segunda-feira, 15 de julho de 2013

A eleição não é a democracia

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Jacques Rancière em entrevista concedida a Eric Aeschimann


Le Nouvel Observateur: A eleição presidencial geralmente é apresentada como o ponto culminante da vida democrática francesa. Não é o seu ponto de vista. Por quê?
Jacques Rancière: No seu princípio, como na sua origem histórica, a representação é o contrário da democracia. A democracia é fundada sobre a ideia de uma igual competência de todos. E seu modo normal de designação é o sorteio, tal como se praticava em Atenas, com a finalidade de impedir a monopolização do poder por aqueles que o desejam.
A representação é um princípio oligárquico: aqueles que desse modo são associados ao poder representam não uma população, mas o estatuto ou a competência que fundam sua autoridade sobre tal população: o nascimento, a riqueza, o saber ou outros.
Nosso sistema eleitoral é um compromisso histórico entre poder oligárquico e poder de todos: os representantes das potências estabelecidas tornaram-se os representantes do povo, mas, de modo contrário, o povo democrático delega seu poder a uma classe política à qual é creditado um conhecimento particular dos assuntos comuns e o exercício do poder. Os tipos de eleição e as circunstâncias fazem pesar mais ou menos a balança entre os dois.
A eleição de um presidente como encarnação direta do povo foi inventada em 1848, contra o povo das barricadas e dos clubes populares, e reinventada por De Gaulle para dar um “guia” a um povo demasiado turbulento. Longe de ser a coroação da vida democrática, ela é o ponto extremo da desapropriação eleitoral do poder popular em benefício dos representantes de uma classe de políticos, cujas frações opostas partilham por sua vez o poder dos “competentes”.  
Não estariam tomando ciência das insuficiências do sistema representativo tanto François Hollande, ao prometer ser um presidente “normal”, quanto Nicolas Sarkozy, ao se propor a “dar a palavra ao povo”?
Um presidente “normal” na 5ª República é um presidente que concentra um número anormal de poderes. Hollande será talvez um presidente modesto. Mas ele será a encarnação suprema de um poder do povo, legitimado para aplicar os programas definidos por pequenos grupos de especialistas “competentes” e por uma Internacional de banqueiros e chefes de Estado.
Quanto a Nicolas Sarkozy, sua declaração é francamente cômica: por princípio, a função presidencial é a de tornar inútil a palavra do povo, uma vez que este apenas pode escolher silenciosamente, uma vez a cada cinco anos, aquele que vai falar em seu lugar.     
O senhor coloca a campanha de Jean-Luc Mélenchon no mesmo saco?
A operação de Mélenchon consiste em ocupar uma posição marginal que é ligada à lógica do sistema: aquela do partido que está ao mesmo tempo dentro e fora. Essa posição foi durante muito tempo a do Partido comunista. O Front national a tal posição se emparelhou e Mélenchon tenta por sua vez retomá-la. Mas no caso do PCF, essa posição se apoiava sobre um sistema eletivo de contra-poderes que lhe permitiam ter uma agenda distinta dos compromissos eleitorais.
Já para Mélenchon, como para Le Pen, trata-se apenas de explorar essa posição no quadro do jogo eleitoral da opinião. Honestamente, não penso que haja grandes coisas a esperar. Uma verdadeira campanha de esquerda seria uma denúncia da própria função presidencial. E uma esquerda radical supõe a criação de um espaço autônomo, com instituições e formas de discussão e de ação não dependentes das agendas oficiais.   
Os comentadores políticos aproximam propositalmente Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon ao acusá-los de populismo. O paralelismo tem fundamendo?
A noção de populismo é feita para amalgamar todas as formas de política que se opõem ao poder das competências autodeclaradas e para trazer essas resistências a uma mesma imagem: aquela do povo atrasado e ignorante, leia-se, hediondo e brutal. Invocam-se os progroms, as grandes demonstrações nazistas e a psicologia das massas, ao modo de Gustave Le Bon, para identificar poder do povo e explosão de um bando racista e xenófobo.
Mas onde vemos hoje as massas em cólera destruir comércios de magrebinos ou perseguir os negros? Se existe xenofobia na França, ela não vem do povo, mas sim do Estado, uma vez que ele se empenha numa perseguição que coloca os estrangeiros em situação de precariedade. Estamos lidando com um racismo de cima.
 
Não há então uma dimensão democrática nas eleições gerais que pontuam a vida das sociedades modernas?
O sufrágio universal é um compromisso entre os princípios oligárquicos e democráticos. Nossos regimes oligárquicos têm, apesar de tudo, necessidade de uma justificação igualitária. Mesmo que seja mínima, esse reconhecimento do poder de todos faz com que, talvez, o sufrágio leve a decisões que vão ao encontro da lógica das competências.
Em 2005, o Tratado constitucional europeu foi lido, comentado e analisado; uma cultura jurídica partilhada se desdobrou na internet, os incompetentes afirmaram certa competência e o texto foi rejeitado. Mas sabemos o que aconteceu! Finalemente, o tratado foi ratificado sem ser submetido ao povo, em nome do argumento: a Europa é um assunto para gente competente e por isso não saberíamos confiar seu destino à sorte do sufrágio universal.    
Onde se situa então o espaço possível de uma “política” no sentido em que o senhor a entende?
O Ato político fundamental é a manifestação do poder daqueles que não têm nenhuma titularidade para exercer o poder. Nos últimos tempos, os movimentos dos “indignados” e a ocupação de Wall Street foram, depois da “Primavera Árabe”, seus exemplos mais interessantes.
Tais movimentos lembraram que a democracia é viva desde que ela invente suas próprias formas de expressão, e que ela una materialmente um povo que não é mais decupado em opiniões, grupos sociais ou corporações, mas que é o povo de todos e de não interessa quem. Aí se encontra a diferença entre a gestão – que organiza relações sociais nas quais cada um está no seu lugar – e a política – que reconfigura a distribuição dos lugares.
É por isso que o ato político sempre se acompanha da ocupação de um espaço que desviamos de sua função social para dele fazer um lugar político: ontem a universidade ou a usina, hoje a rua, a praça ou os tribunais. É claro que esses movimentos não foram capazes de durar até dar a essa autonomia popular formas políticas: formas de vida, de organização e de pensamento em ruptura com a ordem dominante. Reencontrar a confiança em tal capacidade é uma obra de longa duração.   
O senhor irá votar?
Não sou desses que dizem que a eleição é apenas um simulacro e que jamais se deve votar. Há circunstâncias em que isso tem um sentido de reafirmação desse poder “formal”. Mas a eleição presidencial é a forma extrema do confisco do poder do povo em seu nome próprio. E pertenço a uma geração nascida na política do tempo de Guy Mollet e para quem a história da esquerda é aquela de uma traição perpétua. Então não, não creio que irei votar. 

Entrevista publicada no Le Nouvel Observateur, em 18/04/2012 (às vésperas da eleição presidencial na França). Disponível em: http://bibliobs.nouvelobs.com/tranches-de-campagne/20120418.OBS6504/jacques-ranciere-l-election-ce-n-est-pas-la-democratie.html (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

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