sábado, 5 de julho de 2014

Poema em prosa II



A R.A.

À parte todos os sonhos do mundo, a lucidez, como que a me colocar no ponto em que a morte poderia chegar insuspeitada, inebria a visão. Soam os sinos do tempo, e Nietzsche, perdido no olhar do animal - quase sem lembrança e feliz -, grita o esquecimento. Álvaro de Campos, só quero morder um pedaço de chocolate e, com a mesma verdade com que o fez aquela moça, afundar-me no que há de mais metafísico na existência: o esquecimento - ou, de fato, tudo talvez não seja senão a consequência de estar indisposto. As horas desfilam para mim como essas manequins sem vida, repletas das matérias do consumo (mais uma vez, a metafísica vulgar, esperada, desejada). Folheio o livro sobre a discrição heroica e toda matéria, tudo em que toco, respira meu corpo que evapora. Por que não volto ao chocolate? Olho para o mar e, tal qual o poeta de que mais gosto, fico esperando notícias de mim mesmo. Mas, hoje, nesta espera - e enquanto escrevo cartas jamais enviadas -, talvez não me sobre nada mais do que este chocolate que começa a derreter no meu bolso há pouco cheio de memória.

Imagem: Eustache Le Sueur. As Musas. Clio, Euterpe e Tália. 1652-55. Museu do Louvre, Paris.

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