quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Gourmetização ou fetichismo da mercadoria?


Há uma tendência - vai uma palavra gourmet! - na filosofia européia mais recente em estabelecer "teodiceias". O elogio da fragmentação cede lugar a um estilo sabichão e pretensioso, capaz de encontrar - arqueologicamente! - os avatares de uma tradição perdida que, paradoxalmente, ainda nos vincularia. Outro procedimento usual é o de realizar "ontologias pessoais", onde a busca pela marca autoral permite um certo heideggerianismo estilizado, de tom grandiloquente e com efeitos "inaugurais" de tábula rasa (a lista de autores exemplares em ambos os polos é ampla e heterogênea).

Apresentar tendências é redutor, mas no espaço de uma postagem visa-se uma síntese para o seguinte argumento: há uma severa despolitização e desmundanização na filosofia contemporânea. Dois séculos de uma filosofia acadêmica e institucional conseguiram produzir fetichização de termos (não conceitos, estes mais operativos e estratégicos), canonização de professores e muitíssima estetização.

Pensar, no tempo dos pequenos sistemas vendáveis no mercado editorial mundial, tornou-se uma experiência obsoleta, para não dizer interditada. A gourmetização, tão propalada nas redes sociais acerca de alimentos e modos de vida, há tempos processa-se na experiência do pensamento, tal como este é caricaturizado e institucionalizado nas universidades, centros de pesquisa e na imprensa pelo mundo afora.

Gourmetizar: desde Marx sabemos que as instâncias do espaço simbólico-cultural não são autônomas à dimensão das estruturas materiais. O primado do capitalismo financeiro especulativo desdobra experiências no mundo da cultura. Em uma economiza financeirizada, sem lastro produtivo, é preciso extrair valor, especular, mesmo do vazio: os picolés se tornam paletas mexicanas (no Brasil), a água, composto químico formado por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, adquire terroir, teses acadêmicas setoriais e sem confrontos vivos a fina flor da filosofia contemporânea.

O séc. XIX e parte do XX presenciou a formação da esfera separada das mercadorias e seu valor de troca, contemporâneas da transformação radical e violenta das  cidades ocidentais a partir do vetor "mercado". O séc. XXI consolida sua fantasmagoria: a produção simbólica, a subsistência, a água, nada escapa da captura pela forma mercadoria.

(Frente à goumetização, outro nome para a especulação fantasiosa, é preciso contrapor a brutal gratuidade da vida e do agir mundanos).  


Imagem: Dan Perjovschi 

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pequeno parágrafo sobre a morte



Vagarosa e paciente, a morte aparece voando em círculos. Como abutres nos céus dos desertos, a senhora das noites insones está desde sempre ali, à espreita, nas lufadas de ar mais quente que povoam o céu da noite. E seu trabalho impecável e irretocável se dá nos pequenos rasantes que empreende noite afora. Não restam mais segredos entre nós, antiga dama. Hoje já a compreendo perfeitamente, ainda que jamais saberei nada de você; hoje vi você em outros olhos, olhos estes que já não conheço, mesmo que desde minhas primeiras lembranças tenham sido eles a cuidar de meus passos; hoje vi seu paciente trabalho neste deserto como talvez nunca outrora. Toda a parafernália que inventamos para não a reconhecer se faz inútil (como são nossas invenções) e, vagarosa e paciente, a senhora continua a traçar seus círculos cada vez mais próximos. Já sinto seus movimentos, o ar que respiro é o que provém de cada batida de suas asas, e não há mais distinção entre sono e vigília, entre espera e caminho. Estamos nos olhando: você, com seus longos olhos que me abarcam, eu, tentando evitá-la até onde posso. E não há mais tempo para nada, não há mais sono que traga sonhos em que você não habita. Tudo se consome, a vida se faz suspiro, o mundo (essa outra inútil invenção) se desfaz, e nada resta senão os suaves sons de sua ronda interminável. 

Imagem: Pieter Bruegel. O triunfo da morte (detalhe) 1562. Museu do Prado, Madri.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Glosa dionisíaca



A Furio Jesi

A consequência do distanciamento dos deuses toma a forma de uma dor fatal, de uma noite em que o passado desaparece quando se torna presente. Aí, nesse presente, não se pode mais reconhecer nenhum passado, pois este torna-se para sempre presente, desfaz-se em nada nessa sua "duração" presente. Um nada gozoso como a sensação do nada que os latinos muito bem perceberam no sexo: "post coitum animal triste". Nenhuma percepção de culpa (tão presente nas mesquinharias hipócritas de certos cristianismos institucionais), nenhum arrependimento, mas a constatação (e experiência) da perda do passado, da perda infinita do passado, o pós-coito como pós-morte. Os deuses se afastam e nos deixam a noite escura do nada. Mas talvez a tênue linha de tal perda seja o que resta na experiência da vida. "A vida só tem uma forma: o esquecimento", dizia Francis Picabia. Na forma do esquecimento, o passado se faz vivo no presente. Porém, isso jamais se dá sem dor, ou melhor, não sem morrer se renasce. E, assim, cada instante é o instante de minha morte; o presente não se faz mais pontual e inapreensível, mas torna-se uma dimensão do etéreo e, paradoxalmente, do perene - em suma, é uma experiência de morte e renascimento, é a tristeza do gozo derramado e, ao mesmo tempo, a alegria por termos nos apartado dos deuses. Nesse distanciamento do céu e ingresso na noite escura do nada, numa experiência mística do profano, talvez esteja uma possibilidade de viver para além das amarras de um passado "causa" de tristeza plena (a insistência no re-sentimento de algo para sempre perdido), e, também, sem mais sonhos divinos que "causam" eterna felicidade (a fabulação do céu perene inalcançável). A leveza de uma vida cujos sentidos não se constituem enquanto monolitos decorativos e míticos, mas estão sempre por ser construídos no constante combate com a tristeza e a alegria. 

Imagem: Giovanni Bellini. Quatro alegorias: falsidade (ou sabedoria). 1490. Galleria dell'Accademia, Venezia.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Estudo sobre a memória IX



Durma morte, minha irmã,
no coração dos apavorados
ainda sórdidos e mesquinhos.

A vida em tons arredios e ocre
pinta a porta de entrada e
se desfaz arrazoada e tola.

Entram santos e guerreiros
onde antes habitavam
a miséria, o luxo e o vento.

Desfaça, amada irmã,
o laço entre o sono e o sonho
e me convida a bailar
a última dança da noite.

E todo som e toda voz
serão silenciados em palavras,
e não restam poemas
tampouco amargor na boca.

Apenas a brisa suave do vento
que insiste em soprar
na porta de entrada que deixo,
para sempre, escancarada.


Imagem: Paul Gauguin. Eva bretã. 1889. McNay Art Museum, San Antonio.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Presença do amor



O tempo do amor é o presente
o presente que tudo contém
a aparição real de tua alma e teu corpo
o ilusório de ti
teu encantamento
também tua distância
às vezes só um nome
e uma voz que eu escuto claramente a meu lado
és um sonho, és um pássaro ou o rumor de uma fonte?
e mesmo que estejas ou não estejas
sonho e pássaro e fonte
detiveram o tempo
como na velha cena
contada em uma fábula.

Grande desventura tua ausência
que eu procuro em vão conjurar
como vês
com pobres artes de imaginação
a pequena moeda que é dada
ao homem solitário
que te faz viver em sua memória
como uma gazela perdida no bosque
e encontrada na noite do regresso:
porque foste quem eras de vez
em uma hora
de esplendor não abolido
uma hora que sempre é o presente
e é todos os momentos
como tu
sempre igual a ti mesma.

Pedro Lastra. Presencia del amor. In.: Antología del extranjero. Bogotá: Ediciones Brevedad, 2002. pp. 72-73 (trad.: Vinícius Honesko)

Imagem: Gustav Klimt. A fecundação de Dânae. 1907.  Galerie Würthle, Viena.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Carta à destinatária impossível



Para minha destinatária impossível

Querida, esboço laços solúveis entre as palavras e as coisas, mas nenhum deles dura mais que alguns segundos, uns poucos instantes entre um piscar e outro, entre a visão de Íris (a deusa das mensagens divinas) e a íris, que abre a porta de entrada da luz. A cada piscar, lembro-me de você soltando os cabelos, do mesmo modo como agora tento soltar esses laços que acabo de esboçar. A carta se faz presente pouco a pouco, tingindo a folha branca que, como a fita que prendia seus cabelos, agora se desfaz em letras soltas. Mas o presente, que é sempre a condição de uma carta, é também o futuro que se verte em palavras, na ânsia de estar aqui, desenhado, e nada mais. Drummond uma vez lhe enviou uma tartaruga de futuro, mas eu, na condição de passado, encho de areia as rugas da carapuça e finjo ser ela a ampulheta da felicidade, uma outra porta à luz que Íris insiste em mandar. Talvez minhas palavras hoje lhe soem confusas, querida, mas fundido em desesperança estão meus sonhos, todos eles já sonhados outrora, no mundo que jaz no laço que, mal esboçado, solta-se no chão do quarto por onde zanza a tartaruga e onde porventura vivemos noites confusas: meus pés com os seus, minhas mãos com as suas, seus cabelos com os meus. Mas por que lhe digo isso se você é apenas o impossível? Por que escrevo mais uma carta que só diz impossibilidades? Talvez porque certas palavras são demasiado duras para não serem escritas, para permanecerem guardadas nas coisas. Porém as coisas não querem palavras para dizê-las e, assim, riem do meu laço que se esvoaça na distância que esta carta tenta preencher. Para que insistir, me pergunto. Para que tecer sentidos se dos cinco que temos nenhum é capaz de dizer palavra? Por que as imagens de Vermeer continuam a me sondar como se as cartas que leem suas mulheres fossem estas que lhe escrevo? E por que não pensar que, de fato, você poderia ser uma dessas impossíveis mulheres do pintor? A confusão das noites agora é toda minha, querida. Já não há seus pés, suas mãos e seus cabelos, mas apenas esse laço solúvel que se desfaz a cada letra que rabisco.

Do seu remetente impossível.

Imagem: Johannes Vermeer. Mulher com sua empregada segurando uma carta. 1667. Frick Collection, New York.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Amor I



Eu, que nunca soube o que é o amor,
sempre disse: eu te amo.
Mas tampouco sabia o que era eu.
Agora, talvez, só me resta uma dúvida:
eu te amo?


Imagem: Tiziano Vecellio. Amor sagrado e amor profano (detalhe). 1514. Galleria Borghese, Roma.



domingo, 30 de novembro de 2014

Caproniana



A palavra só diz
quando se diz:
ninguém disse palavra.


Imagem: Vincent van Gogh. O semeador. 1888. Rijksmuseum Vincent van Gogh, Amsterdam

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

À destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.

Querida, por trás de cada desenho esconde-se a mão, o sopro de seus ágeis movimentos e o segredo arredio dos olhos que acompanham as linhas no papel. E o mundo se torna um erro nesses traços. Erro que não erro, mas que me leva adiante, querida, a um mar sem céu e sem ondas onde um dia erramos o lugar de nosso impossível encontro. Há um movimento também nas minhas mãos, mas meus olhos se escondem do que por elas, tão arredias, é gravado. O que era uma bússola a guiar meus sonhos, hoje é apenas uma esfera vazia, tal qual meus olhos perdidos em devaneios nesse mar sem ondas. Talvez aqui espere pela próxima lufada de vento, talvez aqui em mim sejam despertas - por não sei qual deus das águas - novas palavras com as quais desenhar um novo mundo, no qual não mais volte a perceber sua impossibilidade. Mas tudo isso são conjecturas, querida, como a vida que há pouco dava adeus ao poeta que cantava passarinhos. Não digo que este dia da despedida já chegou, ainda que o deus desconhecido das águas desde há tempos me fala que esse dia já passou (e desconfio pois o deus e o dia são a mesma coisa, são a luz que sobra em meio às sombras do uni-verso). Como dizer a você que já não há tempo para tudo, que não há tempo para cada coisa? Como dizer que o Eclesiastes estava completamente equivocado? Esta carta, escrita tal como as milhares de cartas dos marujos dos séculos, só diz que o mar ainda é grande, querida, e que talvez eu não consiga me livrar da falta de ventos e, sem eles, jamais encontre em você qualquer possibilidade. E cada desenho se faz mais incompreensível, e nenhum sopro de mãos parece dar conta das linhas, e todos os olhos carregam olhares vazios. Por que insisto em lhe dizer? Por que uma carta nova me surge a cada vez que mergulho a mão neste mar sem ondas? Não penso respostas e, tão logo tomo em mãos o papel que logo será seu, volto a errar o velho mundo, um velho mundo, o meu velho mundo, o único em que ainda posso traçar, em erro, um destino que jamais poderá cruzar com o seu...

Do seu remetente impossível.


Imagem: Johannes Vermeer. O astrônomo (detalhe). 1668. Museu do Louvre, Paris.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Estudo sobre a memória IX


A Manoel de Barros

É tempo de experimentar o tempo,
e as musas, as ditadoras do país da poesia,
sondam e espreitam o momento oportuno
para o próximo golpe.
Com as musas, um poeta tentou trocar olhares,
mas elas eram todas cegas.

Ah, gente tão pura recolhida na luz e nutrida de silêncio!
Amarrei, também eu, meus sonhos no poste da vida:
por que já pretendes ir, Manoel?
O tempo não é todo ele de sonhos?
Ainda é preciso muita inutilidade,
muita sombra no império da lucidez.

E minha musa cega perde também a palavra.
Silenciosa e muda, agora me dita em outra língua:
a dos mapas perdidos, a das cartas extraviadas,
a de um mundo que se foi.
O tempo se soltou do poste e correu
para um jardim onde, cegas e mudas,

passeiam nuas as inúteis musas de outrora.


Imagem: Johannes Vermeer. Mulher dormindo à mesa. 1657. Metropolitam Museum of Art, New York.



sábado, 8 de novembro de 2014

Estudo sobre a memória VIII



Louros de uma vitória injusta,
prados já há tempos queimados,
palavras em silêncio
agora que te ausentas.

Já não és uma presença
e qualquer sinal de Deus
se desvanece na injustiça
desses silêncios semoventes.

Apagados os traços das cinzas,
todas as almas se regozijam
com o uni-verso dos poemas
impressos nas tuas pegadas.

O cantar se faz sopro do tempo,
amálgama de sonhos e fogo,
promessas de um retorno impossível
e Ítaca que aparece no horizonte.

Não mais te percebo nem em devaneio,
apenas me dás uma imagem de outrora:
já veneno, abatida por estas armas
que são as palavras silenciosas

de todo poema...

Imagem: Johannes Vermeer. Mulher segurando balança. 1662-3. National Gallery of Art, Washington.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Estudo sobre a memória VII



Do lugar de onde provêm essas vozes, nada se sabe.
É um ermo, um vazio que, talvez, mais do que povoado de vozes,
seja ele mesmo as vozes que nos ludibriam e,
assim, fazem-nos inventar esse lugar.
Sobre o que falam tais vozes?
O que nos contam ao pé do ouvido?
A mim, soam como trombetas de arcanjos perdidos,
dizem-me "eu te amo" como se amor houvesse.
Elas, as vozes, aparecem aladas e em cada bater de suas asas
uma brisa me enche de torpor.

Ah, vozes antigas! Com a velocidade de suas asas,
caio para trás e me sento à espera de seu próximo rasante.
Mas por que me sondam se já não me dizem nada?
Por que voar no meu céu, onde só há o vazio?
E, por que, me pergunto, ainda as espero?

Imagem: Johannes Vermeer. O Concerto (detalhe). 1665-6. Isabella Stewart Gardner Museum, Boston.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Pequeno parágrafo sobre a saudade


Se todas as cores do mundo pudessem ser vistas de uma só vez, não haveria lugar melhor para isso do que um olhar perdido em devaneios. A luz perdida nos olhos me faz perceber uma obtusa lógica da saudade. Mas, de pronto, percebo que nada é mais tolo do que sacar uma razão aí onde a desrazão encontra seu lugar absoluto. Todas as cores e nenhuma delas, todos os sonhos e uma tela em branco, todas as palavras à disposição e nenhum verso escrito. Os sonhos de um poeta marginal jamais se deixarão pintar e, em tais sonhos, apenas uma saudade doce devora o poeta. Ele só quer perceber as luzes da perdição, as luzes desse vazio (e não seria isso devanear?) que o preenche. Busca inspiração na saudade, mas logo percebe que o rosto que desenharia já lhe é de todo desconhecido. Pensa em escrever uma carta, e se dá conta de que jamais conseguiria endereçar algo a alguém. Resta-lhe aquela obtusa lógica e, com ela, seus passeios por esse vazio ao qual se dá o nome saudade...

Imagem: Johannes Vermeer. Mulher escrevendo um carta com sua empregada. 1670. National Gallery of Ireland, Dublin.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Estudo sobre a memória VI



Estranho tempo em que o tempo de seus sorrisos já não contam. Talvez numa tarde, tal como esta que se avoluma, haja tempos e sorrisos outros. Tempos já sorridos e sorrisos já transcorridos na alvura de uma folha em branco. Não conseguiria repetir as cartas que um dia lhe enviei (e penso na fixação de Vermeer por pintar mulheres lendo cartas: talvez sejam os retratos das cartas que ele nunca conseguiu escrever...). Aliás, nenhuma palavra seria capaz de dizer sorrisos e tempos. Tudo se esvai na lentidão deste suposto poema em prosa, desta inimaginável vontade de tocar com os dedos este nada de lembranças que povoa a tarde já avolumada. Conto o tempo e estranho; conto contos com letras em folhas e também estranho; não é estranho dizer que tento um poema em prosa a alguém tão presente nesta ausência quase absoluta que são as lembranças? Talvez, dos tantos poemas já feitos, e a tantos alguéns dedicados, não restem senão traços. Ou melhor: talvez não restem senão as montanhas de desterro e pó onde habita aquilo que se nomeia memória.


Imagem: Johannes Vermeer. Garota lendo uma carta com a janela aberta (detalhe). 1657. Gemäldegalerie, Dresden.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Ode à toupeira



Passa-se o ponto. Passa-se tudo, o que resta os vermes comem. Passa-se do ponto. Passa-se.

São Paulo, alerta de evacuação: os ônibus continuam lotados, milhares de carros trafegam, assim como os banhos regados a volume morto alkimista, o relógio ponto do trabalho sem sentido, as missas, jantares em família, giram giram os batentes da porta do banco.

E o tempo, com o trabalho implacável, a tudo desgastando, até as pedras.  

Mas pequenas doses de cinismo diário - mais corrosivo que absinto falsificado - pingam em meu cérebro cansado.  

Sim, José Sarney continua vivo e muito provavelmente terá uma morte natural.

E-terno


Cifras
Palavras cifradas
Mensagens cifradas
Cifrões
Se fodam os bordões
Se foram os ladrões
Fiquei somente eu
Cena de crime
Não se anime
Eu sou suspeito
De abrir o peito a procura
E a doçura me amargar a boca
Me lavar a boca
Me levar a louca
Me lavar a louça
Me laçar aos poucos
Me lançar aos porcos
Pérola que sou
Pérola que estourou
Dentro da ostra
Ostra sou
Ostra soul
Ostra-cismo que me abro sempre
E sempre não é todo dia
E sempre é mais que toda vez
É eterno
E eu de terno, blefando cifras, violando e cantando em qualquer lugar...


Piter Zander, poeta e pescador dos Campos Gerais 

Imagem: Francis Bacon (1909-1992)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Palavra


Toda palavra são todos os ditos
Alguém me disse ter falado
mas já não sei a palavra falar
Alguém me disse ter dito
mas também não sei a palavra dizer

Resta-me agora a Palavra
que tampouco saberia dizer.

Imagem: Ulisse Aldrovandi. Espécies da natureza. Biblioteca Universitária de Bolonha.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

À destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.

O mundo é uma redoma de vidro impregnada com as impressões digitais de algum deus desaparecido, querida. Foi isso que há pouco vislumbrei num sonho (sonhado tal qual talvez sonhava com seus sonhos ao meu lado). Tomei essa imagem de empréstimo tão logo acordei e comecei a sentir certa brisa que vinha do lugar impossível onde você está. A cada carta sua que não recebo, sinto que você deseja a poesia. Mas a vida prosaica lhe é mais forte; aliás, a vida prosaica é seu norte nessa bússola que nos guia pelos mares da redoma. Eu, com minhas velas abertas para ventos que não sei bem de onde vem e para onde me levam; você, com seus remos afundados e seu sorriso irônico, à espera da minha próxima carta que, talvez, possa ser um mapa para esse lugar nenhum onde seu deus descansa depois da criação. Querida, hoje Rimbaud faria 160 anos, não fosse a África, não fosse a vida. Mas seu "eu é um outro" ainda risca aqui e acolá meus mapas endereçados a você. Precisaria de quantas letras para dizer que a poesia não se acha numa vida prosaica, num recôndito lugar ao abrigo da ausência divina? Mas não, não escreverei nenhuma delas, porque não há lugar mais impertinente do que o ocupado por um remetente, e de nada valem as letras que tentam apagar as impressões digitais do desaparecido. Você insiste na impossibilidade e cola cartazes de "procura-se deus" na popa de meu barco. Como, querida, sabia que aquele barco de velas içadas era o meu? "Eu é um outro", não? Ah, como gostaria não me enganar com versos, com estes versos tão diversos como aqueles que um dia lhe escrevi sonhando a vida poética. Mas a mim não há escapatórias, querida. A prosa da vida com a qual porventura você sonhe não aparece na minha bússola (e permaneço perdido: sem versos e sem prosa). E pressinto que, talvez, os únicos mapas possíveis, e que auxiliam a percorrer a redoma impossível com as marcas divinas, são estas pequenas cartas que a você, minha impossível destinatária, insisto em desenhar.      

Do seu remetente impossível.

p.s.: Junto desta envio também um outro mundo impossível, imaginado por Beato de Liébana enquanto lia os traços do deus impossível nas letras dos contos bíblicos...


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Pequeno parágrafo sobre primeiras lembranças

 
 
 
Para Fernando Honesko
"É a ebriedade da melancolia; como aproximar o rosto de uma rosa enferma, indecisa entre o perfume e a morte." Foi pensando em tal verso que enquanto me preparava para dormir já sentia as primeiras levas de sonhos. Tentava encontrar minha primeira lembrança: qual havia sido minha experiência de tenra infância de que me lembrava? A primeiríssima, aquela em relação à qual só o líquido amniótico seria anterior em ebriedade? Como a rosa enferma do poema, titubeante, não conseguia definir a minha origem consciente. Mas, talvez, esse seja mais um dos casos em que a exatidão consista na própria ambiguidade. Primeira lembrança porque, justamente, indefinida como primeira; primeira porque é uma cria dos delírios da invenção do exato "assim foi...". No entanto, o som de um coração que escutava bater no ventre de minha mãe, quando eu não tinha mais do que três anos, parecia pulsar com mais força agora que me dava conta de que, talvez, fosse aquele som a primeira coisa a se marcar em minha memória. Neste instante em que escrevo, e minha memória parece indecisa entre o perfume de um eterno presente e a morte das imagens passadas, deixei com que ela, a memória inebriada por essa doce melancolia, me guiasse até o ponto em que não sabia mais, até o lugar onde minha existência consciente parece "iniciar-se". E foi como se estivesse novamente encostando o ouvido no ventre ocupado de minha mãe, como se estivesse escutando as histórias de minha mãe sobre o bebê que ali vivia; foi como se ainda estivesse conversando - balbuciando - com aquele bebê que não podia me responder senão com leves movimentos e com um coração em ritmo frenético; como se ainda estivesse pensando tal qual a criança de pouco mais de dois anos, sem as marcas dos tempo transcorrido e com a leveza dos espaços em branco que começavam a ser preenchidos pela tinta da vida. O quanto de "assim foi" ou de "verdade", que ocupa essa minha lembrança, não passa de tentativas vãs de equacionar e tornar exata a ambiguidade da vida, cujo obscuro início de todo nos foge. Importa-me agora, escrevendo pouco antes de sonhar, a leveza ébria da recordação que, não menos que o presente, ainda me move nas indecisões desta exatidão ambígua que é a vida.
Imagem: Rafaello de Sanzio. Retrato de uma mulher grávida. 1505-1506, Galleria Palatina, Firenze.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Pequeno parágrafo sobre as cartas IV


Ao terminar, quase com uma formule de politesse, a carta que escreve a Roberto Assumpção, de Roma, em 05/03/1960, o poeta Murilo Mendes assim se despede do amigo diplomata: "Desculpe-me a extensão desta. Estou habituado a escrever poemas curtos, mas em matéria de carta, sou às vezes torrencial, o que de resto me chateia, porque receio chatear os amigos." Dezessete anos antes, tuberculoso e internado num sanatório em Correias, distrito de Petrópolis, Murilo remetia sua primeira carta ao amigo, e, na linha de abertura desta, pedia desculpas por escrever a lápis, pois a caneta tinteiro havia quebrado. O poeta pede desculpas: por como as letras chegam, pela chateação que, talvez, uma longa carta pode causar, por não controlar a torrente de palavras que por vezes aparece na redação de uma carta - logo, de um mapa - a outrem. Há, nessas palavras de Murilo, uma possível chateação pelo fluxo das palavras, pela onda que constrói uma carta descontrolada e tomada pela ânsia comunicativa. Porém, nessa ânsia é que algo da linguagem comunicativa se perde em traços embaraçosos para o remetente. Mas de que se trata em tal embaraço? Por que essas "desculpas" por "atrapalhar a comunicação" - pelo excesso de palavras ou pelas palavras borradas e ilegíveis, aliás, tão comuns em cartas -, que seria o componente preciso de uma carta? Por que, quando escrevemos a outrem, parece que somos assolados por uma culpa qualquer que, como numa irrupção vulcânica, nos coloca uma quase "obrigação" das desculpas (mesmo que estas, por vezes, venham veladas)? Não seria essa culpa apenas o fato de falarmos, à distância, a alguém que, como nós, também nos fala desde seu silêncio ou de sua resposta? O poeta, que brinca com as palavras em seus poemas, vê-se, diante desse brinquedo inventado, culpado por não poder refrear sua ânsia de dizer, seu desejo, por vezes inconsciente, de fazer da palavra outra coisa que não mero instrumento de dizer; as desculpas são, de algum modo, pelo simples fato de falar. "A linguagem é a pena. Nela todas as coisas devem entrar e nela devem perecer segundo a medida de sua culpa", diz a poeta Ingeborg Bachamann. Numa carta, portanto, entramos numa relação silenciosa em que a distância nos lança todas as sombras dessa culpa, a culpa por excelência dos animais que falam. Desse espaço não encontramos nenhuma redenção e, como que fadigados por tanto dizer, insistimos nessas desculpas para preencher com a tinta do tempo o espaço que nos separa da pessoa que nos lerá...

Imagem: Gabriel Metsu. Mulher lendo uma carta. 1662-65. National Gallery of Ireland, Dublin.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Pequeno parágrafo sobre as cartas III




"Qualquer que seja o Deus a ter entre suas incumbências velar pela correspondência dos terrestres, parece que os fios da nossa escaparam das suas mãos e caíram no poder de algum demônio do silêncio.
Naturalmente, admito que o poderio desse diabo não me é de todo estranho, à medida que o meu próprio mundo interior lhe serve de cenário." Essas palavras de Walter Benjamin, dirigidas ao amigo Gershom Scholem numa carta de 29 de março de 1936, ressoam pelo tempo e, ainda que destinadas ao amigo, hoje se abrem a este leitor qualquer que agora as cita. Mas essa intimidade - e toda intimidade é, tal como Agostinho em suas interpelações a deus, interior intimo meo, o mais profundo de mim que é atravessado por esse fora, pelo completamente outro - da amizade encontra, em cada carta que escrevemos, seu ponto de máxima combustão. Assim, quando em nosso cenário interior demônios-atores - e, para os gregos, o demoníaco (daimonion) estava sempre em relação com a felicidade (eudaimonia); ou seja, feliz é quem está na companhia de um "bom demônio" - atuam numa peça que a nós é sempre desconhecida, começamos a escrever um mapa, uma carta, a alguém que jamais o compreenderá de todo. Qualquer carta, portanto, não é senão um fragmento para dominar esses demônios silenciosos, uma tentativa de atribuir papeis a esses seres que nos fazem lançar palavras a outrem, e, desse modo, com as folhas preenchidas e com o mundo interior esvaziado, permanecemos, com a caneta em mãos, no recôndito de nosso silêncio.

Imagem: Lucas Cranach "o velho". A era de ouro (detalhe). aprox. 1530.  Alte Pinakothek, Munique.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Pequeno parágrafo sobre as cartas II


Da decisão sobre escrever uma carta não há voltas e, assim, o mundo, este palimpsesto amarelado de mapas do destino sem volta das palavras, é despejado em minhas mãos. Talvez, mesmo este parágrafo obtuso não seja mais do que uma carta endereçada a alguém que nunca o lerá. Todas as palavras são um desperdício quando escritas, mas, ao mesmo tempo, são também a única possibilidade de vida que nos resta, o meio angustiante de tentar cartografar os passos pela existência. As gotas de tinta que outrora manchavam minhas mãos a cada folha preenchida, agora penetram minha carne, invadem meu sangue e deglutem minhas esperanças e suspiros de ler as respostas que nunca tive e tampouco terei. Com a carta à metade, sinto o mundo se esvaindo a cada nova palavra, como quando leio alguns poemas hipnóticos que me perturbam o dia. E a tinta continua a invadir-me com fúria, e agora rompe minhas entranhas e me coloca em êxtase diante do impossível: dizer a quem quer que seja, ou que não seja, meu desejo de dizer. Nenhuma carta jamais o dirá e, talvez por isso, todas até agora escritas já o disseram... 

Imagem: Albrecht Dürer. Erasmo de Roterdã. 1526. National Gallery of Art, Washington. 

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Porra nenhuma


Não acredito em porra nenhuma!
Nem na porra que fecunda,
nem na porra imunda que escorre
pelas coxas de uma amada qualquer.

Nem na porra do saco de Urano,
saco este do céu lançado por seu filho,
Saturno, ao mar, logo após a castração.
Nessa porra com sangue e espuma que,
numa concha, gera o amor, Venus,
a bela deusa que não é mais do que
porra, sangue e espuma.

Não acredito em porra nenhuma,
porque fiar-se é aceitar a chantagem
de Ariadne e, tal como Teseu,
ser obrigado a voltar, ainda que
desejoso por tudo abandonar.

Imagem: Giorgio Vasari e Cristofano Gherardi. Castração de Urano. 1560. Afresco do Palazzo Vecchio, Florença.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Pequeno delírio em parágrafo XX


No dia, em todo dia, há um momento em que a luz se faz lúgubre som de revolta. Todas as cores e odores, os sonhos tolos de outrora, a manhã que prenuncia as vontades de uma liberdade perdida, tudo se faz som obtuso de revolta. Escuto os passos daqueles que já se foram e que não olharam para trás. Mas isso não é senão o eco da voz divina no latido de um cachorro, este mesmo que por mim acaba de passar correndo. Os homens cruzam-se pelas ruas e pensam ser monolitos duros no turbilhão da vida. Não percebem sua desgraça? Não conseguem ver que nenhum sentido é possível no latido daquele cão? Anjos com asas estilhaçadas agora escutam meus pensamentos: "Achas mesmo que qualquer luz lhe é permitida?", me perguntam. Evito esboçar respostas em sua língua, pois, de qualquer forma, não me escutariam. Continuo a passos lentos, aturdido pelo latido, mas já sem nenhum medo. E agora escuto outra voz, a de um poeta centenário, que, com ironia nos lábios, desdenhava das vozes angelicais: 

"así pasa la gloria del mundo
sin pena
             sin gloria
                          sin mundo
sin un miserable sandwich de mortadela."


Imagem: Lucas "the Elder" Cranach. Judite segura a cabeça de Holofernes. 1526-1530. Staatliche Museen, Kassel.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Pequena nota sobre os "coxinhas"



Uma dimensão da utopia, das mais utópicas, é a que Barthes lê em Sade: "A utopia sádica mede-se muito menos pelas declarações teóricas do que pela organização da vida cotidiana, pois a marca da utopia é o cotidiano; ou, ainda, tudo o que é cotidiano é utópico: horários, momentos de refeições, escolha de vestimentas, instalações imobiliárias, modos de conversar ou de comunicação...". No fluxo das horas, no irremediável e patético comportamento do homem médio, não há mais do que a singela e pura utopia. No não-lugar que é sua vida, na abstração em nome do programa da felicidade (sempre prescrito por preceitos, por demandas, por esperanças), instala-se o horizonte utópico chamado cotidiano: a forma pernóstica de desdenhar a urgência do pensamento e da luta diária contra as formas de destruição e cooptação da intensidade da vida. E nada mais cretino do que a maneira de portar-se do "coxinha"**, esse homem do cotidiano, incapaz de pensar e que dessa sua incapacidade vangloria-se (se vivo, certamente Pasolini daria ao "coxinha" os atributos que dera ao homem médio: um monstro, fascista, racista, sexista etc.). O "coxinha" nem ao menos se dá conta de seu sadismo (e, em certa medida, o "coxinha" também faz o papel de masoquista ao gozar com o fato de perceber que a lei - esta, personificada nessa fantasmática figura que é o cotidiano - goza ao humilhá-lo). Aliás, sequer percebe a utopia, em seu pior sentido, que é a organização de sua vida: uma vida da lei, da ordem, da estruturação sagrada da família - em suas dementes formas cripto-cristãs, católicas ou protestantes -, da estabilidade, do necessário, da completa e invariável falta de imaginação. Uma vida utópica e forjada nas certezas de que há uma felicidade plena a ser alcançada e que a alcançará tão logo cumpra todos os requisitos de passagem; ou seja, como sádico que é, deve organizar todos os procedimentos para, ao final, gozar até não poder mais (e a imagem do véu e grinalda e dos carrões ocupando suas garagens no presídio chamado condomínio de luxo são os amuletos de seu imaginário pobre e construído doutrinariamente pela TV, pelos espúrios jornalões e semanários e pelas subcelebridades das redes sociais). Com ardor do crente, o "coxinha" briga pelo cotidiano, afinal, é a única utopia (da qual, diga-se, não se dá conta) que lhe resta.       

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Maria vai com as outras



Maria, vai com as outras
e leva também sua saliva
babada em minha boca.

Maria, corte o tempo do adeus;
com as outras com quem veio
vai agora correr ao seu deus.

Maria, quem diria, Maria,
que na música que escutava
iria ouvir minha voz sussurrar:

é tempo de Maria ir com as outras.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Carta à destinatária impossível



Para minha destinatária impossível.

Querida, acordo em meio à madrugada com o som da chuva. Lembro-me de que Borges certa vez disse ser a chuva algo que sempre acontece no passado, e que quem a ouve cair retoma o tempo em que a sorte venturosa revelou uma flor chamada rosa. Não sei se esse tempo que nesta madrugada me acorda trouxe a sorte ou apenas a sua imagem num passado distante, no qual chuvas torrenciais fizeram com que me esquecesse de meus sonhos. Um lamento? Não, querida, aqueles sonhos, como tudo passível de ser sonhado, eram apenas parte de um dos mundos desde sempre ancorados no passado, tal como esta chuva que hoje - ou ontem ou não sei quando - me acorda. E com esses sons do passado, sussurra-me ao ouvido o poeta que amava o perdido sabendo que "... as coisas findas / muito mais que as lindas / essas ficarão". Pode parecer um jeito estranho de acordar, querida, mas há algo mais estranho do que recobrar a consciência depois de uma noite de sono? Não seria o acordar a maneira cotidiana de iludir a finitude, de imaginar que o os sonhos não compõem senão desejos perdidos, imagens despedaçadas da esperança? O fim das coisas é o início de sua permanência e, como esquecidas, elas batem à minha janela junto com esta chuva impertinente, querida. E por que volto a lhe escrever, como que em meio ao sem sentido dos sonhos há pouco interrompidos? Esta carta, querida, mapeia apenas os rastros das gotas da chuva na janela e por certo não lhe diz nada de novo, nem revela nenhuma flor chamada rosa. Pode ser que você a rasgue tão logo a leia - e, penso, faz bem. Mas, porquanto findo, talvez este mapa um dia desenhe em algum sonho seu os rastros desta chuva, deste passado, que insiste em cair...

Do seu remetente impossível. 

p.s.: na minha mania de pós escritos, digo que, junto à carta, encaminho mais um dos estudos sobre monstros do Bosch - no passado creio ter lhe enviado alguns, não? (E, penso, não seriam estas minhas cartas também uma espécie monstruosa de estudo?)


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Onde alguém reconhece a própria força



Em suas derrotas. Onde fracassamos devido à nossa fraqueza, aí nos desdenhamos e nos envergonhamos dela. Mas onde somos fortes, aí desdenhamos nossas derrotas, aí nos envergonhamos de nossa má sorte. Reconhecemos nossa força através da vitória e da sorte?! Quem, pois, não sabe que nada nos revela tanto como elas mesmas nossas ais profundas fraquezas? Quem, depois de um triunfo no combate ou no amor, já não sentiu passar sobre si a pergunta, como um calafrio voluptuoso da fraqueza: Acontece comigo? A mim, o mais fraco? - Acontece de modo distinto com as sequências de derrotas, nas quais aprendemos todas as manhãs do soerguer-se e nos banhamos em vergonha como em sangue de dragão. Seja a glória, o álcool, o dinheiro, o amor - onde alguém tem sua força, não conhece nenhuma honra, nenhum medo do ridículo e nenhuma postura. Nenhum judeu usurário pode se conduzir com seu cliente de modo mais impertinente do que Casanova com a Charpillon. Tais homens moram dentro de sua força. Um morar especial e terrível, sem dúvida; esse é o preço de toda força. Existência num tanque. Se moramos nele, somos tolos e inacessíveis, caímos em todos os fossos, derrubamos todos os obstáculos, revolvemos sujeita e profanamos a Terra. Mas só onde estamos assim imundos, aí somos invencíveis. 

Walter Benjamin. Imagens do Pensamento. In.: Rua de Mão Única. Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 2000. Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. pp. 210-211.

Imagem: Saul Steinberg.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Estudo sobre a memória V


Provo do gosto inesquecível do lótus e, nesta ilha mediterrânea, passo a esquecer da minha viagem pelos mares impossíveis, e da ilha não desejo sair. O aconchego do esquecimento, o gosto doce dos frutos, colocam-me uma pergunta: memória de que? E um argentino, tal qual um Tirésias do sul, discorre ao meu ouvido: "o tempo é o rio que me carrega, mas eu sou o rio; é o tigre que me rasga, mas eu sou o tigre; é o fogo que me consome, mas eu sou o fogo." Descubro-me um lotófago e passo a consumir a mim mesmo com o veneno doce do passado - este, o passado, que agora passa ao largo, dançando ao canto das sereias, enquanto, absorto, devoro do lótus que, belo antídoto, aplaca o veneno. Sentado à beira-mar, observo as ondas que me trazem sonhos impossíveis de sonhar, posto que jamais lembrados; observo também as gaivotas que planam com as correntes de vento, e acabo me dando conta de que também elas me trazem sonhos, estes, já sonhados. Ulisses, que a todo instante lutava contra o esquecimento, também à beira-mar, certa vez chorou diante desse grande deserto; sem me dar conta, deixo-me rasgar ainda mais pelo tigre e, não deixando cair nenhuma lágrima, volto a lembrar da viagem do herói: penso que, ao final de sua jornada, Ulisses não se deixaria mais levar pela comoção diante da infinitude do mar, mas, como o fez, a este grande deserto de sal retornaria com o desejo de passar a vida esquecendo de Ítaca para, a cada retorno, lembrar-se de que dela deve sempre continuar a esquecer... 

Imagem: Parmigianino. Circe e os companheiros de Ulisses. 1527. Galleria degli Ufizzi, Firenze.

domingo, 17 de agosto de 2014

Estudo sobre a memória IV



Schubert, nos impromptus, talvez nos tenha dado as mostras do tempo oportuno, do tempo leve, do kairós. As vozes do piano, carregadas na improvisação, dançam ao relento e à neblina da manhã de domingo. A casa está cheia de lembranças que vagam entre alegres gritos que dizem: "não te lastimes", tal como Cortazar um dia percebeu em seu apartamento parisiense. As lembranças se misturam com as vozes do piano e por que a sombras de Ariadne insistem em lançar seus fios, como se do labirinto de memórias e esquecimentos, de passados e presentes, fosse possível sair. Aliás, dizia um poeta italiano, por que achar o fio do labirinto se o importante é viver dentro dele? As improvisações ao piano, os gritos alegres que ocupam o apartamento, a vista que se obscurece e se desfoca no instante em que a vida é toda prenhe de instantes outros, e a voz de Dionísio que canta: "Sê prudente, Ariadne!... / Tens pequenas orelhas, tens minhas orelhas: / Põe aí uma palavra sensata! / Não é preciso primeiro odiarmo-nos se devemos nos amar?... / Sou teu labirinto...". As vozes, talvez todas elas (a do piano, a dos gritos, a das lembranças), não são mais do que um apelo dionisíaco: descarregue, como um animal leve, a vida, porque "é possível viver quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver." O impossível, assim, toca todos os instantes que habitam este instante, e viver, simplesmente, permanece - insondável - uma tarefa no labirinto... 

Imagem: Hugues Taraval. Baco e Ariadne. Metropolitan Museum of art, NY

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Sou, sim



Sou, sim, esta fragilidade toda
inútil e zombeteira, fruto da
fadiga de uma mente torta.
Não me canso do fracasso,
é nele que sempre venço:
venço a sorte dos fortes e

encouraçados, dos tolos
perdidos nas carapuças
insensíveis da vida banal.
Sou, sim, fruto do corte frio
da última lâmina que a mim
sorria nos seus doces lábios.

Tomado de ira neste ditado,
calado e suspenso no estado
de morte onde encontro, só,
páginas com todos os poemas
que ainda não escrevi, mas que,
de improviso, um dia lhe sorri.

Sou, sim, um frágil esboço,
um desenho inacabado e torpe,
alheio às formas mais nobres.
Desesperançoso e sem futuro,
não clamo a sorte dos duros,
neste mundo sem paixões;

crio um outro passado já denso,
apagado e reescrito a cada vez
que a fraqueza sobre mim se abate.
Sou, sim, fraco e reticente,
mas na fraqueza é que sou forte:
não disse isso o louco de Tarso,

apagado em seus traços e sem
voz que lhe brotasse do peito?
Durmo e levanto menos sóbrio,
esquecido por todas as multidões,
com poemas engavetados e sujos,
apenas frágil, isto que não nego:

sou, sim.  
 

Imagem: Caravaggio. Amor vitorioso. 1602-3. Staatliche Museen, Berlin.


domingo, 10 de agosto de 2014

A Obra morre




Iñaki Echavarne, bar Giardinetto, rua Granada del Penedés, Barcelona, julho de 1994. Por algum tempo, a Crítica acompanha a Obra, depois a Crítica se desvanece e são os leitores que a acompanham. A viagem pode ser comprida ou curta. Depois os leitores morrem um a um, e a Obra segue sozinha, muito embora outra Crítica e outros Leitores pouco a pouco se ajustem à sua singradura. Depois a Crítica morre outra vez, os Leitores morrem outra vez, e sobre esse rastro de ossos a Obra segue sua viagem rumo à solidão. Aproximar-se dela, navegar em sua esteira é um sinal inequívoco de morte segura, mas outra Crítica e outros Leitores dela se aproximam, incansáveis e implacáveis, e o tempo e a velocidade os devoram. Finalmente a Obra viaja irremediavelmente sozinha na Imensidão. E um dia a Obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirá o Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia, e a mais recôndita memória dos homens. Tudo que começa como comédia acaba como tragédia.

Roberto Bolaño. Os detetives selvagens. São Paulo: Cia das Letras, 2006. Trad.: Eduardo Brandão. p. 497.

sábado, 9 de agosto de 2014

Poema inútil

 A M.M e C.D.A

Poema algum serve
para coisa nenhuma
É um desserviço
imaginar no poema
o útil da vida servil.

Imagem: Flávio de Carvalho. Murilo Mendes.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Carta à destinatária impossível



Para minha destinatária impossível

Querida, acordei com uma frase estranha que me parecia soprada desde o último sonho da noite: "há um silêncio intransigente que faz dançar as palavras nas bocas dos poetas" (e coloco a frase entre aspas pois o limiar entre sonho e vigília é o no man's land em que as palavras vagam independentes de quem possivelmente as fala). Tão logo levantei, pensando nesse silêncio , acabei lendo um poema da Ingborg Bachman que deixo aqui para você:

Vós, palavras, de pé, sigam-me!
e se já fomos longe,
longe demais, ainda se vai
mais longe, para fim nenhum.

Não clareia.

A palavra 
só irá
arrastar consigo outras palavras,
a frase frases.
O mundo bem queria
definitivamente
impor-se,
estar já dito.
Não o digam.

Palavras, sigam-me!
Para que nada seja definitivo
- nem esta ânsia de palavras
nem o dito e o contradito!

Por um momento não deixem
falar nem um sentimento,
que seja outro o exercício
do músculo coração.

Não deixem, digo-vos, não deixem!

E ao mais alto ouvido
nada, digo-vos, pode ser sussurrado,
que nada te ocorra sobre a morte,
deixa, e segue-me e sem clemências
nem amarguras
sem compaixão
não sinalizando
e não desprovida de sinais -

Uma coisa é que não: a imagem
na teia do pó, cascalho oco
de sílabas, palavras de morte.

Nem uma palavra de morte,
Vós, palavras!

O nó que as palavras deram em meu sonho talvez tenha sido o mesmo que ocupara minha garganta depois da frase ouvida no despertar. A boca cheia de palavras, querida, não pode dizer o mundo. Estamos a distâncias intransponíveis, mas estes mapas que lhe escrevo erram ao léu pelas noites de sonhos e frases soltas. A poeta exorta as palavras e, num outro poema, clamava a salvação pela palavras. Mas o mundo, o nosso mundo mapeado nestas cartas, não tem remédio - e o velho Bolaño acertou em dizer que tal é nossa salvação: estamos condenados ao mundo pelas palavras que ora nos faltam ora nos inundam, querida. Talvez agora apenas escrevo porque me dou conta de que a vida é fábula e de que você, tal qual a Matilda dantesca, está na outra margem deste rio chamado esquecimento. 

Do seu remetente impossível.


Imagem: Franco de' Russi. Divina Commedia (manuscrito Urb. lat. 365). 1477-82. Biblioteca Apostólica do Vaticano.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Estudo sobre a memória III

 
 
a W.Z.

Saudade
coisa sem cabimento
se a pronuncio
cabe em três
sílabas
se a sinto
não cabe em
sentimentos.

Imagem: El Greco. Alegoria: menino acendendo uma vela com um macaco e um tolo. 1600. Museo del Prado, Madrid.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Estudo sobre a memória II



A M.H.

Está próxima a margem onde daremos nosso último adeus. Uma poeta, nos devaneios da mente de uma sua personagem - inventada homem, grafada a lápis, engolida com muito vinho -, disse que "há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até nosso fim. e por isso passíveis de serem sonhados a vida inteira." Hoje, por aqui, outros sonhos despertaram monstros, tal qual Goya vislumbrara. Caminhamos juntos, com passos já titubeantes, para a margem. Porventura ficarei e partirás, só, sem lembranças e sonhos, apenas com o sorriso antes tão duro e hoje já domado por tudo o que sonhou pela vida. Mas a partida também é sempre uma constante, é parte integral de todos os "adeus" que pronunciamos sem cessar desde o nascimento. Certa vez, choramos uma distância, a de um mar absolutamente azul - que nem mesmo Mallarmé teria pensado tão azul como nós, naquele dia, acabamos por pensá-lo -, que me jogava aos lugares por onde nossos passados corriam loquazes. E muitas são as vozes que hoje, por mais que impere a vontade de silêncio, ainda soam em cozinhas aquecidas por fogões a lenha, em meio ao cheiro da brasa que preparava os banquetes de outrora. E nada é capaz de detê-las, nenhum adeus, nenhum rio. A margem está próxima, mas, antes da partida, abro a gaveta dos sonhos para que os sonhemos juntos uma, duas, três, não importa quantas vezes.

Imagem: El Greco. Menino soprando brasa para acender uma vela. 1570-72. Museo Nazionale di Capodimonte, Napoli.

domingo, 27 de julho de 2014

Lendo um mundo



A M.G.L.

Mal completava uma semana de vida e, cruzando o Atlântico, vinham-me vozes da vida futura de uma portuguesa, talvez pesarosa por conta de alguma saudade:

"Hoje, passada a madrugada, continuei o dia com a minha parte mais sombria; soltaram-se-me as minhas recordações, presentes, passadas e futuras, e não encontrava caminho linear entre elas.

Não só importa escrever sucessivamente, mas saber quem me sucederá numa constelação de sentidos.

O que é a descendência?

A seiva sobe e desce numa árvore, estende-se pelos ramos, e é regulada pelas estações; eu e a árvore dispomo-nos uma para a outra, num lugar por nomear. Este lugar não tem significação de dicionário, não transmigrou para nenhum livro.

Agora o sol, o solo, a solo, encadeiam-me nas palavras  

Esta madrugada aproximei-me da certeza de que o texto era um ser."

Um ser distante, o texto, é a própria presença do impossível de ser apreendido e devorado pelo tempo. Sem mais lugares às sentenças definitivas, mesmo as plantas, inertes, são o puro movimento de sua seiva. Nascido, num tempo nascido, deixava meus ouvidos à espera dessas palavras perdidas das recordações presentes, passadas e futuras da poeta. Fazer sentido, como costuravam no céu as constelações os homens de outras épocas, desnuda o bebê de outrora sob imenso mar cinza que se abre, num domingo qualquer, sobre sua cabeça. Tudo o que respira, tudo o que vê e toca não é senão o grande texto do mundo à espera de leitura. "Mi nombre es alguien y no importa quién (...) He testimoniado el mundo: he confesado la extrañeza del mundo", diria Borges lido por Nancy lido pelos dedos que tocam este poema, e que, portanto, tocam parte de um mundo solto tal qual seiva que desce e sobe, num lugar sem nome. E as notas tocadas com tanta força, encadeadas no mundo imaginado por Bach, são também parte deste mundo e de todos os outros, criados ou por criar. Nenhuma imagem se carrega na descendência: há, isto sim, uma grande festa nos mundos (passados, presentes, futuros: todas abstrações) ainda a serem lidos por alguém, não importa quem.  

Imagem: Paul Gauguin. Adão e Eva. Casal tahitiano caminhando. 1900.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Estudo sobre a memória



Atrás das várias vozes
muitas vezes soçobram
alguns marginais algozes.

Das coisas todas lindas
sabia o poeta matreiro
não serem senão findas.

De que vale a dança
essa ilusão do passado
de uma triste criança?

Se toda memória contém
mais que algozes e danças
tristeza infinita que convém.


Imagem: Goya. Não havia remédio. 1797-8.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Estudo sobre um sorriso



Uma vida sem poesia é uma vida sem vida, meu amor.
Por que vais para o rio cujas margens não mais podes conhecer?
Habitas ainda as águas desse desterro?
Inóspito mundo onde a vida se confunde com esse rio,
onde pousas tua cabeça perdida em desvarios
chorando à espera de uma vida que vem.
Demasiado perdida, posto que encontrada,
a última lágrima de teus olhos parou ao lado de teu sorriso.
Jamais me esquecerei que isso ainda podia dizer,
jamais me esquecerei.
E já não sei o que amo: se uma língua perdida
ou teu pranto, o mesmo que sonda meus poemas.
Por que cruzas o rio onde já não podes me dizer, querida?
Nele não enxergo mais tua lágrima
e tudo soa vazio, insuportavelmente vazio.
Percebo tua vida indo embora
cruzando margens intratáveis,
nessas águas em que não conheço nem tuas lágrimas
nem teu sorriso. 

Imagem: Giovanni A. Boltraffio. Retrato de uma senhora como Santa Lúcia. 1500. Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

À destinatária impossível



Para minha destinatária impossível.

Querida, mal acordo e me deparo, mexendo em meus papeis, com uma nota cuja caligrafia desconheço. Talvez essa letra redonda, aparada e precisa possa ser sua. Fico intrigado com o acaso da sua possível escritura, aliás, que fala sobre o acaso. Certa vez, talvez antes mesmo da sua existência, lhe enviei um poema cujos três primeiros versos agora repito:

La tierra giró para acercarnos,
giró sobre sí misma y en nosostros,
hasta juntarnos por fin en este sueño

O sonho em que nos juntamos terminou junto com a descoberta da sua nota, porventura uma pequena carta a mim remetida num dos disparates guiados pelo seu olhar profundo. O giro da terra borrou minhas memórias concretas, ainda pintadas na parede do quarto onde nos guardávamos tal qual dementes perdidos na terra dos desejos. Pode ser que esta carta seja ridícula, como fala um outro imaginário e impossível, Álvaro de Campos, mas, ainda assim, também impossível de não ser escrita. Aliás, o sonho em que nos juntamos depois do giro da terra foi o mesmo que colocou fim a sonhos anteriores, escritos em outras cartas, mapeados por outros aventureiros, e não passamos disso. Não há salvação para quem caiu no jogo da escritura, querida. E assim lembro do Bolaño, que você talvez nunca leu, quando, perto do leito de morte, ao responder a pergunta "O mundo tem remédio?", disse: "o mundo está vivo, e nada vivo tem remédio, e essa é nossa sorte." Nossa sorte, o irremediável, está distante, está sempre em fuga, como por vezes estive de você (mas não é essa a experiência amorosa que os provençais perceberam? Todo amor não é sempre amor de lonh, como cantava Jaufré Rudel? - Iratz e dolens m'en partirai / S'eu no vei cest'amor de lonh). Acho que começo a divagar sobre a sorte do meu dia, querida (sorte encontrada naquelas letras redondas que suponho serem suas), e disso não mais quero lhe falar. Por outro lado, não poderia, depois de tanto tempo sem lhe escrever, terminar esta carta como quem se dá por exausto. Não! Aliás, nem mesmo a termino. Apenas a deixo a você como uma nota, cuja caligrafia talvez você desconheça, falando, mais uma vez, sobre o acaso, sobre o giro que a terra deu para nos aproximar mas que, hoje, talvez seja o giro de um amor distante...

Do seu remetente impossível.

p.s.: mando também um poema em que ressoam timbres de outras cartas que poderia lhe escrever.

domingo, 6 de julho de 2014

Fragmentos para dominar o silêncio


I
As forças da linguagem são as damas solitárias, desoladas, que cantam através de minha voz que escuto ao longe. E longe, na negra arena, jaz uma criança densa de música ancestral. Onde a verdadeira morte? Quis iluminar-me à luz de minha falta de luz. Os ramos morrem na memória. A jazente aninha-se em mim com sua máscara de loba. A que não pôde mais e implorou chamas e ardemos.

II
Quando da casa da linguagem se vai o telhado e as palavras não se protegem, eu falo.
As damas de vermelho se perderam dentro de suas máscaras e mesmo assim regressarão para soluçar entre flores.
Não é muda a morte. Escuto o canto dos enlutados selar as feridas do silêncio. Escuto teu dulcíssimo pranto florescer meu silêncio cinza.

III
A morte restituiu ao silêncio seu prestígio sedutor. E eu não direi meu poema e eu hei de dizê-lo. Mesmo se o poema (aqui, agora) não tem sentido, não tem destino.


Alejandra Pizarnik. Fragmentos para dominar el silencio. In.: Poesía Completa. Edición a cargo de Ana Becciu. Buenos Aires: Lumen, 2011. p. 223. (Trad.: Vinícius N. Honesko)

sábado, 5 de julho de 2014

Poema em prosa II



A R.A.

À parte todos os sonhos do mundo, a lucidez, como que a me colocar no ponto em que a morte poderia chegar insuspeitada, inebria a visão. Soam os sinos do tempo, e Nietzsche, perdido no olhar do animal - quase sem lembrança e feliz -, grita o esquecimento. Álvaro de Campos, só quero morder um pedaço de chocolate e, com a mesma verdade com que o fez aquela moça, afundar-me no que há de mais metafísico na existência: o esquecimento - ou, de fato, tudo talvez não seja senão a consequência de estar indisposto. As horas desfilam para mim como essas manequins sem vida, repletas das matérias do consumo (mais uma vez, a metafísica vulgar, esperada, desejada). Folheio o livro sobre a discrição heroica e toda matéria, tudo em que toco, respira meu corpo que evapora. Por que não volto ao chocolate? Olho para o mar e, tal qual o poeta de que mais gosto, fico esperando notícias de mim mesmo. Mas, hoje, nesta espera - e enquanto escrevo cartas jamais enviadas -, talvez não me sobre nada mais do que este chocolate que começa a derreter no meu bolso há pouco cheio de memória.

Imagem: Eustache Le Sueur. As Musas. Clio, Euterpe e Tália. 1652-55. Museu do Louvre, Paris.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Poema sismógrafo


 A J.

Das costas de um vulcão
escorrem lágrimas quentes
depois de cada suspiro do mundo.

Acordo com uma foto
da lua quase cheia,
mas plena na voz que me alerta.

Do sonho, vêm os suspiros,
da noite, a saudade,
do tempo, a ausência

soprada pelas entranhas do mundo
e que, com deliciosa calma,
pousa a cabeça em meu ombro

para uma noite de sono depois do amor.
Às costas do vulcão,
desejando apenas o suspiro que

afaga meu rosto,
versos (diversos) inadvertidos
à procura de seus olhos.

Imagem: Tintoretto. Vênus, Marte e Vulcão (detalhe). 1551. Alte Pinakothek, Munique

sábado, 28 de junho de 2014

Tempo oportuno


Ecce homo. Fui também eu apresentado a julgamento, diante do palácio: "a máquina do mundo se entreabriu / para quem de a romper já se esquivava / e só de o ter pensado se carpia." Enquanto o mineiro perfurava o céu de chumbo, em meu juízo suprimia minha própria vida pela lascívia de Kronos, o tempo, esse implacável devorador que me iludia com iscas suaves e me fazia tentar digerir tudo o que de mim se aproximava. Espectros dos mesmos sem roteiros tristes périplos que repito em busca de mim mesmo. Talvez tenha cruzado os mares atrás de sua imagem sem perceber que você gostava de vir a mim nas tranças de Kairós, não na saliva de Kronos. Tal qual o Drummond que releio sob o som das chuvas que acontecem no passado, ainda ouço o eco de sua voz. Enquanto fugia, recebia suas notas de desejo e, ao largo de árvores frutíferas, molhávamos os pés sob sol de nossas origens, escondidos da fúria do tempo. Não no paraíso, esse insondável, mas no tempo oportuno, Kairós, do encontro de nossos olhares, outrora, num poema, chamado felicidade. Kronos, entretanto, é implacável, e com sua ira tenta, a todo custo, jogar-me para dentro da máquina do mundo. E estou diante do meu juiz que, pela voz de alguém que fala ao poeta, diz a todo instante, como que me dar um novo fôlego:

"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."

Aplaco, então, com uma calma inadvertida, as ânsias que me fizeram um ser em despedida. Vejo poemas onde há pouco me consumiam as torturas do julgamento. Desfaço-me dos planos, em meus bolsos colocados por Kronos, e tento retomar a linha da contingência que, numa celebração da passagem, veio a mim como uma nota de viagem. Volto os olhos à lua dos sonhos, não mais regida por suas fases, mas pela percepção de sua instantânea beleza que, neste instante, é talvez o único lugar onde posso agasalhar meu peito...

Imagem: Francesco Salviati. Tempo como oportunidade (Kairós). 1543-45. Palazzo Vecchio, Firenze.  

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Não há mundo comum: é preciso compô-lo

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Não há mundo comum. Jamais houve. O pluralismo está conosco para sempre. Pluralismo de culturas, sim, das ideologias, das opiniões, dos sentimentos, das religiões, das paixões, mas também pluralismo das naturezas, das relações com os mundos vivos, materiais e também com os mundos espirituais. Nenhum acordo possível sobre o que compõe o mundo, sobre os seres que o habitam, que o habitaram, que devem habitá-lo. Os desacordos não são superficiais, passageiros, devidos a simples erros de pedagogia ou de comunicação, mas fundamentais. Eles ferem as culturas e as naturezas, as metafísicas práticas, vividas, vivas, ativas. Inútil, por consequência, dizer: “Nós talvez diferimos superficialmente por nossas opiniões, nossas ideias, nossas paixões, mas, no fundo, somos todos semelhantes, nossa natureza é a mesma e aceitamos colocar de lado tudo o que nos separa, e então iremos partilhar o mesmo mundo, habitar a mesma morada universal”. Não, se nós colocamos de lado o que nos separa, não há nada que nos resta para colocar em comum. O pluralismo fere muito profundamente. O universo é um pluriverso (James).
A política, o que chamamos ordinariamente por esse nome, simplificou em demasia sua tarefa. Poderia haver pessoas que conhecem de antemão do que se compõe o mundo comum, e seria suficiente fazê-lo advir pela eliminação gradativa de tudo o que nos separa, de tudo o que nos coloca em desacordo. Seria suficiente colocar de lado as metafísicas particulares e entraríamos em acordo sobre certo número de princípios universais. Graças às vanguardas (de direita como de esquerda) entraríamos em acordo. Haveriam discussões, resistências, batalhas violentas, talvez, mas o sentido do progresso, a flecha do tempo, iria justamente numa direção notável, caminharia direito: revelar sob os desacordos superficiais a irrupção progressiva, progressista, desse universal, desse mundo comum que está, no fundo, já aí, escondido, em cada um de nós. Saberíamos o que está no mundo e seria suficiente revelá-lo. A política seria uma ciência: uma ciência do mundo comum já presente, este que seria preciso apenas fazer advir lutando contra todos os desacordos superficiais daqueles que não compreendem que já estão profundamente em acordo. Em acordo pelas leis da economia; pelas leis da biologia; pelas leis da natureza; pelas leis da moral; pelas leis da religião revelada (esta e não outra); pelas leis da discussão racional; pelas leis da política – as leis, as duras leis da política. Mas, em todo caso, existiriam leis.
Evidentemente, isso não é bem assim, uma vez que já há tantas leis, tantas ciências, tantos mundos comuns aí que há metafísicas caminhando ao lado do mundo. A política não é uma ciência, jamais poderá sê-lo, com qualquer nome que dermos a ela e a qualquer ciência que nos confessarmos. É uma arte, ou, ainda, artes, o que chamamos justamente as artes política. As artes pelas quais procuramos compor de modo progressivo o mundo comum. O mundo comum deve ser composto, tudo está aí. Ele já não está enterrado na natureza, em um universal, dissimulado sob os véus amassados das ideologias e das crenças as quais bastaria deixar de lado para que o acordo se faça. Ele deve ser feito, deve ser criado, deve ser instaurado. E, portanto, pode ser perdido. Aí está toda a diferença: se o mundo comum deve ser composto, podemos falhar na sua composição. A flecha do tempo avança, ou retrocede, ou se interrompe, de acordo com a maneira que o compomos. Nada de inevitável. Nada de inelutável. Nenhum sentido da história. E, ao mesmo tempo, sim, nós o compomos de maneira progressiva. Mas não é o mesmo progresso de antes, quando acreditávamos “na” ciência política. Sempre há “homens e mulheres de progresso”, progressistas e reacionários, mas, não obstante, isso depende do modo que conseguem ou não essa composição, a qual não tem mais nada de inevitável ou de inelutável. E, portanto, pode acontecer de nos enganarmos a todo instante quando marcamos com uma cruz aqueles que são do lado bom e aqueles que são do lado mau da história. Os lados têm uma furiosa tendência a variar, as partes a mudar de campo, sem falar das consequências inesperadas de nossas ações que multiplicam as hesitações sobre o sentido e o percurso da composição.
As artes políticas devem hesitar, tatear, experimentar, retomar, sempre recomeçar, refrescar continuamente seu trabalho de composição. Cada objeto de preocupação, cada caso, cada coisa, cada “issue”, cada preocupação: será preciso recomeçar. Não há nada que possamos transportar tal e qual de uma situação a outra; a cada vez será preciso ajustar e não aplicar, descobrir e não deduzir, especificar e não normalizar, descrever – antes de tudo, descrever. São artes, justamente, artifícios, astúcias, competências, artesanatos, práticas – não ciências. [...]
As artes políticas estão tão longe da ciência (política) quanto das artes. E ainda mais longe do que chamamos de arte pública, a criação de uma esfera pública: como se soubéssemos o que é o público! Como se o público não fosse um fantasma, um ser oculto, um ser eclipsado, capaz de aparecer, talvez, mas também de desaparecer, de se eclipsar – como hoje, quando o público parece ter desaparecido para sempre (Dewey). É por que o público deve ser composto, caso por caso, questão por questão, preocupação por preocupação, que não há de fato um público – assim como já não há um mundo aqui, que seria preciso revelar. O público pode desaparecer a todo instante se falhamos na sua composição. Nada de mais frágil do que o público (Lippmann). Fazer advir o espírito público é infinitamente mais difícil, mais raro e mais próprio a todos os tipos de manipulação do que virar a jogo: “Espírito, és tu?”. Silêncio para toda resposta – e não tomemos os ruídos de pedestais como sua mensagem criptografada.
De que se compõe, hoje, o que chamamos comumente a política? De um repertório patético de imitações de imitações de imitações daquilo que um dia foram, há dezenas de anos, melhor, de séculos, grandes invenções, grandes instaurações de obras coletivas. Um repertório de paixões, de atitudes, de palavras históricas que se reduz sem cessar a cada gasto, cada vez mais inútil, que se torna menos legível em cada passagem, como uma fotocópia da fotocópia da fotocópia. Há um mundo, um pluriverso a ser composto e temos, para afrontá-lo, três ou quatro paixões, duas ou três reações, cinco ou seis sentimentos automáticos, algumas indignações, um pequeno número de reflexos condicionados, algumas atitudes bem intencionadas, um punhado de críticas já feitas. De um lado, uma multidão, de outro, quatro ou cinco conceitos. E gostaríamos de compor a primeira com os segundos! Sem busca e sem obra – sem obra, novamente, sem retomar tudo fresco, mais uma vez, pois não há nenhum outro meio de compor o mundo comum, sabemos bem, do que o recompondo, do que retomando desde o início o movimento de composição.   

Bruno Latour. Il n’y a pas de monde commun: il faut le composer. In.: Multitudes. N. 45. Special, été 2011. Disponível em: http://www.multitudes.net/il-n-y-a-pas-de-monde-commun-il/ (Tradução: Vinícius N. Honesko)