Em um jantar próximo ao Campo Zan Degolà, em Veneza, certa vez ouvi de um filósofo que um dos lugares imperdíveis de se visitar era a Igreja de San Salvador. Uma tradição lendária conta que as origens dessa igreja remontam ao século VII, e que a história de sua construção estaria ligada a um sonho do então bispo São Magno. De acordo com essa tradição, o próprio Cristo teria aparecido no sonho do bispo para indicar-lhe o lugar preciso da edificação de uma igreja que deveria ser dedicada a ele, o salvador do Mundo. Ainda que o meu companheiro de jantar sempre dissesse que as igrejas mais bonitas do mundo estavam em Veneza, a indicação de San Salvador não se deu especificamente pela sua beleza como um todo (digo que não era das mais lindas da cidade), mas pela beleza específica de uma tela que lá se encontra: a Annunciazione, de Tiziano.
Num fim de tarde qualquer, talvez alguns dias depois do jantar, fui visitar a igreja. Entrei, corri os olhos pela nave central, vi vários fiéis (sempre idosos) que se preparavam para a missa e, discretamente, procurei pelo quadro. Quando dele me aproximei, assustei-me com as dimensões: era muito maior do que eu imaginava. Parei diante daquele que, realmente, era um dos mais belos Tiziano que havia visto e fiquei procurando pela assinatura, uma vez que, no mesmo jantar, o filósofo me contara algo interessante sobre o quadro. Dissera que quando Tiziano - à época da pintura da Annuciazione já contava uns bons 75 anos - terminou esse quadro olhou para ele e, ao invés de assiná-lo com o seu tradicional "Titianvs fecit" (feito por Tiziano), pôs fim à obra com um "Titianvs fecit fecit". O reforço do fazer na assinatura teria se dado justamente porque o pintor acabara por considerar aquela como a sua obra prima. É certo que o Tiziano da Annunciazione já não se enquadrava nos esquemas pictórios de seus contemporâneos (e algumas teses são levantadas: a senilidade e as ideias religiosas que não estavam em pleno consenso com as propostas da Igreja e da contrarreforma em curso). Não são mais as imagens plenas de um cromatismo vibrante e com delineamentos precisos, mas em tonalidades de ocre, um pouco obscuras e com traços rápidos e imprecisos. E é interessante que no período final de sua vida ele tenha tido a inspiração para decidir qual a sua obra prima.
A despeito da beleza do quadro, e ainda diante dele, comecei a pensar em toda a configuração mítico-narrativa tanto da história bíblica quanto daquela que diz respeito à fundação da igreja. Ali, dentro de San Salvador, eu me indagava sobre as relações que podia fazer com as imagens que foram criadas a partir do episódio bíblico da anunciação: o trecho do evangelho de Lucas em que o anjo Gabriel é enviado por Deus para anunciar a Maria que ela iria dar à luz o Filho do Altíssimo. O espanto com o qual Maria diz que isso não seria possível, pois não conhecia homem, é rebatido pelo anjo com a afirmação de que o Espírito Santo viria sobre ela e lhe cobriria com sua sombra, e daí a filiação divina do Cristo. Lucas, no entanto - e essa omissão me deixa curioso -, não fala nada sobre aceitação do esposo da virgem, José. É no evangelho de Mateus que lemos como José, ao saber da gravidez da esposa com quem ainda não havia tido relações sexuais, resolve não denunciá-la publicamente (fato que a ela acarretaria a pena de morte), mas repudiá-la em segredo até decidir que atitude tomar. Nesse período, o anjo do senhor teria aparecido para José durante um sonho para lhe contar a verdadeira história da gravidez e também o projeto divino que estava em questão: o nascimento do filho de Deus concebido pelo Espírito Santo. José, portanto, de algum modo interpretou seu sonho de um modo a agir em favor do nascimento do salvador do mundo; e, séculos mais tarde, também o bispo S. Magno interpretaria seu sonho, com o mesmo salvador do mundo, fazendo algo, isto é, construindo a igreja onde me encontrava naquele momento. De outro modo, Joseph fecit, Magnum fecit e Titianus fecit fecit. Diante de um sonho, era preciso fazer algo.
Hoje, já alguns anos depois desses eventos, comecei a ler um texto muito interessante que me fez imediatamente pensar em toda essa história (tanto nas tradições de narrativas oníricas, quanto nas minhas passagens por Veneza). Trata-se do primeiro escrito publicado de Michel Foucault: a introdução ao livro "Sonho e Existência", do psiquiatra suiço Ludwig Binswanger. O jovem filósofo, que à época, 1954, contava 28 anos, começa o prefácio alegando que, ao contrário do que acontece com prefácios, não pretende traçar o caminho feito por Binswanger no livro, mas apresentar uma forma de análise que dê condições para entender o que estava em jogo no livro que apresentava. O jovem Foucault começa seu texto a partir de uma coincidência - o mesmo ano de publicação, 1900, de duas fontes importantes de Binswanger: A interpretação dos sonhos, de Freud, e as Investigações fenomenológicas, de Husserl - e, então, procede à confecção do texto que pretende situar a obra do psiquiatra bem como exibir ideias originais, como que no papel de jovem pesquisador que pretende expor-se ao público.
Talvez um ponto chave do texto de Foucault seja aquele no qual bota em questão o método de interpretação freudiano dos sonhos. Ele afirma que em Freud "a linguagem do sonho é analisada somente na sua função semântica; a análise freudiana deixa na sombra sua estrutura morfológica e sintática. A distância entre a significação e a imagem apenas é preenchida na interpretação analítica por um excedente de sentido; a imagem na sua plenitude é determinada por sobredeterminação. A dimensão propriamente imaginativa da expressão significativa é inteiramente omitida." Isto é, Freud teria desconsiderado as leis próprias do mundo imaginário e suas estruturas específicas, já que imagem (onírica, nesse caso) é mais do que o cumprimento imediato do sentido, e as leis de sua formação não são exatamente significativas, como as leis do mundo não são decretos de uma vontade (uma vontade divina). Ou seja, com Freud uma verdade anteciparia a significação daquela imagem da seguinte maneira: sobre o divã as imagens oníricas do paciente irão esbarrar na sua interpretação - na palavra - que exibiria sempre uma espécie de restauração de um estado arcaico anterior, de um desejo originário (cristalizado no fantasma do trauma originário - o qual, na leitura que Foucault faz de Freud, não seria uma emanação das imagens analisadas, mas um elemento exterior a elas e que para elas conferiria significação). Diz Foucault: "Freud fez habitar o mundo do imaginário com o Desejo assim como a metafísica clássica tinha feito habitar o mundo da física pelo querer e pelo entendimento divinos: teologia das significações na qual a verdade se antecipa em relação à formulação e a constitui inteiramente." Em Freud, portanto, a análise dos sonhos seria pautada por um critério externo ao movimento do sonho, de modo a nunca conseguir dar à imaginação do sujeito (paciente) a possibilidade de desmantelamento dessa imagem originária, desse Desejo que se realizaria no sonho. Em outras palavras, a constante restauração dessa imagem impediria o movimento próprio aos sonhos e à capacidade do próprio sujeito, isto é, o acesso a uma imaginação em movimento, que não se fixa numa única e verdadeira imagem, mas que abre ao sujeito a capacidade criativa (melhor dizendo: o que eu, sujeito, posso fazer com minha imaginação? Como posso desmontar e reconstruir essa imagem de maneira a sentir-me possuidor de liberdade?).
E qual a razão dessas críticas de Foucault a Freud terem me remetido às minhas memórias de Veneza? Por que, hoje, quase 5 anos depois, parei para pensar em toda a trama desses eventos? Cogitei várias respostas: talvez tenha sido porque, ao ler Foucault, comecei a me indagar sobre as minhas possibilidades imaginativas (sobre de que modo, marcados como estamos pelos estereótipos psicanalíticos depois de mais de 100 anos, parece que nos tornamos incapazes de compreender nossas imagens de uma outra maneira que não aquela atrelada à simbologia da fixidez, à cristalização de fantasmas); talvez, como bom ex-religioso, por ter, diante dessas lembranças, refletido sobre a questão dos sonhos daqueles personagens histórico-míticos: isto é, como os sonhos de S. Magno e José (e, talvez, até mesmo o Tiziano tenha se deixado levar pelas imagens oníricas para compor de um modo novo no fim da vida - e há quem diga que o último Tiziano já é precursor de certo expressionismo ao modo Kokoschka), mais do que os colocarem defronte aos seus fantasmas originários, levaram-nos à prática de uma ação decisiva para suas vidas, a um ato criativo (claro que não perco de vista a exemplaridade mitológica dessas narrativas bíblicas ou episcopais); talvez, também, tenha sido apenas ao ler na introdução de Foucault o nome Ludwig Binswanger, cujas iniciais marcavam as bases dos grandes talheres de prata com os quais comíamos naquele jantar em Veneza. De fato, a anfitriã da noite havia acabado de desenvolver um trabalho de história da psiquiatria e como um dos centros do seu trabalho estava a obra de Binswanger. Contou-me ela que, certa vez, numa visita que fizera à casa de Binswanger em Kreuzlingen, ganhara de presente de um descendente do médico aquele jogo de talheres. Ora, para mim era curioso pensar que estava comendo em talheres com os quais certamente tinham comido Binswanger e seus amigos - dentre os quais o próprio Freud, Martin Heidegger, Martin Buber ou mesmo um de seus ricos pacientes, Aby Warburg.
Em meio a tantas referências, a tantos acasos, não tinha como me furtar a um ligeiro sorriso de satisfação: eu, um jovem interiorano, comendo, como num sonho, com talheres que já estiveram em bocas de personalidades que marcaram o século XX. Mas, como a vida, isso era apenas mais um acaso. O outro convidado daquele jantar, o filósofo, talvez também acabou pensando em tantos acasos que aconteciam naquele instante, pois também ele não sabia que o jogo de talheres pertencera a Binswanger e, de fato, toda sua produção intelectual tinha como referentes, em maior ou menor medida, Freud, Heidegger, Warburg e Foucault. Se fantasmas poderiam existir, na minha imaginação estavam todos ali, naquele jantar próximo ao Campo Zan Degolà.
Em todo esse contexto a questão imaginativa da interpretação dos sonhos à qual Foucault faz menção está plenamente em curso nessas minhas divagações sobre jantares, igrejas, sonhos, pinturas e ideias. Como colocar tudo em movimento, como tentar jogar com outros tempos e, sobretudo, com as imagens que preenchem a memória? Tudo é uma questão de como montar essas imagens e reconfigurá-las numa nova constelação de sentidos para o presente (e nada mais warburguiano do que isso).
Acho que o modo apaixonado com o qual o filósofo me falava da Annunciazione de Tiziano pode ter suscitado em mim, ainda em San Salvador, esses pensamentos sobre como os sonhos podem fazer mover as paixões dos homens. Trazer aqui, à consciência, toda trama desses acontecimentos passados não me faz compreendê-los mais ou melhor; de fato, sinto que diante dessas minhas imagens (esses desejos realizados em sonho ou numa viagem), como de qualquer outra imagem (uma obra de arte renascentista ou uma fotografia contemporânea), não posso permanecer parado, como que a fixá-las nos quadros de uma memória inerte, mas que me inquieto, que tento achar outras formas de reagrupá-las, outros critérios a partir dos quais analisá-las. Coloco-me na posição em que o talvez ganhe força, em que as relações - inventadas, criadas - possam ser sempre possíveis, em que eu possa encarar minhas imagens não para as deixar reinar - numa espécie de "é impossível de ser diferente" -, mas para destroná-las e com elas brincar, tal como uma criança o faz com qualquer objeto, numa história que se reinventa a cada instante.
Imagem: Tiziano Vecellio. Annunciazione. Igreja de San Salvador, Veneza. apr. 1560-1565.
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