segunda-feira, 30 de abril de 2012

Pequeno Parágrafo do Remorso


Às vezes sorvemos nossos remorsos no primeiro gole de café pela manhã. Talvez, depois de ter lido essa frase, tenha ficado um pouco atônito, mas mais do que pensar a respeito dos re-sentimentos, das re-vivências das abstrações às quais damos o nome de culpa, foi a re-mordida (ah, não havia como deixar de pensar em italiano) o duro golpe dessa sentença. Remexer em coisas, sejam elas efetivamente coisas (se é que podemos falar assim de coisas) ou, ao contrário, nessas coisas que chamamos lembranças (se é que de lembranças fazemos coisas ou vice-versa), a mim sempre se dá como uma espécie de captura, de uma impreterível mordida numa isca. Na xícara de café matinal está sempre a oportunidade do esquecimento e do drible da isca. E deglutir o líquido quente e perfumado como culpado talvez seja isso... Não é questão de intenção, mas somente uma tensão: não a que se cria no fio mordido por nós, pequenos peixes tentando viver no mar da memória, mas a que se dá toda vez que a abstração culposa se afigura como único horizonte pós-ato. Post coitum animal triste. Os latinos não diziam nada da culpa em tal sentença (e porque comecei a usar esse horrendo significante para falar frase? Esse significante culposo por excelência?), mas falavam apenas da perda do passado, da dor da perda do momento de prazer para possuir o presente, para ser o presente. E, neste primeiro gole matutino, no primeiro golpe de luz do dia, escuto o velho Nietzsche a me dizer que "todo agir requer esquecimento: assim como a vida de tudo o que é orgânico requer não somente a luz, mas também escuro. Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante àquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas da ruminação e ruminação sempre repetida. Portanto: é possível viver quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver."

Imagem: Hendrick Goltzius. Sem Ceres e Baco Vênus congelaria. 1599-1602. Philadelphia Museum of Art, Philadelphia.

terça-feira, 24 de abril de 2012

De cartas impossíveis


Para minha destinatária impossível.

Querida, já não me lembro mais quantas vezes lhe escrevi. Aliás, nem mesmo se cheguei alguma vez a efetivamente escrever. Acho que não escrevo, nem mesmo agora. Parece que esta carta foi por mim encontrada num outro tempo; parece que ela já tinha sido escrita por um outro alguém e que, agora, este agora, foi apenas o instante de encontro. Como quando buscamos algo nas gavetas mais obscuras, onde guardamos nossas coisas mais recônditas e, no entanto, acabamos encontrando algo que não mais reconhecemos como nosso, ainda que esteja lá, nas "nossas coisas". A carta que nunca chegou a ser enviada, o postal comprado e que fora usado como marca páginas ao invés de enviado, o presente que se tornou passado pois não tive tempo de entregá-lo... todas essas coisas intentadas, todas essas falhas de ação e que também se tornaram falhas de memória. E reabrindo a gaveta há tempos fechada foi que encontrei também esta carta. Uma carta intentada e que agora já não é mais a que estava guardada, pois, como haveria de escrever sobre a abertura da gaveta, sobre os esquecimentos e lembranças se ainda não havia vivido essa experiência do reencontro que foi abrir a gaveta? Como poderia ter sido esta a carta de outrora se naquele outrora eu nada saberia lhe dizer sobre a experiência de ter reencontrado uma carta? No entanto, esta carta é sim aquela carta. E penso que talvez seja ela, como a memória do velho Murilo Mendes, "uma invenção do futuro muito mais que do passado". Descobri que esta carta que  envio agora, neste agora, estava já inventada desde quando fora escrita, não com estas letras, não neste formato, não com estes assuntos, não desta vez, mas, ao mesmo tempo, com todas estas letras, neste formato, com estes assuntos, porém, numa outra vez... E, atônito, querida, atônito, escrevo agora sabendo que o que escrevo não passa do que já estava escrito desde não sei quando e que permanecia ali, guardado, naquela gaveta em que agora não ouso mais mexer...

Do seu remetente impossível. 

p.s.: envio também o postal que estava junto à carta: o São Jerônimo do Dürer (sim, e agora penso que a vanitas sempre nos diz coisas sobre essas coisas do tempo) que de Lisboa deveria ter-lhe enviado.

sábado, 21 de abril de 2012

Ideia do Poder


Talvez apenas no prazer as duas categorias, inventadas pelo gênio de Aristóteles, a potência e o ato, perdem a sua já estereotipada opacidade e tornam-se, por um átimo, transparentes. O prazer - está escrito no tratado que o filósofo dedicou ao filho Nicômaco - é aquilo cuja forma é a todo instante cumprida, perpetuamente em ato. Dessa definição resulta que a potência é o contrário do prazer. Ela é o que jamais está em ato, que sempre falta ao seu fim; em uma palavra: dor. E se o prazer, conforme essa definição, jamais se desenrola no tempo, a potência será, ao contrário, essencialmente duração. Essas considerações permitem iluminar as relações secretas que ligam poder e potência. De fato, a dor da potência acaba no átimo em que ela passa ao ato. Mas existem por toda parte - também dentro de nós - forças que constringem a potência a delongar-se em si mesma. Sobre essas forças se funda o poder: ele é o isolamento da potência do seu ato, a organização da potência. Apropriando-se da dor, o poder funda sobre esta a sua própria autoridade: ele deixa literalmente incompleto o prazer dos homens.
Nesse sentido, o que é perdido não é, no entanto, apenas o prazer, quanto o sentido mesmo da potência e da sua dor. Tornada interminável, ela cai na alçada do sonho e gera, para si própria e para o prazer, os equívocos mais monstruosos. Pervertendo a estreita conexão de meios e fins, de busca e formulação, confunde o cúmulo da dor - a omnipotência - com a maior perfeição. Mas somente como fim da potência, somente como absoluta impotência é humano e inocente o prazer; e apenas como tensão que obscuramente prenuncia sua crise e seu juízo resolutivo é aceitável a dor. Na obra, como no prazer, o homem goza finalmente da própria impotência. 

Giorgio Agamben. Idea del Potere. In.: Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. pp. 51-52. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madrid.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Pequeno parágrafo sobre os segundos



Chronos só se conta em segundos porque os primeiros já foram devorados. Só os primeiros sabiam que o tempo tinha que ser atravessado e não contado. Aliás, as contas dos segundos, paradoxais e inexatas, fazem-nos contar ainda algo do tempo dos primeiros, algo este que, ainda assim, chega-nos a todo instante pelo hálito aureolado do monstro devorador de primeiros. Sentimos seu batimento cardíaco, o calor exalado pelo seu corpo, sua áspera mão que nos toca o rosto a cada alvorecer, mas o que nos faz contar coisas dos primeiros é aquele hálito de morte. Deixar-se tocar por Chronos é saber-se para além das certezas das contas segundas (em segundos), mesmo que isso implique a melancolia do instante primeiro. Os primeiros instantes, não mais os segundos, retornam agora regurgitados pelo divino tempo. Primeiros suspiros, primeiras vozes... agora, neste agora, há somente o passo das contas do passado e nenhum segundo a mais a ser contado.

Imagem: Paolo Veronese. Saturno e História. 1560-1561. Afresco na Villa Barbaro, Maser (Italia).

domingo, 15 de abril de 2012

Ílion


De Tróia restou somente um bardo cego e analfabeto
Encontrado por lacedemônios na costa de Cyprus
Tomado pela febre, pelos piolhos e pelo escorbuto

Tróia, narrou-lhes o andarilho, fora saqueada há seiscentos anos
Contou-lhes de virtudes, heroísmos, derrotas e deuses
Logo se descobriu que o mendigo estava mentindo
Queria apenas entretê-los para poder beber mais vinho

Mas isso de nada importa,
Uma mera estrofe de canto sobrevive a impérios milenares
Além de logo acalmar o sono e afastar o medo da morte

Era o único consolo diante do absurdo cósmico
e desta curta e pretensiosa vacuidade que é a vida humana


Imagem: Daido Moriyama.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ah Gravrillo! Ah humanity!


O pensamento sobre uma vida feliz e de potência, mesmo na condição melancólica de que todos morreremos e nada há além deste mundo de sons, cheiros, loucuras e desencontros, esbarra na condição estrutural (de Unterbau) de que todos nos tornamos, nos dias que correm, etéreas mercadorias à espera de outros dividendos metafísicos - que podem estar ou não representados em salários - ao fim do mês.

Ou como diriam os economistas de plantão: a automatizada economia mundial é sugada pela gravitação do setor terciário, o mundo se torna um imenso e babélico balcão de secos e molhados (mesmo que para isso tenha de ser empregado trabalho escravo no Brasil, na Índia ou no Paquistão).

Vendemo-nos, todos, na feira insensata do mundo, muitas vezes a preços vis.

(E muitos se oferecem gratuitamente nas redes sociais, e estamos muito longe do velho Diógenes de Sínope que, leiloado como escravo, só dizia ter como ofício comandar homens, afirmando desbragadamente procurar algum comprador que precisasse de um senhor).

O pensamento sobre uma vida não dilacerada sempre esbarrará no fato de que, talvez, oitenta porcento da população mundial ainda acredita piamente ser esta a única via possível, a única vida possível, de que as contingências que nos levaram a tal estado calamitoso sejam frutos de necessidades inescapáveis.

Boa parte já nasceu na catástrofe - pode parecer uma insensatez, mas me assusta saber que nenhum ser humano hoje na terra tenha nascido no fim do séc. XIX, de que nossos humanos mais idosos tenham sido crianças durante a primeira guerra mundial, depois do momento em que o obscuro estudante Gravrilo Princip, tal como um personagem de Dostoiévski, ainda tinha em suas mãos o futuro da humanidade. Bastaria não ter puxado o gatilho.

Isso nos leva a uma situação tipicamente adorniana. Os levantes políticos recentes só comprovam esta claustrofobia de horizontes. Militarismo, ou economia liberal de mercado ou islamismos comunitaristas (alguns neofascistas) na outonal primavera árabe.

Ou os adultos infantilizados que hoje creem, lembrando barões de Münchausen portando mouses, fazer a revolução em um clique. Ou outros, mais ousados, que acreditam realizar um gesto genuinamente político ao andar de bicicleta, adotar o vegetarianismo ou fazer teatro em uma praça.

O mundo se tornou um grande parque temático, e alguns até aceitam os papéis de Pateta libertário que lhe são oferecidos.

Tal como na Disneylândia, em que adultos se vestem de personagens para encantar crianças já estupidificadas.

Uma criança, por si, não consegue ser estúpida, mas nossas crianças são educadas e treinadas para a estupidez, para futuramente empregarem suas vidas à espera dos ovos de páscoa trazidos pelas corporações anônimas.

Blanqui definitivamente foi enterrado. Bloom prefere ir à missa todos os dias.