quarta-feira, 4 de maio de 2011

Mas será o Benedito?! Não, é o Jerônimo...


O último dia 1° de maio foi palco de uma série de eventos interessantes. A começar pelos acontecimentos na cidade Eterna. No feriado laico - talvez um dos últimos na Itália -, tradicionalmente marcado por manifestações e protestos de trabalhadores, Roma acabou sendo inundada por uma onda de peregrinos e fiéis católicos para um esperado evento: a beatificação de João Paulo II. A por mim suposta artimanha compactuada pelo governo Berlusconi e a alta cúpula da Igreja Católica foi pautada justamente pelo ditado que aqui no interior é muito comum: "matar a cobra no ninho". De fato, com o espetáculo da beatificação, os trabalhadores de Roma calaram-se antes mesmo do início de qualquer movimentação. Não se ouviu nada a respeito de protestos contra a situação catastrófica do trabalho na Itália, contra a ridícula reforma Gelmini, em suma, ouvia-se somente um silêncio que só era rompido pelas aclamações de milhões de fiéis cordeiros que acompanharam o showbiz na praça São Pedro.
A beatificação de João Paulo II vem rápida. De fato, a popularidade do ex-papa era tamanha - óbvio que a partir de sua eleição em 78 João Paulo II soube muito bem usar o mundo das imagens em expansão a seu favor - que a velocidade da beatificação não espanta. Seis anos depois de deixar o pontificado ele torna-se beato, bendito para os milhões de católicos espalhados pelo mundo. Mas lembro-me de algumas curiosidades desses últimos anos sobre as quais é interessante divagar. Quando o polonês Karol Wojtyla - único papa não italiano desde o holandês Adriano VI (que foi pontífice em 1522-1523) - morre, em abril de 2005, a mídia já sabia que a sua popularidade estelar iria ser um fardo para seu sucessor, ainda mais porque todas as discussões pré-conclave indicavam que o próximo papa seria Joseph Ratzinger (um alemão ultra-conservador e pouco simpático; ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício; de uma ortodoxia somente mais declarada do que a de João Paulo - que soube muito bem camuflar suas posições sob holofotes da mídia -; e que, em 1985, impôs voto de silêncio a Leonardo Boff por aqui). Quando do habemus papam, acabamos vendo o óbvio: Ratzinger tinha sido eleito o novo papa.
Depois de tantos alaridos, no momento da benção Urbi et Orbi, os jornalistas brasileiros, durante a trasmissão ao vivo da eleição, começaram a titubear diante do nome escolhido por Ratzinger: Benedictus XVI. E a discussão era: Benedito XVI ou Bento XVI? O nome do novo papa mudava conforme o canal escolhido para assistir ao ato. Foi algo curioso e engraçado. Claro que brincadeiras com a famosa expressão brasileira "Mas será o Benedito!?" não faltaram à época. Também é claro que logo a tradução oficial para o português acabou sendo Bento XVI. Evocar São Bento, suas "Regula Benedicti", seu preceito "Ora et labora", é muito mais interessante para a instituição igreja do que remeter ao negro São Benedito, capuchinho, descendente de escravos, um mero cozinheiro que viveu e morreu enclausurado na Palermo do século XVI. Aliás, é bom lembrar que nessa mesma Sicília do século XVI - ilha que então se encontrava sob domínio dos reis católicos espanhóis Fernando e Isabel - chegam os emissários do Santo Ofício - os antecessores de Bento XVI - para colocarem a inquisição na velocidade com qual havia cruzado toda a Andaluzia.
A "santa inquisição", que já há tempos assolava as terras europeias, tomou, como se sabe, dimensões outras na península Ibérica nos séculos XV e XVI e, com a dominação da Sicília, também nas terras de São Benedito. A finalidade última de perseguir, apreender e tentar a condenação dos heréticos no seio da Igreja me faz irremediavelmente lembrar do outro evento desse 1° de maio: a perseguição e morte de Osama bin Laden. Claro que a conexão entre a "Guerra ao Terror", proveniente do governo Bush, e a "Santa Inquisição" já foi levantada várias vezes. Todo o debate sobre a questão do terror, da separação entre os "maus" e os "bons", da contraposição "Ocidente"/"Oriente" pode e já é colocada em vários planos: seja nas ciências sociais, na filosofia, nas relações internacionais, a discussão está já há um bom tempo em cena. No entanto, é uma questão obscena que me faz pensar agora, qual seja, o nome da operação militar norte-americana que chegou a Abbottabad e matou a cobra no ninho: Jerônimo.
Qual a razão para a escolha do nome? Quem será que nomeou a operação? Enfim, não tive como me furtar de várias analogias, as quais por vezes eram cômicas. A primeira delas, pouco interessante, era imaginar que o tal nome, "Geronimo", pudesse ser o de alguma sigla secreta dos corredores do Pentágono ou da CIA. A segunda, também de pouco agrado, seria com base na ideia do líder apache Gerônimo (e, de fato, esta seria plausível... ainda que, insistir no massacre dos indígenas não me parecesse parte do "politicamente correto" do governo norte-americano). Uma outra me veio juntamente com a imagem da barba do terrorista. Meio como o Flávio de Carvalho no seu Ossos do Mundo, pensei que algum comandante da SEAL poderia ter visto na barba do Osama algo similar à barba de alguma representação de São Jerônimo que o tal comandante, numa viagem de férias, teria por acaso visto em algum museu. Ou mesmo, poderia ele ter ido à National Gallery of Art de Washington e visto o São Jerônimo lendo, que Giovanni Bellini pintou em 1505. Enfim, inventei para mim mesmo uma série de histórias sobre a operação.
Pensando nessas referências, acabei me lembrando de um outro São Jerônimo lendo, do mesmo Bellini. Enquanto este, de 1480 e exposto na Galleria degli Uffizi de Florença, mostra o santo sentado à direita do quadro, como que de costas para o Oriente e de frente para o Ocidente, o de 1505 e exposto na capital norte-americana, mostra o santo sentado à esquerda do quadro, como que de costas para o Ocidente e de frente para o Oriente. Curioso como essas associações livres me fazem imaginar as mais variadas conexões. Aliás, não consegui deixar de pensar que o pai da "vulgata", tradução que fora publicada pouco depois da oficialização do cristianismo pelo Império Romano, em algumas representações que dele são feitas, realmente muito se assemelha a Osama bin Laden.
O negro e mouro São Benedito - que, talvez, nunca tenha visto as imagens de Bellini - me lembrou agora do negro e "mouro" Barack Obama - que, com certeza, tem conhecimento das belas imagens do veneziano. No mesmo dia em que Roma via-se quieta diante da efusão de fé de católicos ansiosos por dizer "bendito João Paulo II!", o presidente norte-americano, longe da península itálica, mas perto do Bellini de 1505, vai à TV fazer o anúncio da morte de bin Laden. Cumprindo uma promessa de campanha, Obama sai do Salão Oval da Casa Branca diretamente para os microfones. O negro e "mouro" Obama fala ao mundo que a operação Jerônimo tinha tido êxito: sim, matamos Bin Laden! (o "yes, we can!" estava reverberando...)
Mas, toda a movimentação frenética do 1° de maio fazia com que eu me imaginasse de novo na terra dos reis católicos Fernando e Isabel, mais especificamente no Prado, diante da obra de um outro Jerônimo, este, o flamengo Bosch. Todos os espetáculos - a beatificação de João Paulo II, o anúncio da morte de bin Laden, o recente casamento do príncipe inglês -, que bombardearam minhas retinas nos últimos dias, só me faziam pensar no Jardim das delícias terrestres de Hieronimus Bosch. A força das representações luxuriantes do painel central do tríptico são hoje como que refletidas nas imagens do fim de semana.
Revendo, no entanto, a imagem de Obama deixando o Salão Oval da Casa Branca para dar a notícia, lembrei de um outro Palácio de uma república, a partir do qual várias decisões do "Ocidente" foram tomadas em relação ao "Oriente". Trata-se do Palazzo Ducale di Venezia, curiosamente república na qual morava o autor daquele quadro que talvez o chefe da operação Jerônimo tenha visto na National Gallery de Washington. É muito provável que o chefe da SEAL não tenha entrado no Palazzo Ducale, já que se o tivesse feito talvez a operação de caça a bin Laden pudesse ter tido um outro nome. Explico: ali há uma outra representação de São Jerônimo feita pelo Jerônimo flamengo, o Bosch. Assim como o quadro de Bellini, o tríptico de Bosch que adorna uma das salas do palácio veneziano e em cujo painel central encontramos a imagem de São Jerônimo em oração, também foi pintado em 1505. Porém, há uma diferença crucial entre o São Jerônimo de Bellini e o de Bosch: neste o santo é representado sem a barba e, portanto, em nada se parece com o chefe da Al Quaeda. Da sede do governo veneziano, a porta de entrada do Oriente no Ocidente, não saiam imagens para a operação de entrada do Ocidente no Oriente. Porém, como que a mostrar a "ideia de globalização", é da mesma Veneza que saiu a imagem do Jerônimo presente em Washington e que talvez tenha servido de parâmetro para o chefe da SEAL, ou mesmo para o negro e "mouro" Obama.
Mas agora volto a olhar para a Casa Branca, a sede do "império" que nasceu com o capitalismo do século XX, e não escapo da imagem de uma outra sede de império: Roma. E aí o 1° de maio vem à tona novamente. Ali ninguém então grita por melhorias no trabalho, por condições de pesquisa nas universidades italianas; o coro é uníssono: "beato Giovanni Paolo!". Todos bem-dizem o ex-papa, todos clamam pelas intercessões desse novo benedictus. "Bento" agora não era só para a pouco emblemática figura do ex-prefeito do "Santo Ofício" e atual pontífice, mas para o pop-star João Paulo II. Assim, para o 1° de maio de 2011 da capital do Império passado, não haveria mesmo como gritar em protesto pois quem vai a um show para protestar?
Mas e o 1° de maio na capital do Império atual? Ali não se falava abertamente de Bento, mas de Jerônimo. O presidente, negro e "mouro" como o Benedito (Bento) siciliano, falava do alto de seu palco para o mundo e também fazia do dia do trabalho um dia para se bendizer, já que em nome da "Democracia" (e lembremos que "em nome de" é uma certa forma de "bendizer" o nome. Benedito, Benedito...) é que continuava a guerra ao terror.
Talvez o terror que assola este grande palco que é o mundo contemporâneo possa ser visto em meio a todas as peças que nele são encenadas como o único elemento que fica, que permanece quase que imutável diante do emaranhado de nomes e "operações". O terror que não cala, que, tal como o outro tríptico impressionante de Bosch - As tentações de Santo Antão -, choca o olhar e dá uma sensação de repugnância. Hoje podemos ver que nos interstícios entre as perseguições do Santo Ofício dos séculos XV ao XVII e as operações de desmantelamento de grupos terroristas, entre as lutas impetradas por melhores condições de vida e as aclamações de ídolos do mundo do showbiz, não há nada além de um vazio terrificante, o qual apenas mostra que a humanidade (hoje pouco importa se do dito "Ocidente" ou do dito "Oriente") apenas assiste impassível sua derrocada sem entender nem mesmo o porquê dos nomes, sem se interessar por sua "história" e por seus rumos. Assistimos aos shows dos "Jerônimos" ou dos "Beneditos", dos papas e dos presidentes, mas nos foi interdita a subida no palco do mundo. A intervenção na peça encenada, o agir no mundo nos são mostrados como verdadeiros "impossíveis". Hoje parece que tudo não passa de uma questão de intercessão, enquanto que uma intersecção no mundo é como que um sonho em vão.

Imagem: Hieronimus Bosch. Detalhe do painel central do tríptico dos Eremitas de 1505. Palazzo Ducale, Venezia.

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