terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pequeno parágrafo sobre a morte



Vagarosa e paciente, a morte aparece voando em círculos. Como abutres nos céus dos desertos, a senhora das noites insones está desde sempre ali, à espreita, nas lufadas de ar mais quente que povoam o céu da noite. E seu trabalho impecável e irretocável se dá nos pequenos rasantes que empreende noite afora. Não restam mais segredos entre nós, antiga dama. Hoje já a compreendo perfeitamente, ainda que jamais saberei nada de você; hoje vi você em outros olhos, olhos estes que já não conheço, mesmo que desde minhas primeiras lembranças tenham sido eles a cuidar de meus passos; hoje vi seu paciente trabalho neste deserto como talvez nunca outrora. Toda a parafernália que inventamos para não a reconhecer se faz inútil (como são nossas invenções) e, vagarosa e paciente, a senhora continua a traçar seus círculos cada vez mais próximos. Já sinto seus movimentos, o ar que respiro é o que provém de cada batida de suas asas, e não há mais distinção entre sono e vigília, entre espera e caminho. Estamos nos olhando: você, com seus longos olhos que me abarcam, eu, tentando evitá-la até onde posso. E não há mais tempo para nada, não há mais sono que traga sonhos em que você não habita. Tudo se consome, a vida se faz suspiro, o mundo (essa outra inútil invenção) se desfaz, e nada resta senão os suaves sons de sua ronda interminável. 

Imagem: Pieter Bruegel. O triunfo da morte (detalhe) 1562. Museu do Prado, Madri.

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