sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Pequeno parágrafo sobre primeiras lembranças

 
 
 
Para Fernando Honesko
"É a ebriedade da melancolia; como aproximar o rosto de uma rosa enferma, indecisa entre o perfume e a morte." Foi pensando em tal verso que enquanto me preparava para dormir já sentia as primeiras levas de sonhos. Tentava encontrar minha primeira lembrança: qual havia sido minha experiência de tenra infância de que me lembrava? A primeiríssima, aquela em relação à qual só o líquido amniótico seria anterior em ebriedade? Como a rosa enferma do poema, titubeante, não conseguia definir a minha origem consciente. Mas, talvez, esse seja mais um dos casos em que a exatidão consista na própria ambiguidade. Primeira lembrança porque, justamente, indefinida como primeira; primeira porque é uma cria dos delírios da invenção do exato "assim foi...". No entanto, o som de um coração que escutava bater no ventre de minha mãe, quando eu não tinha mais do que três anos, parecia pulsar com mais força agora que me dava conta de que, talvez, fosse aquele som a primeira coisa a se marcar em minha memória. Neste instante em que escrevo, e minha memória parece indecisa entre o perfume de um eterno presente e a morte das imagens passadas, deixei com que ela, a memória inebriada por essa doce melancolia, me guiasse até o ponto em que não sabia mais, até o lugar onde minha existência consciente parece "iniciar-se". E foi como se estivesse novamente encostando o ouvido no ventre ocupado de minha mãe, como se estivesse escutando as histórias de minha mãe sobre o bebê que ali vivia; foi como se ainda estivesse conversando - balbuciando - com aquele bebê que não podia me responder senão com leves movimentos e com um coração em ritmo frenético; como se ainda estivesse pensando tal qual a criança de pouco mais de dois anos, sem as marcas dos tempo transcorrido e com a leveza dos espaços em branco que começavam a ser preenchidos pela tinta da vida. O quanto de "assim foi" ou de "verdade", que ocupa essa minha lembrança, não passa de tentativas vãs de equacionar e tornar exata a ambiguidade da vida, cujo obscuro início de todo nos foge. Importa-me agora, escrevendo pouco antes de sonhar, a leveza ébria da recordação que, não menos que o presente, ainda me move nas indecisões desta exatidão ambígua que é a vida.
Imagem: Rafaello de Sanzio. Retrato de uma mulher grávida. 1505-1506, Galleria Palatina, Firenze.

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