"É a ebriedade da melancolia; como aproximar o rosto de uma rosa
enferma, indecisa entre o perfume e a morte." Foi pensando em tal verso
que enquanto me preparava para dormir já sentia as primeiras levas de
sonhos. Tentava encontrar minha primeira lembrança: qual havia sido
minha experiência de tenra infância de que me lembrava? A primeiríssima,
aquela em relação à qual só o líquido amniótico seria anterior em
ebriedade? Como a rosa enferma do poema, titubeante, não conseguia
definir a minha origem consciente. Mas, talvez, esse seja mais um dos
casos em que a exatidão consista na própria ambiguidade. Primeira
lembrança porque, justamente, indefinida como primeira; primeira porque é
uma cria dos delírios da invenção do exato "assim foi...". No entanto, o
som de um coração que escutava bater no ventre de minha mãe, quando eu
não tinha mais do que três anos, parecia pulsar com mais força agora que
me dava conta de que, talvez, fosse aquele som a primeira coisa a se
marcar em minha memória. Neste instante em que escrevo, e minha memória
parece indecisa entre o perfume de um eterno presente e a morte das
imagens passadas, deixei com que ela, a memória inebriada por essa doce
melancolia, me guiasse até o ponto em que não sabia mais, até o lugar
onde minha existência consciente parece "iniciar-se". E foi como se
estivesse novamente encostando o ouvido no ventre ocupado de minha mãe,
como se estivesse escutando as histórias de minha mãe sobre o bebê que
ali vivia; foi como se ainda estivesse conversando - balbuciando - com
aquele bebê que não podia me responder senão com leves movimentos e com
um coração em ritmo frenético; como se ainda estivesse pensando tal qual
a criança de pouco mais de dois anos, sem as marcas dos tempo
transcorrido e com a leveza dos espaços em branco que começavam a ser
preenchidos pela tinta da vida. O quanto de "assim foi" ou de "verdade",
que ocupa essa minha lembrança, não passa de tentativas vãs de
equacionar e tornar exata a ambiguidade da vida, cujo obscuro início de
todo nos foge. Importa-me agora, escrevendo pouco antes de sonhar, a
leveza ébria da recordação que, não menos que o presente, ainda me move
nas indecisões desta exatidão ambígua que é a vida.
Imagem: Rafaello de Sanzio. Retrato de uma mulher grávida. 1505-1506, Galleria Palatina, Firenze.
Nenhum comentário:
Postar um comentário