rousseau quando apanha a maçã da árvore, isto é, um gesto lançado em vistas de um fim?
Em substância, estou convencido de que pensar a técnica apenas em sentido negativo, vê-la como má, não nos leva a nenhum lugar. É por isso que fui levado a presumir que possa existir uma técnica não destrutiva da pietas constitutiva da comunidade; isto é, uma técnica não agressiva. A dimensão de poder e de domínio presente na técnica está ligada à prevalência assumida pelo “saber fazer” sobre o simples “fazer”, ou seja, no predomínio que a sistematização e a operatividade do saber têm hoje em relação à capacidade do agir humano. Mas se nós conseguíssemos retirá-la do “saber” e a reconduzisse ao simples “fazer”, não seria de algum modo possível à centelha que a técnica apagou fulgurar novamente? No fundo, é um pouco daquilo que dizia também Heidegger quando afirmava que a salvação mora ao lado do perigo. Tudo isso, contudo, é um discurso aberto; não tenho convicções definitivas sobre o assunto, apenas sugestões.

Talvez o problema esteja no fato de que a técnica, a partir de certo momento, não foi mais vista como o necessário fazer do homem, mas como um operar a serviço de outra coisa como, por exemplo, a economia...
Em relação a isso estou claramente de acordo: a economia é, com efeito, a esfera constituída exclusivamente pelo proprium, pela propriedade, pela apropriação, e é por isso que estou convencido de que uma comunidade jamais possa ser pensada em sentido econômico, portanto, segundo as categorias que a “ciência econômica” formaliza e segundo as lógicas inauguradas pelo pensamento da economia como um espaço separado. São lógicas e categorias tão arraigadas que também o comunismo, nascido pela necessidade de a ela se opor, acabou por assumir como seu centro as mesmas categorias de produção e produtividade que queria combater. A comunidade, ao contrário, é por natureza ineconômica, aneconômica, justo porque é o que se mostra de um “dom” e de uma “obrigação” que, como tais, sempre escapam à reificação, portanto, também à reificação econômica. A única economia pensável no plano da comunidade é, como Bataille justamente sublinhava quando falava da dépense, aquela do desperdício, a economia paradoxal que inclui de modo constitutivo a perda, a não rentabilidade do agir econômico.

E ainda assim a racionalidade de tipo econômico invade sempre mais todo âmbito, mesmo aquele da política...
Não há dúvidas de que a política tenha sido “economizada”, isto é, seja sempre e em toda parte gerida com base em considerações econômicas, isto que, de fato, está radicalmente em contraste com a ideia de comunidade. A comunidade, sendo perda, esvaziamento da subjetividade, é algo que todos, também nós que dela falamos positivamente, temem, pois se colocar em comum, colocar-se em jogo, é um risco. Uma das maneiras de responder a tal temor é a economização. Não por acaso as sociedades contemporâneas, sobretudo as ocidentais, que justo em virtude dos valores da modernidade sentem de modo profundo o risco comunitário – o contínuo emergir de uma exigência comunitária –, tendem a disso se salvaguardar acumulando recursos e/ou apropriando-se dos recursos de outrem, isto é, como dizia antes, com a presumida imunização representada pela acumulação.

Mas onde se situaria, nas sociedades ocidentais, tal exigência comunitária?
Para mim, parece que nas milhões de pessoas que voluntariamente fazem com que essa exigência seja tão facilmente visível. O voluntariado só se explica com essa exigência comunitária, mesmo se não quero dizer que apenas esta exista. Para mim, parece que justo porque o político já foi inteiramente sugado pelo econômico e pelo técnico-especializado é que hoje tenha ficado de todo descoberto o social, este que (de modo óbvio, sem enfraquecimento) se tornou o lugar onde, talvez, de maneira mais fácil, seja possível voltar a praticar uma política que não seja só tática ou puro jogo entre representações sempre mais distante daquilo que deveriam representar. Além de tudo, o terreno social é justo aquele em que hoje acontece o encontro com as culturas não ocidentais, e isso remete, mais uma vez, ao munus que, como dizia antes, acomuna todos os homens. Por certo uma realização efetiva e completa da comunidade não é possível, mas levando em conta aquilo que ela indica, é possível notar como muito do que acontece no terreno social seja particularmente significativo. Paris, por exemplo, é uma cidade que, mesmo com todas as suas contradições e violências, me faz pensar que no seu interior de algum modo a comunidade lampeje. Em Paris, por uma série de motivos históricos, culturais e de outros gêneros, realizou-se uma efetiva fusão entre as várias culturas e civilizações; o amarelo, o negro, o branco estão em todas as dimensões sociais e, pelas ruas, é possível ver com frequência rapazes negros abraçados com moças brancas. Com isso, repito, não quero dizer que em Paris esteja sendo realizada “a comunidade”, mas por certo dela se tem o sentido, sobretudo em alguns ambientes. Para que isso aconteça não basta colocar juntas as diversas culturas, pois também nas cidades americanas as culturas são tantas mas, diferentemente de Paris, estão restringidas dentro de pedaços definidos da cidade, de modo que há o bairro chinês, o japonês e assim por diante, cada um fechado em si mesmo e tendencialmente em conflito com os outros, como se viu bem durante as desordens de Los Angeles. Procurando colocar-se desde o ponto de vista da comunidade, a questão do multiculturalismo é particularmente complexa e deve ser tratada com muita atenção. O meu livro sobre a comunidade nasce também um pouco em polêmica com o neocomunitarismo americano, que se preocupa apenas com a definição de quais deveriam ser as relações permitam a coexistência das diversas culturas, tomando a existência destas como um dado de fato que é aceito em si, no seu aparente fechamento, do mesmo modo com o qual o liberalismo, como vimos no início, aceita as relações de força que preexistem ao contrato. Mas se “multiculturalismo” significa apenas que toda parte deve ter os seus direitos, que deve ter sua bandeira, parece-me que está indo na direção de todo oposta àquela comunitária, para a qual, ao invés, “multiculturalismo” só pode significar a efetiva fusão, a contínua contaminação, entre os homens e as culturas.

Entrevista com Roberto Esposito (realizada por Franco Melandri e Sergio Sinigaglia), publicada originalmente me Una Città, n. 71, 1998, Disponível em: http://www.unacitta.it/newsite/intervista.asp?id=304 (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)



Imagem: Francisco de Goya e Lucientes. A forja. 1819. Frick Collection, New York.      

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Pequeno parágrafo sobre furtos


Eis que ela tinha um devaneio enquanto brincava na praia. Era tomada de um pensamento mais ou menos assim: "Toda música tem um destinatário, mesmo que ele jamais a ouça. Pode parecer absurdo, mas é certo que com frequência esse destinatário não chegará a ouvir a música que lhe fora destinada. Não se trata de uma impossibilidade tout court, mas de algo como uma interdição que o compositor coloca a si mesmo: no fundo, oras, é ele mesmo o destinatário! Mas como um seu fazer pode ser distanciado de si a ponto de poder voltar para si? É justamente essa a impossibilidade, a interdição. Nunca se compõe uma música (e, acho, talvez isso valha para toda obra de arte) para os demais, mas para esse outro que habita o compositor e que jamais irá ouvir a música que a ele fora feita. Tal é a maldição do artista: uma condenação a continuar com-pondo (pondo algo que lhe escapa junto com esse outro em si, que também não perceberá a composição senão como ausência), sempre, como sua única possibilidade de estar vivo." Eu me mantinha inerte, com o olhar fixo para ela, tentando escrever estas breves linhas de seu pensamento antes que ela se desse conta de que havia um estranho que a observava. Era inútil tentar disfarçar, pois, penso, ela já sabia que eu acabara de escrever suas ideias sobre a música. Meu pensamento tremia e eu tentava recompô-lo, provava uma dor angustiada por ter escrito aquele pensamento que nem ao menos sabia se era dela, ou se alguém antes dela já o tinha pensado. Aliás, com que direito tentava apreender um pensamento? Uma vergonha apoderou-se de mim; sentia-me nu, despido de qualquer possibilidade de dirigir a palavra àquela moça, pois a palavra, apenas sabia usá-la por tê-la furtado justamente dela, daquela moça que talvez tivesse pensado estas minhas linhas e que, agora, sumia, num mergulho, em meio à multidão que brincava na praia. Se estas linhas desse pensamento outro têm alguma razão, talvez possa ser esta: pensamos apenas pelo outro que nos pensa e, assim como uma música, jamais nos será possível entender - ou, melhor, pensar - a destinação do pensamento...

Imagem: Paul Gauguin. Mahana no atua. (O dia do Deus). 1894. Art Institute, Chicago.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Pequeno parágrafo sobre o torpor



Nada mais do que o som oco dos seus passos. Era um dia cinza, talvez como seu humor, e, em meio a tantos possíveis pensamentos, apenas o som do nylon de sua jaqueta suada parecia fazer algum sentido. O vento frio, a luz opaca, os rostos inexpressivos da gente que por ele passava; tudo o que talvez pudesse ser dito vivo a ele não era senão os esboços irônicos da morte que há pouco sentira na voz de alguém por quem tanto zelava. Continuava em seus passos; o som do nylon, porém, insistia em dar-lhe notícias do que aparentava ser uma espécie de filme com a história de sua vida. Era estranho, era muito estranho. Lembrou dos comentários que Pasolini certa vez fizera a respeito de seu Édipo rei (esse delírio de autobiografia do poeta): "O cinema - que é uma sequência infinita que reproduz de um único ponto de vista toda a realidade - é fundado assim sobre o tempo: e, por isso, obedece às mesmas regras que a vida: as regras de uma ilusão. Estranho dizer isso, mas tal ilusão, é preciso aceitá-la." Pasolini, de quem tanto gostava, dizia isso sabendo que aquele que evita aceitar a ilusão da própria vida, acaba perdendo a própria realidade. Ora, seu caminhar "cinza" em um dia "cinza" já era algo que, de algum modo, queria alertá-lo sobre o beco sem saída da ficção que é a vida (e lembrar de Pasolini não era um alento?). Não havia - e não há - saída, e então o ruído ensurdecedor daquela jaqueta colocava-o defronte ao vazio da conclamada realidade. Tudo não era senão Ficção. Todos os rostos, o vento frio, a luz opaca, tudo o que ele uma vez pensou ser vida, agora lhe mostrava a única face possível: o torpor, o sonho de uma vida...

Imagem: Piero della Francesca. O sonho de Constantino. Basílica de S. Francesco, Arezzo.

domingo, 8 de setembro de 2013

Pequeno delírio em parágrafo XV


E no princípio era o sonho, logo transformado nas asas de um abutre que pairava então sobre minha cabeça. Tangendo toda forma de realidade, soavam em mim, como ecos, os ruídos quase guturais daquele abutre-sonho. A ave da minha vida, sonhada e esperada, desnudada agora na sua real figura. Olhava para cima, atônito, tentando enquadrá-la num plano sequência, como se aquilo tudo fosse um filme no qual eu figurava como um qualquer, um sórdido personagem secundário da própria vida. Era o vazio que preenchia a cena, o vasto e noturno céu, que, agora, depois das asas do abutre, ocupava minha lente. Aos sons obscuros da ave agora misturava-se o noturno, a vasta escuridão do sonho que, de início, era o próprio abutre. Tudo, tudo não era senão a fantasia de achar-me em um filme-abutre-sonho que agora era eu mesmo. Todo o tempo, todos os anos, todos os desejos, todos os quaisquer, absorvidos pelos hifens que hoje me condenam às conexões mais disparatadas e à submissão ao filme-abutre-sonho-eu, ou, melhor dizendo, ao meu fantasma...

Imagem: Jusepe de Ribera. Tício. 1632. Museo del Prado, Madrid.

domingo, 18 de agosto de 2013

Pequeno delírio em parágrafo XIV



Todas as vozes do mundo parecem entrar em minha cabeça a cada movimento raivoso dos braços de Jacqueline. O cello canta com uma voz que me diz coisas que eu talvez jamais poderia ter dito. É tudo muito claro, como nas cartas que, por vezes, um filho, confuso pelas respostas desajeitadas da mãe demente, tentava esclarecer do seu passado esquecido. Ou seja, nada brilha na memória, apenas um espaço em branco como que a ser preenchido por este cello, e apenas por este. A tensão do som, a harmonia e a melodia, o instante em que soa, esse irrepetível e, ao mesmo tempo, inesquecível que assola qualquer possibilidade de coerência deste parágrafo. Um susto, e nada mais. O espanto das letras que saltam como que a desenhar partituras ilegíveis que, com insistência, tento exprimir nestas malditas linhas. Minha condenação é a palavra percebida, e qualquer reduto de paz - o tão sonhado apanágio destes tempos sombrios - não é senão o viver a condenação sem a perceber. Procuro, em vão, neste inóspito quarto - como que numa leitura sem esperanças de didascálias que me indicam como encenar -, a matéria da vida, a razão do som que do cello de Jacqueline escuto sair incólume. Delírio, perdição na palavra, desgostos por ver o sol que se vai mais uma vez. Sem poder dizê-lo, ele, o sol, cubro-me das sombras da noite produzidas por estas palavras que me fazem calar, e, em silêncio, apenas ouço minha respiração ofegante. Mas, desafortunado, percebo que não há escapatória à pena da língua e mesmo essa brisa noturna é ensurdecedora...

Imagem: Hans Baldung Grien. O criado enfeitiçado. 1544. The National Gallery of Art, Washington.

domingo, 4 de agosto de 2013

Identidade sem pessoa



O desejo de ser reconhecido pelos outros é inseparável do ser humano. Tal reconhecimento, de outro modo, é para ele tão essencial que, segundo Hegel, cada um, para obtê-lo, está disposto a colocar em jogo a própria vida. Não se trata, com efeito, apenas de satisfação ou de amor próprio: ao contrário, é somente por meio do reconhecimento dos outros que o homem pode constituir-se como pessoa.
Persona significa, na origem, “máscara”, e é por meio da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social. Assim, em Roma, todo indivíduo era identificado por um nome que exprimia o seu pertencimento a um gens, a uma estirpe, mas esta era, por sua vez, definida pela máscara de cera do ancestral que toda família patrícia custodiava no átrio da própria casa. Daí a fazer da persona a “personalidade” que define o lugar do indivíduo nos dramas e nos ritos da vida social, foi um passo breve, e persona acabou por significar a capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre. Quanto ao escravo, assim como não tinha nem ancestrais, nem máscara, nem nome, não podia sequer ter uma “persona”, uma capacidade jurídica (servus non habet personam). A luta pelo reconhecimento é, portanto, luta por uma máscara, mas essa máscara coincide com a “personalidade” que a sociedade reconhece a cada indivíduo (ou com a “personagem” que, com a sua conivência às vezes reticente, ela faz dele).

Não surpreende que o reconhecimento da própria pessoa tenha sido por milênios o domínio mais significativo e cuidado com mais zelo. Os outros seres humanos são importantes e necessários antes de mais nada porque podem me reconhecer. Assim também o poder, a glória, as riquezas, a que os “outros” parecem ser tão sensíveis, têm sentido, em última análise, apenas em vista desse reconhecimento da identidade pessoal. Por certo é possível caminhar como incógnitos pelas ruas da cidade, vestidos como mendigos, como, segundo contam, amava fazer o califa de Bagdá, Hárún al-Rashíd; mas se não houvesse jamais um momento em que o nome, a glória, as riquezas e o poder fossem reconhecidos como “meus”, se, como certos santos recomendam fazer, eu vivesse toda a vida no não-reconhecimento, então também a minha identidade pessoal seria perdida para sempre.

Na nossa cultura, a “pessoa-máscara” não tem, entretanto, apenas um significado jurídico. Ela contribuiu também de modo decisivo à formação da pessoa moral. O lugar em que isso aconteceu foi, sobretudo, no teatro. E, também, a filosofia estoica, que modelou a sua ética sobre a relação entre o ator e a sua máscara. Tal relação é definida por uma dupla intensidade: por um lado, o ator não pode pretender escolher ou refutar o papel que o autor lhe designou; por outro, não pode nem mesmo identificar-se sem resíduos com ele. “Recorda”, escreve Epiteto, “que tu és como um ator no papel que o autor dramático quis te colocar; breve, se breve, longo, se longo. Se ele quiser que tu encenes um papel de mendigo, faça-o convenientemente. E faça o mesmo para um papel de estropiado, de magistrado, de simples particular. Escolher o papel não te diz respeito: mas encenar bem a pessoa [persona] que te foi designada, isso depende de ti” (Ench. XVII). E, todavia, o ator (como o sábio que o toma como paradigma) não deve identificar-se por completo com o seu papel, confundir-se com seu personagem. “Logo chegará o dia”, ainda adverte Epiteto, “em que os atores acreditarão que a sua máscara e os seus costumes [costumi] sejam eles próprios” (Diss. I, XXIX, 41).
Ou seja, a pessoa moral se constitui por meio de uma adesão e, conjuntamente, por uma separação em relação à máscara social: aceita-a sem reservas e, ao mesmo tempo, toma dela, quase de modo imperceptível, distâncias.
Talvez em nenhum lugar esse gesto ambivalente e, ao mesmo tempo, a separação ética que ele abre entre o homem e a sua máscara apareçam com tanta evidência como nas pinturas ou nos mosaicos romanos que representam o diálogo silencioso do ator com a sua máscara. O ator aí é representado em pé ou sentado diante da sua máscara, que segura na mão esquerda ou está colocada sobre um pedestal. A ligação idealizada e a expressão absorta do ator, que mantém fixo o olhar nos olhos cegos da máscara, testemunham o significado especial da sua relação. Esta atinge o seu limiar crítico – e, também, o seu ponto de inversão – no início da idade moderna, nos retratos dos atores da Commedia dell’Arte: Giovanni Gabrielli, chamado Il Sivello, Domenico Biancolelli, chamado Arlecchino, Tristano Martinelli, também ele Arlecchino. Agora o ator não olha mais a sua máscara, esta que, pelo contrário, segura com a mão e exibe; e a distância entre o homem e a “pessoa”, tão apagada nas representação clássicas, é acentuada pela vivacidade do olhar que ele dirige decidida e interrogativamente em direção ao espectador.

Na segunda metade do século XIX, as técnicas de polícia conhecem um desenvolvimento inesperado, que implica uma transformação decisiva do conceito de identidade. Esta não é mais, então, algo que diga respeito essencialmente ao reconhecimento e ao prestígio social da pessoa, mas responde à necessidade de assegurar um outro tipo de reconhecimento, aquele, feito por parte do agente de polícia, do criminoso reincidente. Não é fácil para nós, habituados desde sempre a saber-nos registrados com precisão em cartórios e fichários, imaginar quão árduo podia ser a averiguação da identidade pessoal em uma sociedade que não conhecia a fotografia nem os documentos de identidade. É fato que, na segunda metade do século XIX, justo isso se torna o problema principal daqueles que se concebiam como os “defensores da sociedade” diante do aparecimento e da difusão crescente da figura que parece constituir a obsessão da burguesia oitocentista: o “delinquente habitual”. Tanto na França quanto na Inglaterra, foram votadas leis que distinguiam claramente entre o primeiro crime, cuja pena era a prisão, e a reincidência, que era punida, por sua vez, com a deportação para as colônias. A necessidade de poder identificar com certeza a pessoa presa por um delito torna-se, nesse período, uma condição necessária para o funcionamento do sistema judiciário.
Foi tal necessidade que levou um obscuro funcionário do comissariado de polícia de Paris, Alphonse Bertillon, a colocar em funcionamento, por volta do fim dos anos setenta, o sistema de identificação dos delinquentes baseado na medição antropométrica e na fotografia sinalética, que, em poucos anos, torna-se célebre no mundo inteiro como Bertillonage. Quem quer que, por alguma razão, fosse parado ou preso, era de imediato submetido a um conjunto de medições do crânio, dos braços, dos dedos das mãos e dos pés, das orelhas e da face. Logo em seguida, o indivíduo suspeito era fotografado tanto de frente quanto de perfil, e as duas fotografias eram coladas na “folha Bertillon”, que continha todos os dados úteis para a identificação, segundo o sistema que o seu inventor tinha batizado como portrait parlé.

Nos mesmos anos, um primo de Darwin, Francis Galton, desenvolvendo os trabalhos de um funcionário da administração colonial inglesa, Henry Faulds, começou a trabalhar em um sistema de classificação das impressões digitais, que permitiria a identificação dos criminosos reincidentes sem possibilidade de erro. Curiosamente, Galton era um convicto apoiador do método antropométrico-fotográfico de Bertillon, cuja adoção na Inglaterra defendia; mas sustentava que o levantamento das impressões digitais era particularmente adaptado aos nativos das colônias, cujos traços físicos tendiam à confusão e pareciam iguais aos olhos de um europeu. Um outro âmbito em que o procedimento teve uma precoce aplicação foi a prostituição, pois se sustentava que os procedimentos antropométricos implicassem uma promiscuidade constrangedora em relação às criaturas do sexo feminino, em quem as longas cabeleiras tornavam, por outro lado, mais difícil a medição. É provável que tenham sido razões desse tipo, de algum modo ligadas a preconceitos raciais e sexuais, a retardar a aplicação do método de Galton para além do âmbito colonial ou, no caso dos Estados Unidos, dos cidadãos afro-americanos ou de origem oriental. Mas já nos primeiros vinte anos do século XX o sistema se difunde por todos os estados do mundo e, a partir dos anos vinte, tende a substituir ou a ser concomitante ao Betillonage.
Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não era mais função da “pessoa” social e do seu reconhecimento, mas dos dados biológicos que com aquela não podiam ter nenhuma relação. O homem retirou de si a máscara, na qual se fundara por séculos a sua possibilidade de ser reconhecido, para entregar a sua identidade a algo que lhe pertence de modo íntimo e exclusivo, mas com o qual não pode de modo algum identificar-se. Não são mais os “outros”, os meus semelhantes, os meus amigos ou inimigos, a garantir o reconhecimento, e nem mesmo a minha capacidade ética de não coincidir com a máscara social que, no entanto, assumi: a definir a minha identidade e a minha possibilidade de ser reconhecido agora estão os arabescos insensatos que o meu polegar tingido deixou sobre uma folha em um comissariado de polícia. Isto é, algo de que não sei absolutamente nada e com o qual, e do qual, não posso em nenhum caso identificar-me nem tomar distância: a vida nua, um puro dado biológico.

As técnicas antropométricas foram pensadas para os delinquentes e permaneceram por longo tempo seu privilégio exclusivo. Ainda em 1943, o Congresso dos Estados Unidos rejeitou o Citizen Identification Act, que tinha como objetivo instituir para todos os cidadãos carteiras de identidade com as impressões digitais. Mas é por lei, que quer que aquilo que foi inventando para os criminosos, os estrangeiros e os judeus, que, mais cedo ou mais tarde, as técnicas que tinham sido elaboradas para os reincidentes serão aplicadas a todos os seres humanos enquanto tais, isto é, serão, no curso do século XX, estendidas a todos os cidadãos. A foto sinalética, por vezes acompanhada também pela impressão digital, torna-se então parte integrante do documento de identidade (uma espécie de “papel Bartillon” condensada) que estava de maneira gradativa se tornando obrigatório em todos os estados do mundo.
Mas o passo extremo foi cumprido apenas nos nossos dias e está, até agora, em plena realização. Graças ao desenvolvimento de tecnologias biométricas que podem revelar rapidamente as impressões digitais ou a estrutura da retina ou da íris por meio de scanners ópticos, os dispositivos biométricos tendem a sair dos comissariados de polícia e dos escritórios de imigração para penetrar a vida cotidiana. A entrada dos restaurantes estudantis, dos colégios e até mesmo das escolas elementares (as indústrias do setor biométrico, que conhecem atualmente um frenético desenvolvimento, recomendam que se habituem os cidadãos desde pequenos a esse tipo de controle) em alguns países já são reguladas por um dispositivo biométrico óptico, no qual o estudante coloca distraidamente a mão. Na França, e em todos os países europeus, prepara-se a nova carteira de identidade biométrica (INES), munida de um microchip eletrônico que contém os elementos de identificação (impressões digitais e fotografia numérica) e um copião de firma para facilitar as transações comerciais. E, na irrefreável deriva governamental do poder político, em que convergem curiosamente tanto o paradigma liberal como o estatístico, as democracias ocidentais começam a organizar o arquivo do DNA de todos os cidadãos, com fins tanto de segurança e de repressão dos crimes quanto de gestão da saúde pública.

De vários lados se chamou a atenção sobre os perigos ínsitos em um controle absoluto, e sem limites, por parte de um poder que disponha dos dados biométricos e genéticos dos seus cidadãos. Nas mãos de um tal poder, o extermínio dos judeus (e qualquer outro genocídio imaginável), que foi cumprido com bases documentárias incomparavelmente menos eficazes, teria sido total e velocíssimo.
Ainda mais grave, pois de todo inobservadas, são as consequências que os processos de identificação biométrica e biológica têm sobre a constituição do sujeito. Que tipo de identidade pode se construir sobre dados meramente biológicos? Por certo não uma identidade pessoal, que era ligada ao reconhecimento dos outros membros do grupo social e, ao mesmo tempo, à capacidade do indivíduo de assumir a máscara social sem entretanto a ela deixar-se reduzir. Se a minha identidade é agora determinada, em última análise, por fatos biológicos, que não dependem de modo algum da minha vontade e sobre os quais não tenho nenhum controle, a construção de algo como uma ética pessoal torna-se problemática. Que relações posso instituir com as minhas impressões digitais ou com meu código genético? Como posso assumi-los e, ao mesmo tempo, tomar deles certas distâncias? A nova identidade é uma identidade sem pessoa, em que o espaço da ética, que estávamos habituados a conceber, perde o seu sentido e deve ser repensado por inteiro. E enquanto isso não acontecer, é lícito esperar um colapso generalizado dos princípios éticos pessoais que regeram a ética ocidental por séculos.

A redução do homem à vida nua é hoje a tal ponto um fato cumprido, que ela já está na base da identidade que o estado reconhece aos seus cidadãos. Como o deportado de Auschwitz não tinha mais nome nem nacionalidade, e já era apenas o número que em seu braço tinha sido tatuado, assim o cidadão contemporâneo, perdido na massa anônima e equiparado a um criminoso em potência, é definido apenas pelos seus dados biométricos e, em última instância, por uma sorte de fado antigo tornando ainda mais opaco e incompreensível: o seu DNA. E, todavia, se o homem é aquele que sobrevive indefinidamente ao homem, se ainda há sempre humanidade além do inumano, então uma ética deve ser possível também no extremo limiar pós-histórico, ao mesmo tempo hilário e terrificante, em que a humanidade ocidental parece estar encalhada. Como todo dispositivo, também a identificação biométrica captura, com efeito, um desejo mais ou menos inconfessado de felicidade. Nesse caso, trata-se da vontade de liberar-se do peso da pessoa, da responsabilidade, tanto moral quanto jurídica, que ela carrega consigo. A pessoa (tanto na sua veste trágica como na cômica) é também o portador da culpa, e a ética que ela implica é necessariamente ascética, pois fundada sobre uma cisão (do indivíduo em relação a sua máscaras, da pessoa ética em relação à jurídica). É contra essa cisão que a nova identidade sem pessoa faz valer a ilusão não de uma unidade, mas de uma multiplicação infinita das máscaras. No ponto em que fixa o indivíduo numa identidade puramente biológica e associal, ela lhe promete deixar assumir, na internet, todas as máscaras e todas as segundas e terceiras vidas possíveis, e nenhuma destas jamais poderá a ele pertencer de modo próprio. A isso se acrescenta o prazer, desenvolto e quase insolente, de ser reconhecido por uma máquina, sem o fardo das implicações afetivas que são inseparáveis do reconhecimento operado por um outro ser humano. Quanto mais o cidadão metropolitano perde a intimidade com os outros, quanto mais ele se torna incapaz de olhar os seus semelhantes nos olhos, tanto mais consoladora é a intimidade virtual com o dispositivo, o qual aprendeu a escrutar-lhe o mais fundo da retina; quanto mais desaparece toda identidade e toda aparência real, tanto mais gratificante é ser reconhecido pela Grande Máquina, nas suas infinitas e minuciosas variantes, desde a catraca de ingresso no metrô até o caixa rápido, da câmera que, benevolente, observa-o enquanto entra no banco ou caminha pela praça, ao dispositivo que lhe abre a porta da sua garagem, e até mesmo a futura carteira de identidade obrigatória que o reconhecerá sempre e onde quer que esteja, de modo inexorável, por aquilo que é. Eu existo se a Máquina me reconhece ou, ao menos, vê-me; eu estou vivo se a Máquina que não conhece sono ou vigília, e está eternamente desperta, garante que eu vivo; eu não sou esquecido se a Grande Memória registrou os meus dados numéricos ou digitais.

Que tal prazer e tais certezas sejam postiças ou ilusórias é evidente, e os primeiros a saber disso são por certo aqueles que experimentam isso cotidianamente. O que significa, com efeito, ser reconhecidos, se o objeto de reconhecimento não é uma pessoa, mas sim um dado numérico? E por trás do dispositivo que parece me reconhecer porventura não estão ainda outros homens, que, na realidade, não querem me reconhecer, mas apenas me controlar e me acusar? E como é possível comunicar-se não por um sorriso ou por um gesto, não com polidez ou reticência, mas por meio de uma identidade biológica?
Entretanto, segundo a lei que quer que na história não aconteçam retornos a condições perdidas, devemos nos preparar sem lamentos nem esperanças a procurar, para além tanto da identidade pessoal quanto da identidade sem pessoa, aquela nova figura do humano – ou, talvez, simplesmente do vivente –, aquele rosto além tanto da máscaras quanto da facies biométrica que não conseguimos ainda ver, mas cujo pressentimento, por vezes, faz-nos estremecer inadvertidamente tanto nos nossos turbamentos como nos nossos sonhos, tanto nas nossas inconsciências como na nossa lucidez. 

Giorgio Agamben. Identità senza persona. In.: Nudità. Roma: Nottetempo, 2008. pp. 71-82. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Domenico Fetti. Retrato de um ator. 1623. Hermitage, São Petesburgo.