quinta-feira, 25 de julho de 2013

Metafísica da Revolução


Massimo Cacciari

Lembrar-se ainda de que no termo "revolução", como em "renascimento" ou "reforma", soa a ideia de uma restauratio magna de um passado, o qual se imagina poder constituir-se como a sólida terra por onde avançar, agora parece um exercício erudito em vão. A novitas, o desejo de res novae e verba nova, para além de toda "repetição", invade toda a nossa cultura. Prolongar-se rumo ao futuro [Infuturarsi] aparece como imperativo. Todos anseiam ser pueri aeterni. Já há tempos revolução soa apenas como sinônimo de inovação. Entretanto, as coisas não se colocam assim de modo tão simples. O medo se mistura ao desejo. A busca e a dúvida ao redor do fundamento do "novo" fazem-se sempre mais tormentosas, justamente em relação à irresistível afirmação da sua ideia. Enquanto o "novo" deve "justificar-se", pode apenas "re-converter-se" a um passado, ao menos para explicar de que coisa pretende "secessão". Os plebeus romanos, nas suas secessiones, sabiam bem quem eram os "pais" (os patrícios). Que filho, hoje, ansioso por "inovar", conhece os próprios pais? Que pretendente a parricida participa, hoje, tão intimamente como Brutus, da vida do seu César? Mas o pai sobrevive sempre se não o mata em ti... Ninguém conhecia melhor a história e a razão do seu inimigo do que um Marx ou um Lênin. O simples demolidor[1] [rottamatore] acaba invariavelmente sepulto sob os cascalhos que a história, ou a sorte, por sua conta produz.
Por isso os autênticos revolucionários tenderam a fazer amadurecer o novo regime desde o interior das formas políticas tradicionais. A sua arte foi, de algum modo, maiêutica. O “novo” se exprime, desse modo, como o transpassar do velho, não a afirmação de uma prepotente violência, mas o produto do próprio passado. O “novo” se “justifica” enquanto nova permanência em que as formas dos pais podem finalmente encontrar paz. Assim, os novatores “reformistas” procuram superar o medo que inevitavelmente suscitam: apresentando-se como aqueles que falam e operam com base no autêntico sentido do passado. Variantes “messiânicas” dessa posição são possíveis: então o revolucionário não é apenas quem marca o “transpassar” da época, mas aquele que pretende resgatar-redimir vítimas e injustiças da história ou pré-história transcorrida. Ele se sente responsável em relação a elas; estas são para ele presenças vivas que é necessário escutar e “salvar”. Em todo caso, resulta decisivo a relação com o “tempo de ontem”. Onde tal relação não seja mais reconhecida como essencial, “revolução” acabará por indicar o “natural” salto tecnológico-organizativo no interior do ininterrupto progredir do sempre-igual. Revolução se torna progresso. E as duas ideias se põem juntas.
O quadro, naturalmente, é de todo diferente se acreditarmos que as res novae sejam apenas metamorfoses de “arquétipos” necessários e eternos, ou ainda, de modo oposto, a ocasião que de fato dê a possibilidade à virtude para inventar situações e ordens jamais experimentadas. A cultura moderna parece insistir nessa última perspectiva. Mas Maquiavel docet: os inovadores, os fundadores de “principados novos”, devem conhecer bem os antigos exempla, devem saber bem que os homens caminham “quase sempre pelos caminhos empreendidos por outros”, que “todas as coisas que foram” podem ainda ser. Não se dá uma pura inventio novitatis. O novo se constrói com os tijolos da história – mas transformando-os e forçando-os em formas jamais antes construídas. Nem eterno retorno, nem irrefreável fluxo de desordenadas mutações. O passado, como os astros, faz inclinar a algo, não determina.
Mas toda concebível inovação não pressupõe talvez um “retorno”? Qualquer “salto” é possível apenas se uma energia que obtemos em nós mesmos o faz aparecer necessário. Sem uma “voz” que force a superar as montanhas e aventurar-se em mar aberto, jamais poderemos vencer o medo do “novo”, a violência conservadora da consuetudo. Aqui a ideia moderna de revolução manifesta sua origem teológica. Revolução é, por excelência, a conversio, o retorno a si, o face a face com o próprio rosto, ao ponto de, com angústia, nele provar toda a miséria. Desse tremendo espetáculo a alma traz a força para mudar-se por completo. A conversão a si cria as condições imprescindíveis para mudar mente e coração e querer mudar o mundo segundo a nossa imagem. A secularização de tal ideia comporta o abandono ou o esquecimento do fato de que conversio era concebível apenas como gratia, e que jamais o homem, por si só, teria podido atingir a força necessária para mudar-se tão radicalmente. O desejo de res novae quebrou a “ordem” que o coligava à conversio. Por outro lado, essa “deriva” se anuncia desde a passagem da narração da conversão por antonomásia, aquela de Paulo, até a “confissão” da própria conversão por parte de Agostinho. Um raptus para Paulo; o Senhor não se “insinua” na alma, mas nela irrompe de improviso, agita-a junto com o próprio corpo com inaudita violência. Em Agostinho, ao contrário, a conversio avança com fadiga, entre hesitações, dúvidas, suspensões. É a história de uma verdadeira metanoia, isto é, de uma mutação que interessa essencialmente ao nous, à mente; por certo é o Senhor que chama e que vence, mas o eleito responde porque consegue convencer-se da verdade que a ele se manifesta. Tal decisão captura em si o ser humano na sua integridade, mas a marca dominante é a intelectual-noética – marca de todo estranha na narração evangélica sobre Paulo. A ideia moderna de revolução a seculariza, fazendo da decisão o produto de uma vontade movida somente pela energia do intelecto. Permanece, talvez, a angústia diante das condições do saeculum; mas não se trata da angústia que nos coloca diante de nós mesmos, que nos faz sentir responsáveis em todos os sentidos e que nos força a mudar de vida. O inovador de hoje não prova nenhuma necessidade de conversão; pelo contrário, ele, que se levanta como modelo da “ordem nova”, é a inocente figura futuri[2]. O agostiniano abismo do Si talvez se fechou para sempre sob a louca ideia de uma indefinida “revolução permanente”.        


[1] Trata-se de um neologismo recente. Como antonomásia, faz referência direta ao político do Partido Democrático Italiano Matteo Renzi, prefeito de Florença desde 2009, que, na ânsia por “reestruturação” do seu partido, lançou uma palavra de ordem de “liquidação” dos por ele referidos como seus “obsoletos grupos dirigentes”. (N.T.) 
[2] O autor joga com a expressão presente em Romanos 5; 14, segundo a edição da Vulgata: “sed regnavit mors ab Adam usque ad Moysen etiam in eos, qui non peccaverunt in similitudine praevaricationis Adae, qui est figura futuri” – isto é, segundo a edição brasileira da Bíblia de Jerusalém: “Todavia, a morte imperou desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram de modo semelhante à transgressão de Adão, que é figura daquele que devia vir...”(N.T.)

Texto publicado no dia 07 de maio de 2013, no jornal La Repubblica, na parte R2 Cultura, página 57, com o título Metafisica della Rivoluzione. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Arco do Triunfo, Paris. Escultura denominada La Marseillaise, de François Rude. 1833-36.

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