Paris, 14 de novembro de 1932.
A J.P.[1]
Caro amigo,
Antonin Artaud
A crueldade não se
sobrepôs ao meu pensamento; nele ela sempre viveu: mas era preciso que eu
tomasse consciência disso. Eu utilizo a palavra crueldade no sentido de apetite
de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de
turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor exterior à
necessidade inelutável sobre a qual a vida não saberia se manifestar; quer-se o
bem, ele é o resultado de um ato, o mal é permanente. Quando o deus escondido
cria obedece à necessidade cruel da criação que ele impôs a si mesmo, e ele não
pode não criar, portanto, não admitir no centro do turbilhão voluntário do bem
um núcleo de mal cada vez mais reduzido, cada vez mais comido. E o teatro, no
sentido de criação contínua, de inteira ação mágica, obedece a essa necessidade.
Uma peça em que não houvesse essa vontade, esse apetite cego de vida e capaz de
passar sobre tudo, visível em cada gesto e em cada ato, e no lado transcendente
da ação, seria uma peça inútil e falha.
[1] O destinatário é Jean Paulhan
Antonin Artaud. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. p. 567. (Trad.: Vinícius N. Honesko)
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