terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Sei lá... a vida tem sempre razão




Tem dias que eu fico pensando na vida
E sinceramente não vejo saída
Como é por exemplo que dá pra entender
A gente mal nasce e começa a morrer
Depois da chegada vem sempre a partida
Porque não há nada sem separação


Sei lá, sei lá
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, Sei lá
A vida tem sempre razão


A gente nem sabe que males se apronta
Fazendo de conta, fingindo esquecer
Que nada renasce antes que se acabe
E o sol que desponta tem que anoitecer
De nada adianta ficar-se de fora
A hora do sim é o descuido do não


Sei lá, sei lá
Só sei que é preciso paixão
Sei lá, sei lá
A vida tem sempre razão


(Vinícius de Moraes/Toquinho)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Pierre Menard - Autor do Quixote








Não queria compor outro Quixote - o que é fácil -, mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca enfrentou uma transcrição mecânica do original; não se propunha a copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes. ‘Meu propósito é simplesmente assombroso’, escreveu-me em 30 de setembro de 1934, de Bayonne. ‘O termo final de uma demonstração teológica ou metafísica – o mundo externo, Deus, a causalidade, as formas universais – não é menos anterior e comum que meu divulgado romance. A única diferença é que os filósofos publicam em agradáveis volumes as etapas intermediárias do seu trabalho e eu resolvi perdê-las. De fato, não resta um único rascunho que ateste esse trabalho de anos. O método inicial que imaginou era relativamente simples. Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros e contra o turco, esquecer a história da Europa entre os anos de 1602 e 1918, ser Miguel de Cervantes. Pierre Menard estudou esse procedimento (sei que conseguiu um manejo bastante fiel do espanhol do séc. XVII), mas o afastou por considerá-lo fácil. Na realidade, impossível! - dirá o leitor. De acordo, porém o projeto era de antemão impossível e, de todos os meios impossíveis para levá-lo a cabo, este era o menos interessante. Ser no séc. XX um romancista popular do séc. XVII pareceu-lhe uma diminuição. Ser, de alguma maneira, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu-lhe menos árduo – por conseguinte menos interessante – que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote mediante as experiências de Pierre Menard.







Borges, Jorge Luis. Ficções. (Tradução Carlos Nejar). São Paulo: Ed. Globo, 2001. p. 58. Gravuras: Gustave Doré / Cândido Portinari







sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

O escritor no neutro: leitura de Kafka






“Em maio de 1921, escrevi um soneto que Ludwig Winder publicou no suplemento dominical da Boêmia.
Kafka disse-me na ocasião: “O senhor descreve o poeta como um ser de estatura prodigiosa, cujos pés estão na terra, enquanto a cabeça desaparece nas nuvens. É naturalmente uma imagem bem habitual no âmbito das representações convencionais da pequena burguesia. É uma ilusão, oriunda de desejos ocultos, que nada tem com a realidade. O poeta sempre é na realidade muito menor e mais fraco que a média da sociedade. Por isso sente o peso da existência terrestre com muito mais intensidade e força que os outros homens. Para ele, pessoalmente, cantar não passa de um modo de gritar. Para o artista a arte é um sofrimento, com a qual ele se libera para um novo sofrimento. Ele não é um gigante, porém um pássaro mais ou menos multicor na gaiola da existência.
- O senhor também? – perguntei eu.
- Sou um pássaro completamente impossível – disse Franz Kafka. – Sou uma chuca – um Kavka. O carvoeiro do Teinhof tem uma. O senhor já viu?
- Sim, ela fica correndo na frente da loja dele.
- Pois é, minha parenta tem mais sorte que eu. É bem verdade que lhe cortaram as asas. No meu caso, em compensação, isso nem foi preciso, pois minhas asas se atrofiaram. Esse é o motivo por que para mim não existem alturas nem distâncias. Desamparado, vou saltitando entre os homens. Eles me observam com grande desconfiança. Pois, afinal, sou um pássaro perigoso, um gatuno, uma chuca. Mas é só aparência. Na verdade não tenho percepção alguma das coisas que brilham. Essa é a razão pela qual nem sequer tenho penas pretas e brilhantes. Tenho a cor da cinza. Uma chuca que sonha desaparecer entre as pedras. Mas é só uma brincadeira, para o senhor perceber que hoje não estou bom”.



Gustav Janouch (Conversations avec Kafka), enxerto citado por R. Barthes em dos seminário sobre “O Neutro” ministrados no Collège de France entre 1977 e 78. (O Neutro. Anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977/1978. Texto estabelecido por Thomas Clerc. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo : Martins Fontes, 2003. PP. 266-267).

domingo, 6 de janeiro de 2008

Aos catedráticos


Em meio à azáfama obscena dos saturalattes

Em meio às rasteiras dos rastaqüeras -

Inteleqüeras

O pensante vagabundo sem-currículo

Filosofopoeta, com o combustível das coxinhas do boteco

Convivendo com a ralé, os ratos, o anonimato do espetáculo

(da indústria das celebridades de cérebros luminares)

Sem catequizandos e bolsas de fomento

Sem a empáfia estúpida do engodo sofisticado

Troça, pirraceia, profana

A secular glória semestral

Do último filosocrata pós-pós-pós-doctor

Funcionário bem comportado de máquinas anônimas

Cão servidor de patrões nada morais.