Cansados
de serem deuses, periodicamente os homens se lembram de que são homens, e
começam a exaltar tal condição de homens como se ela fosse superior àquela dos
deuses.
Não
sei se já foi observado que, em todos os tempos, no instante em que os homens
se reconhecem apenas como tais e nada mais, a civilização, por sua vez,
colapsa, como se à vida do mundo fosse preciso, para que ela possa se manter à
máxima altura de seu destino, o suporte da imaginação exacerbada dos homens.
As
crises do humanismo, com um notável paralelismo, sempre correspondem às crises
da civilização. A coincidência, é preciso que se diga, é estranha. Quando o
estado da civilização já é de desespero e quando a ideia de cultura já está em
via de total regressão, os homens então põem-se
a falar de humanismo, como se o homem tivesse poder de escapar da Natureza,
como se a anarquia dominante não tivesse acontecido, antes de tudo, por causa
dessa ideia estreita e aviltante do homem que, através dos séculos, não cessou
de se camuflar sob o termo humanismo: do humanismo do Renascimento ao humanismo
materialista de hoje.
Humanismo
sempre significou que o homem reduzia a Natureza ao seu talante, que ele fazia
do padrão “homem” uma espécie de medida comum, tanto física quanto moral, à
qual, de maneira periódica, deviam se referir todas as coisas do mundo.
E
tal momento sempre é aquele em que se propaga o culto de uma faculdade
especificamente human, a razão, e no qual o duplo ponto de vista, da moral e da
psicologia humanas, entende suas crueldades em todos os sentidos.
É
desconcertante perceber que fora do homem a moral não existe e que o ponto de
vista materialista, que procura fazer da razão humana uma sorte de chefe
universal, chega apenas a um servilismo, o servilismo do homem diante da
Natureza, pois o homem se faz escravo de sua própria moral e prisioneiro dos
tabus que ele mesmo criou.
Por
sua vez, essa concepção de moral da natureza e da vida – segundo a qual o homem
sente em si mesmo sua própria vida como distinta da Natureza – corresponde a uma
ideia dualista das coisas. E sempre vimos nascer o humanismo nas épocas que
separaram o espírito da matéria e a consciência da vida.
Tal
concepção é europeia. O mundo branco, através dos séculos, sempre fez dessa
particularização uma especialidade.
Quando
na Europa aconteceram guerras religiosas, estas sempre foram feitas contra a
eterna unidade do espírito. A guerra dos albigenses foi contra os partisans da vida unitária enquanto, no
curso das guerras religiosas na Índia, foram os partisans da dualidade da vida e da preexistência da matéria que,
invariavelmente, acabaram por ser massacrados.
Através
dos tempos, o mundo hindu manifestou uma inextirpável crença na sua ideia
monista do homem, da Natureza, do espírito e da vida.
E o
budismo herético foi extinto na Índia pelos brâmanes ao longo de guerras que
duraram duzentos ou trezentos anos.
Buda,
o grande Buda, foi um traidor. É considerado como traidor na Índia, e os
brâmanes não deixam de proclamar isso.
Não
é no Renascimento do século XVI que de modo próprio retorna a infantilidade
pouco invejável dessa diminuição do homem e dessa ideia anárquica da vida.
Havia na Grécia, no século IV antes de Cristo, uma escola de filósofos céticos
que colocavam a vida à medida do homem e qualificavam como contos pueris os
mitos divinos sobre os quais a autêntica civilização da Grécia tinha se
edificado, mitos estes em que a vida subterrânea e mágica tinha feito fermentar
o drama esquiliano.
De
Ésquilo a Eurípides o mundo grego seguiu uma curva descendente. Nas escolas
contamos que o homem, graças a Eurípides, pôde ter uma ideia mais justa e
racional da Natureza. A verdade é que Eurípides destruiu a consciência da
Natureza com sua concepção mesquinha e humanizada da vida. Os ignorantes falam
da eterna cultura da Grécia e sobre o mesmo plano colocam Ésquilo, Sófocles e
Eurípides, sem ver o mundo que os separa e sem ver que os três nomes
representam as três etapas de uma curva funesta que conduziu, de século em
século, o homem a renunciar seus poderes.
O
termo “humanismo”, na realidade, nada mais significa que uma abdicação do homem. Para os mitos
divinos, o homem é o igual da Natureza que ele compreende sinteticamente; mas
quando nasce o espírito analítico, o homem imagina penetrar a Natureza e
dissecar seus segredos, exatamente como um cirurgião disseca um músculo ou
separa os órgãos do corpo; de modo que, no mesmo instante, assim como o cirurgião
cessa de estar à escuta do corpo, o homem perde seu contato com a Natureza,
pois é apenas pelo instinto que podemos penetrar a alma da Natureza. Diga-se o
que quiser contra o conhecimento instintivo, mas é ele que torna possíveis
todas as grandes invenções humanas. É a imaginação
sem limites do homem que em todos os tempos nutriu as civilizações. Cada
vez que reaparece o espírito racional, essa reaparição indica que um mundo vai
morrer. Ora, no espírito da raça branca, há uma tara que, periodicamente, a
leva a negar que a compreensão do mundo não pode se limitar e a se concentrar
num saber que talvez seja claro, mas inútil, pois se apoia apenas em objetos
mortos, os membros dispersos e inanimados da Natureza.
A
luta, hoje, está localizada entre o saber ocidental, preciso e morto, e o saber
confuso, mas que vive uma eterna existência, do monismo oriental.
p.s.:
Não devemos confundir a alta metafísica do Oriente, tal como nos foi
transmitida desde o século VIII antes de Cristo, nas versões escritas dos Vedas
(metafísica que une o espírito e a matéria em um todo indestrutível,
refletindo-se, por sua vez, por partes, no mundo do Sangsara ou domínio da ilusão universal), eu repito, é preciso não
confundir essa alta metafísica monista com as falsificações que nos são
oferecidas pelo teosofismo inglês de H. –P Blavatsky e Annie Besant. A escola
teosófica é inglesa e representa o esforço feito pelo Intelligence Service para meter seu nariz até nas doutrinas do Oriente.
Em 1936 Artaud
permanece uma semana em Havana, onde escreve vários artigos para jornais
cubanos. Este texto, o único reencontrado, foi publicado em Carteles, em 1º de novembro de 1936. A
edição, nas Obras, foi feita por
Marie Dézon e Philippe Sollers.
Antonin
Artaud. L’Éternelle Trahison des Blans. In.:
Oeuvres. Paris, Gallimard. 2004. pp. 681-683. (Tradução: Vinícius N.
Honesko)
Imagem: Artaud. La bouillabaisse de formes dans la tour de Babel. aproximadamente 1948.
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