quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Gourmetização ou fetichismo da mercadoria?


Há uma tendência - vai uma palavra gourmet! - na filosofia européia mais recente em estabelecer "teodiceias". O elogio da fragmentação cede lugar a um estilo sabichão e pretensioso, capaz de encontrar - arqueologicamente! - os avatares de uma tradição perdida que, paradoxalmente, ainda nos vincularia. Outro procedimento usual é o de realizar "ontologias pessoais", onde a busca pela marca autoral permite um certo heideggerianismo estilizado, de tom grandiloquente e com efeitos "inaugurais" de tábula rasa (a lista de autores exemplares em ambos os polos é ampla e heterogênea).

Apresentar tendências é redutor, mas no espaço de uma postagem visa-se uma síntese para o seguinte argumento: há uma severa despolitização e desmundanização na filosofia contemporânea. Dois séculos de uma filosofia acadêmica e institucional conseguiram produzir fetichização de termos (não conceitos, estes mais operativos e estratégicos), canonização de professores e muitíssima estetização.

Pensar, no tempo dos pequenos sistemas vendáveis no mercado editorial mundial, tornou-se uma experiência obsoleta, para não dizer interditada. A gourmetização, tão propalada nas redes sociais acerca de alimentos e modos de vida, há tempos processa-se na experiência do pensamento, tal como este é caricaturizado e institucionalizado nas universidades, centros de pesquisa e na imprensa pelo mundo afora.

Gourmetizar: desde Marx sabemos que as instâncias do espaço simbólico-cultural não são autônomas à dimensão das estruturas materiais. O primado do capitalismo financeiro especulativo desdobra experiências no mundo da cultura. Em uma economiza financeirizada, sem lastro produtivo, é preciso extrair valor, especular, mesmo do vazio: os picolés se tornam paletas mexicanas (no Brasil), a água, composto químico formado por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, adquire terroir, teses acadêmicas setoriais e sem confrontos vivos a fina flor da filosofia contemporânea.

O séc. XIX e parte do XX presenciou a formação da esfera separada das mercadorias e seu valor de troca, contemporâneas da transformação radical e violenta das  cidades ocidentais a partir do vetor "mercado". O séc. XXI consolida sua fantasmagoria: a produção simbólica, a subsistência, a água, nada escapa da captura pela forma mercadoria.

(Frente à goumetização, outro nome para a especulação fantasiosa, é preciso contrapor a brutal gratuidade da vida e do agir mundanos).  


Imagem: Dan Perjovschi 

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pequeno parágrafo sobre a morte



Vagarosa e paciente, a morte aparece voando em círculos. Como abutres nos céus dos desertos, a senhora das noites insones está desde sempre ali, à espreita, nas lufadas de ar mais quente que povoam o céu da noite. E seu trabalho impecável e irretocável se dá nos pequenos rasantes que empreende noite afora. Não restam mais segredos entre nós, antiga dama. Hoje já a compreendo perfeitamente, ainda que jamais saberei nada de você; hoje vi você em outros olhos, olhos estes que já não conheço, mesmo que desde minhas primeiras lembranças tenham sido eles a cuidar de meus passos; hoje vi seu paciente trabalho neste deserto como talvez nunca outrora. Toda a parafernália que inventamos para não a reconhecer se faz inútil (como são nossas invenções) e, vagarosa e paciente, a senhora continua a traçar seus círculos cada vez mais próximos. Já sinto seus movimentos, o ar que respiro é o que provém de cada batida de suas asas, e não há mais distinção entre sono e vigília, entre espera e caminho. Estamos nos olhando: você, com seus longos olhos que me abarcam, eu, tentando evitá-la até onde posso. E não há mais tempo para nada, não há mais sono que traga sonhos em que você não habita. Tudo se consome, a vida se faz suspiro, o mundo (essa outra inútil invenção) se desfaz, e nada resta senão os suaves sons de sua ronda interminável. 

Imagem: Pieter Bruegel. O triunfo da morte (detalhe) 1562. Museu do Prado, Madri.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Glosa dionisíaca



A Furio Jesi

A consequência do distanciamento dos deuses toma a forma de uma dor fatal, de uma noite em que o passado desaparece quando se torna presente. Aí, nesse presente, não se pode mais reconhecer nenhum passado, pois este torna-se para sempre presente, desfaz-se em nada nessa sua "duração" presente. Um nada gozoso como a sensação do nada que os latinos muito bem perceberam no sexo: "post coitum animal triste". Nenhuma percepção de culpa (tão presente nas mesquinharias hipócritas de certos cristianismos institucionais), nenhum arrependimento, mas a constatação (e experiência) da perda do passado, da perda infinita do passado, o pós-coito como pós-morte. Os deuses se afastam e nos deixam a noite escura do nada. Mas talvez a tênue linha de tal perda seja o que resta na experiência da vida. "A vida só tem uma forma: o esquecimento", dizia Francis Picabia. Na forma do esquecimento, o passado se faz vivo no presente. Porém, isso jamais se dá sem dor, ou melhor, não sem morrer se renasce. E, assim, cada instante é o instante de minha morte; o presente não se faz mais pontual e inapreensível, mas torna-se uma dimensão do etéreo e, paradoxalmente, do perene - em suma, é uma experiência de morte e renascimento, é a tristeza do gozo derramado e, ao mesmo tempo, a alegria por termos nos apartado dos deuses. Nesse distanciamento do céu e ingresso na noite escura do nada, numa experiência mística do profano, talvez esteja uma possibilidade de viver para além das amarras de um passado "causa" de tristeza plena (a insistência no re-sentimento de algo para sempre perdido), e, também, sem mais sonhos divinos que "causam" eterna felicidade (a fabulação do céu perene inalcançável). A leveza de uma vida cujos sentidos não se constituem enquanto monolitos decorativos e míticos, mas estão sempre por ser construídos no constante combate com a tristeza e a alegria. 

Imagem: Giovanni Bellini. Quatro alegorias: falsidade (ou sabedoria). 1490. Galleria dell'Accademia, Venezia.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Estudo sobre a memória IX



Durma morte, minha irmã,
no coração dos apavorados
ainda sórdidos e mesquinhos.

A vida em tons arredios e ocre
pinta a porta de entrada e
se desfaz arrazoada e tola.

Entram santos e guerreiros
onde antes habitavam
a miséria, o luxo e o vento.

Desfaça, amada irmã,
o laço entre o sono e o sonho
e me convida a bailar
a última dança da noite.

E todo som e toda voz
serão silenciados em palavras,
e não restam poemas
tampouco amargor na boca.

Apenas a brisa suave do vento
que insiste em soprar
na porta de entrada que deixo,
para sempre, escancarada.


Imagem: Paul Gauguin. Eva bretã. 1889. McNay Art Museum, San Antonio.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Presença do amor



O tempo do amor é o presente
o presente que tudo contém
a aparição real de tua alma e teu corpo
o ilusório de ti
teu encantamento
também tua distância
às vezes só um nome
e uma voz que eu escuto claramente a meu lado
és um sonho, és um pássaro ou o rumor de uma fonte?
e mesmo que estejas ou não estejas
sonho e pássaro e fonte
detiveram o tempo
como na velha cena
contada em uma fábula.

Grande desventura tua ausência
que eu procuro em vão conjurar
como vês
com pobres artes de imaginação
a pequena moeda que é dada
ao homem solitário
que te faz viver em sua memória
como uma gazela perdida no bosque
e encontrada na noite do regresso:
porque foste quem eras de vez
em uma hora
de esplendor não abolido
uma hora que sempre é o presente
e é todos os momentos
como tu
sempre igual a ti mesma.

Pedro Lastra. Presencia del amor. In.: Antología del extranjero. Bogotá: Ediciones Brevedad, 2002. pp. 72-73 (trad.: Vinícius Honesko)

Imagem: Gustav Klimt. A fecundação de Dânae. 1907.  Galerie Würthle, Viena.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Carta à destinatária impossível



Para minha destinatária impossível

Querida, esboço laços solúveis entre as palavras e as coisas, mas nenhum deles dura mais que alguns segundos, uns poucos instantes entre um piscar e outro, entre a visão de Íris (a deusa das mensagens divinas) e a íris, que abre a porta de entrada da luz. A cada piscar, lembro-me de você soltando os cabelos, do mesmo modo como agora tento soltar esses laços que acabo de esboçar. A carta se faz presente pouco a pouco, tingindo a folha branca que, como a fita que prendia seus cabelos, agora se desfaz em letras soltas. Mas o presente, que é sempre a condição de uma carta, é também o futuro que se verte em palavras, na ânsia de estar aqui, desenhado, e nada mais. Drummond uma vez lhe enviou uma tartaruga de futuro, mas eu, na condição de passado, encho de areia as rugas da carapuça e finjo ser ela a ampulheta da felicidade, uma outra porta à luz que Íris insiste em mandar. Talvez minhas palavras hoje lhe soem confusas, querida, mas fundido em desesperança estão meus sonhos, todos eles já sonhados outrora, no mundo que jaz no laço que, mal esboçado, solta-se no chão do quarto por onde zanza a tartaruga e onde porventura vivemos noites confusas: meus pés com os seus, minhas mãos com as suas, seus cabelos com os meus. Mas por que lhe digo isso se você é apenas o impossível? Por que escrevo mais uma carta que só diz impossibilidades? Talvez porque certas palavras são demasiado duras para não serem escritas, para permanecerem guardadas nas coisas. Porém as coisas não querem palavras para dizê-las e, assim, riem do meu laço que se esvoaça na distância que esta carta tenta preencher. Para que insistir, me pergunto. Para que tecer sentidos se dos cinco que temos nenhum é capaz de dizer palavra? Por que as imagens de Vermeer continuam a me sondar como se as cartas que leem suas mulheres fossem estas que lhe escrevo? E por que não pensar que, de fato, você poderia ser uma dessas impossíveis mulheres do pintor? A confusão das noites agora é toda minha, querida. Já não há seus pés, suas mãos e seus cabelos, mas apenas esse laço solúvel que se desfaz a cada letra que rabisco.

Do seu remetente impossível.

Imagem: Johannes Vermeer. Mulher com sua empregada segurando uma carta. 1667. Frick Collection, New York.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Amor I



Eu, que nunca soube o que é o amor,
sempre disse: eu te amo.
Mas tampouco sabia o que era eu.
Agora, talvez, só me resta uma dúvida:
eu te amo?


Imagem: Tiziano Vecellio. Amor sagrado e amor profano (detalhe). 1514. Galleria Borghese, Roma.