segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Segunda carta sobre a crueldade



Paris, 14 de novembro de 1932.


A J.P.[1]

Caro amigo,

A crueldade não se sobrepôs ao meu pensamento; nele ela sempre viveu: mas era preciso que eu tomasse consciência disso. Eu utilizo a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor exterior à necessidade inelutável sobre a qual a vida não saberia se manifestar; quer-se o bem, ele é o resultado de um ato, o mal é permanente. Quando o deus escondido cria obedece à necessidade cruel da criação que ele impôs a si mesmo, e ele não pode não criar, portanto, não admitir no centro do turbilhão voluntário do bem um núcleo de mal cada vez mais reduzido, cada vez mais comido. E o teatro, no sentido de criação contínua, de inteira ação mágica, obedece a essa necessidade. Uma peça em que não houvesse essa vontade, esse apetite cego de vida e capaz de passar sobre tudo, visível em cada gesto e em cada ato, e no lado transcendente da ação, seria uma peça inútil e falha.

Antonin Artaud 
 
[1] O destinatário é Jean Paulhan

Antonin Artaud. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. p. 567. (Trad.: Vinícius N. Honesko)


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