quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A velha e os grãos de areia


"Raconter les choses comme elles se sont vraiment produites, c'est tellement moche que ça devrait être interdit. Je t'invente une histoire, c'est la moindre des politesses". Ouvindo essas palavras da boca de um cigano que dizia ser filho do lendário prince des tziganes (e essa ascendência familiar pode muito bem estar ligada a tal modo de contar), ele caiu num sono cujas imagens dos sonhos lhe pareciam muito mais verdadeiras do que qualquer vista que tivera ainda há pouco da cidade em que estava hospedado. Voltou a se concentrar na leitura daquele conto sobre o rio. Não se lembrava quantas vezes já tinha lido e relido aquela história. Um trecho dessa carta (o conto era em forma de carta), em que o remetente acabara de entrar numa igrejinha abandonada de uma vila do interior através de uma porta sobre a qual estava escrito em um painel "Escolha vida futura. Entrada livre", era para ele muito marcante. No conto o personagem (fictício? verdadeiro? esta carta fora enviada?) é acolhido por uma velhinha toda vestida de preto e de gestos e sorrisos enigmáticos. Já dentro do lugar de escolha de vida futura, começa a se questionar sobre o passado. A certa altura o tal remetente diz para sua destinatária que o passado é feito de momentos e que cada um destes é como um minúsculo grão de areia cuja apreensão individual pode ser fácil, mas cuja reunião com os demais grãos é impossível.
O conto continuava, mas agora ele tinha se lançado em um dos grãos. Lembrava da primeira vez em que lera o conto, num escritório iluminado, numa tarde ensolarada de um sábado de janeiro, suado sobre um colchão colocado ao lado da estante dos livros. Agora para ele o que era lembrança também era presente, e achava que isso também estava no conto - mas não sabia mais, afinal havia tanto tempo que o lera. Não podia conferir isso agora, na nova leitura que estava fazendo? Não podia folhear o livro e tentar ver se essa ideia da lembrança presente estava ou não no livro? Porém, talvez apenas estivesse sonhando em ler; talvez seu sonho fosse somente a lembrança do conto; talvez as imagens que acreditava tão verdadeiras pudessem ser apenas uma fagulha mentirosa sobre uma sensação de prazer daquela tarde quente de janeiro; talvez o sonho pudesse ser um conto ou uma carta já escrita ou que desejasse escrever; ou talvez estivesse sendo minimamente educado como o cigano.
Inventava sua história de grãos de areia perdidos e, ao contrário do que pensava o remetente daquela carta-conto, tentava agrupá-los. Via que não era tarefa fácil, porém não desistia. Pensava que escrever a própria história com um pouco de invenção poderia ser uma saída para tentar fazer mais cedo o que sempre deixou para fazer mais tarde. Talvez pudesse ser assim, mas não confiava nessa história; aliás, não confiava em nenhuma história, nem nas que lhe eram contadas nem nas que contava para si próprio. Agora sabia que os grãos de areia eram mesmo únicos e que a rocha da qual provieram, depois de milhões de anos de desgaste provocados pelas águas do mar, era tão somente pré-história e estava antes da sua imaginação. Não havia uma rocha de grãos de areia, haviam os grãos e estes bastavam. O mar já fizera seu trabalho agora cabia a ele e apenas a ele remexer seus momentos, mesmo que lhe custasse o preço da verdade; mesmo que tivesse que concordar forçosamente com o sujeito que escrevera a carta que o inquietava.
Mas lembrou-se novamente do cigano e talvez isso o confortava. Não havia razão para pensar numa rocha remontada por grãos de areia, não havia motivo para tentar uma ideia de verdade sobre seus momentos, não precisava pensar na impossibilidade de reagrupar os momentos passados. Bastava-lhe encarar a partir do seu presente os falseamentos de cada um dos grãos em particular, e a lógica do cigano poderia ser uma arma para as tentações da verdade universal ou individual. Aliás, deixava-se dominar pelo sonho e via que até mesmo tal lógica tinha seu non sense, já que não havia como proibir os contos sobre como as coisas verdadeiramente foram, porque jamais as coisas foram verdadeiramente, porque os momentos na lembrança e contados sempre são sujeitos à bagunça que reina entre o sonho e a vigília, entre a consciência e a inconsciência, entre o engano e a saudade. Agora não lhe restava outra escolha senão adentrar o recinto cuja porta lhe propunha uma escolha livre e, lá dentro, encarar a enigmática velha, que talvez seja quem lhe dê um sorriso como bilhete de entrada para sua própria vida presente.

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