segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Despedida de Cefalù


Atrapalhadamente, lidando com as coisas da casa, eis que cai ao chão, sob o dito salamantino "Salamantini Sigillvm.Vnive-Rsitatis Stvdii", o livro aberto de Murilo... algo mais triste para hoje não poderia surgir: Despedida de Cefalù... espero muito que não seja um adeus, mas um até logo...
"Em pedra e horizonte ficas.
É triste deixar tua força
No duro penhasco plantada,
Que o sol vertical aumenta.
Respiras nesta grandeza
Que nos vem da água, da luz
E da terra percutida,
Do peixe. Contigo vamos
Na roda cósmica, e o vento.
Não te adornas para o culto:
Cefalù solene e pobre
Em duro penhasco plantada,
Teur rito é de antiga origem:
Vem da alma rude e sem véu.
Assim te amam os pescadores,
Com esta força e gravidade
Extraídas da tua rocha
Que o sol vertical aumenta."

Paisagem interior


Sol que vem, sol que derrete a neve,
sol que iluminou civilizações, que deixou-se ver como deus,
que guiou caravelas em mares sombrios.
Sol que nasce e que se põe,
que ilumina a lua para confortar a noite dos mortais.
Por que tu não me esquentas?

sábado, 20 de novembro de 2010

Bolonha


Rossa, terracotta, vermelha de sangue.
Sob pórticos mórbidos como ventres enaltecidos,
fantasmas de tempos outros.
Na sandice de uma mente espectral.

Pulam os tempos, pulam memórias.
E Bolonha, a vermelha, vem do despertar
das vozes acessas nos recondidos cantos,
de rumores emergentes que estremecem meu coração.

Ecco, tanta luz apagada por rastros brandos,
tanta voz audível em frequências absurdas
e o solar desencanto do sangue a queimar.
Sub species aeternitatis.

Vermelho, terracotta, rosso,
baluartes de eras estranhas, de sons abafados.
Lamúrias de mulheres a chorar pelos mortos,
crianças a gritar pelas mães desaparecidas.

Fogo do céu e a bomba do novo mundo.
Figuras do tempo que em tempos de fim
dos tempos o tempo parece aplacar.
Sub species aeternitatis.

Sôfrego, caminhando e chorando
sob pórticos que dizem o não dito de uma história.
Irrompe o som, irrompe a lua,
são destronados os imperadores e malditos os papas.

O cânone está posto sob o vermelho das arcadas.
A vida sente o cheiro do desespero,
a pólvora não mais incomoda.
Canto do sábio perdido, do ignorante encontrado.

Bolonha, terracotta, terra cozida.
Tantos vermelhos pintam seu céu,
tanta luz se esconde nos seus pórticos
e vidas inteiras se dobram nos seus vicolos.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Ousia


Tenha eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais

Pois, por mais consciência que eu tenha, tudo é inconsciência

Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,

Porque é preciso existir para se criar tudo,

E existir é ser insconsciente, porque existir é ser possível haver ser,

E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.



Álvaro de Campos (Fernando Pessoa, "Poesia completa de Álvaro de Campos", Companhia das Letras, 2007. p, 255).