segunda-feira, 15 de julho de 2013

O fabricante de espelhos


Primo Levi

Timoteo, seu pai, e todos os seus ascendentes até os tempos mais remotos sempre fabricaram espelhos. Em uma caixa de mantimentos [madia] da sua casa ainda se conservam espelhos de cobre esverdeados pela oxidação, e espelhos de prata enegrecidos por séculos de manipulações humanas; outros de cristal, emoldurados com marfim ou madeira de lei. Morto seu pai, Timoteo sentiu-se livre dos vínculos da tradição; continuou a forjar espelhos de modo profissional, os quais, no mais, vendia com lucro em toda a região, mas voltou a meditar sobre um velho projeto.
Desde moço, escondido do pai e do avô, havia transgredido as regras do ofício. De dia, nas horas de trabalho, como aprendiz disciplinado, fazia os mesmos enfadonhos espelhos planos, transparentes, incolores, aqueles que, como se diz, dão a imagem verídica (mas virtual) do mundo, em especial aquelas dos rostos humanos. De noite, quando ninguém o vigiava, confeccionava espelhos diversos. O que faz um espelho? "Reflete", como uma mente humana; mas os espelhos usuais obedecem a uma lei física simples e inexorável; refletem como uma mente rígida, obsessiva, que pretende acolher em si a realidade do mundo: como se existisse uma só! Os espelhos secretos de Timoteo eram mais versáteis. 
Havia os de vidro colorido, estriado, leitoso: refletiam um mundo mais vermelho ou mais verde do que o verdadeiro, ou sarapintado, ou com contornos delicadamente esfumaçados, de modo que os objetos ou as pessoas pareciam aglomerar-se como nuvens. Havia os múltiplos, feitos de lâminas ou lascas engenhosamente anguladas: estes esmagavam a imagem, reduziam-na a um mosaico gracioso porém indecifrável. Um dispositivo, que havia custado semanas de trabalho a Timoteo, invertia o alto com o baixo, e a direita com a esquerda; quem olhava para ele, na primeira vez, provava uma vertigem intensa, mas, se insistisse por algumas horas, acabava habituando-se com o mundo invertido e, então, tinha náuseas diante do mundo que de maneira inesperada se endireitava. Um outro espelho era feito de três paineis e quem nele se olhava via o seu rosto multiplicado por três: Timoteo o deu de presente para o pároco para que, na hora do catecismo, fizesse as crianças entender o mistério da Trindade.
Havia espelhos que engrandeciam, como tolamente se diz que os olhos dos bois fazem, e outros que diminuíam, ou faziam aparecer as coisas infinitamente distantes; em alguns te vias esguio, em outros atarracado e baixo como um Buda. Para dar um presente a Agata, Timoteo produziu um espelho de armário a partir de uma placa de vidro ligeiramente ondulada, mas obteve um resultado que não tinha previsto. Se o sujeito se olhava sem se mover, a imagem mostrava apenas leves deformações; se, ao contrário, se mexia para cima e para baixo, flexionando um pouco os joelhos ou levantando-se na ponta dos pés, a barriga e o peito refluíam impetuosamente para cima e para baixo. Agata se viu transformada então em uma mulher-cegonha, com as costas, seios e ventre comprimidos em um pacote equilibrado sobre duas longuíssimas pernas ressequidas; e, pouco depois, em um monstro com o colo filiforme ao qual era dependurado todo o resto, uma pilha de hérnias esmagadas e achatadas como barro do oleiro que cede com o próprio peso. A história acabou mal. Agata rompeu o espelho e o namoro, e Timoteo afligiu-se, mas não tanto.
Tinha em mente um projeto mais ambicioso. Testou, guardando extremo segredo, vários tipos de vidro e de revestimentos metálicos [argentatura], submeteu os seus espelhos a campos elétricos, irradiou-os com lâmpadas que mandara trazer de países distantes, até que lhe pareceu estar próximo do seu objetivo, que era obter um espelho metafísico. Um Espemet, isto é, um espelho metafísico, não obedece as leis da óptica, mas reproduz a tua imagem tal qual é vista por quem está diante de ti: a ideia era velha, já Esopo a havia pensado e quiçá quantos outros antes e depois dele, mas Timoteo havia sido o primeiro a realizá-la.
Os Espemet de Timoteo eram tão grandes quanto um cartão de visitas, flexíveis e adesivos: de fato, eram destinados a ser aplicados sobre a fronte. Timoteo testou o primeiro exemplar colando-o numa parede, mas não viu nada de especial: a sua costumeira imagem, de trinta e poucos anos e já um pouco calva, com ar arguto, sonhadora e um pouco desleixada: mas isso pois um muro não te vê, não guarda imagens de ti. Preparou umas vinte amostras e lhe pareceu justo oferecer a primeira a Agata, com quem tinha conservado uma relação tempestuosa, para pedir perdão pelo episódio do espelho ondulado.
Agata o recebeu de maneira fria; escutou as explicações com uma distração ostentada, mas quando Timoteo propôs colar o Espemet na fronte dela, não se fez de rogada: tinha compreendido muito bem, pensou Timoteo. Com efeito, a imagem de si que ele viu, como em uma pequena tela de tv, era pouco lisonjeira. Não era um pouco calvo, mas careca, tinha os lábios entreabertos em um sorriso bobo e no qual transpareciam os dentes apodrecidos (é sim, era do tipo que demandava os cuidados de um dentista), a sua expressão não era sonhadora mas abestalhada, e o seu olhar era muito estranho. Estranho por quê? Não tardou a entender: em um espelho normal, os olhos te olham sempre, naquele, ao contrário, olhavam de modo enviesado para a sua esquerda. Aproximou-se e distanciou-se um pouco: os olhos correram fugindo à direita. Timoteo deixou Agata com sentimentos contrastantes: o experimento havia transcorrido bem, mas se de fato Agata o via assim, o rompimento só podia ser definitivo.
Ofereceu o segundo Espemet para sua mãe, que não pediu explicações. Ele se viu com dezesseis anos, loiro, corado, etéreo e angélico, com os cabelos bem penteados e o nó da gravata à altura justa: como uma lembrancinha dos mortos, pensou consigo mesmo. Nada a ver com as fotografias escolares reencontradas poucos anos antes numa gaveta, que mostravam um rapazinho animado mas intercambiável com a maior parte dos seus colegas.
O terceiro Espemet pertencia a Emma, não havia dúvidas. Timoteo havia passado de Agata a Emma sem grandes traumas. Emma era miúda, preguiçosa, gentil e esperta. Havia ensinado a Timoteo algumas artes sob as cobertas com as quais ele sozinho jamais poderia ter pensado. Era menos inteligente que Agata, mas não tinha as durezas pétreas: Agata-ágata, Timoteo jamais antes tinha se dado conta, os nomes são também algo. Emma não entendia nada do trabalho de Timoteo, mas com frequência batia à porta de seu laboratório e o fitava por horas com olhos encantados. Sobre a fronte lisa de Emma, Timoteo viu um Timoteo maravilhoso. Estava a meio busto e com o torso nu: tinha o tórax harmonioso pelo qual ele sempre sofrera por não ter, um rosto apolíneo com uma densa cabeleira ao redor da qual se entrevia uma guirlanda de louros, um olhar ao mesmo tempo sereno, feliz e rapace. Naquele momento, Timoteo percebeu que amava Emma com um amor intenso, doce e duradouro. 
Distribuiu vários Espemet aos seus amigos mais caros. Notou que nenhuma das imagens coincidiam entre si: em suma, um verdadeiro Timoteo não existia. Notou ainda que o Espemet possuía uma virtude de destaque: fortalecia as amizades antigas e sérias, enfraquecia rapidamente as amizades de ocasião ou conveniência. Entretanto, toda tentativa de dele desfrutar comercialmente faliu: todos os representantes estavam de acordo com relação ao fato de que os clientes satisfeitos pela própria imagem refletida pela fronte de amigos ou parentes eram muito poucos. As vendas teriam sido mesmo muito escassas, mesmo se o preço fosse diminuído pela metade. Timoteo patenteou o Espemet e deu o sangue durante alguns anos no esforço de manter vivo a patente; em vão tentou vendê-la, e, enfim, se resignou e continuou a fabricar espelhos planos, no mais, de qualidade excelente, até a idade da aposentadoria.

1º de novembro de 1985.            


Primo Levi. Il Fabbricante di specchi. In.: L'ultimo natale di guerra. Torino: Einaudi, 2002. pp. 69-73. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)     

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