sábado, 26 de março de 2011

A imagem de Orfeu


Ao som de Pat Martino, Joey Defrancesco e Billy Hart... postagem a dois (Dos subterrâneos e Khôra nos lindes do Desterro):

Senhoras e senhores, não existe para a situação da literatura imagem mais poderosa do que a deste impaciente cantor, Orfeu, ao encontro do dia, atravessando a zona da morte com uma morta quase viva atrás de si. Pode-se afirmar com toda certeza que ele não deixará fatalmente de olhar para trás, e descumprirá a ordem pelo simples fato de que se infiltrar no mundo noturno implica romper com todas as leis do possível. O poeta é aquele que busca o real no impossível mesmo. Por essa razão perde repetidamente o objeto do seu amor por cuja causa empreendeu a viagem ao Hades. Isso é o que nos faz suspeitar também que o poeta e o viajante pelo mundo dos mortos é o tatuado por excelência. Entre seus ombros se inscreve uma experiência da morte que o obriga a cantar eternamente por algo perdido. Com Eurídice nas sombras se realiza uma experiência que segue sendo válida para toda literatura que se exponha. E o será sempre que, em virtude do desejo poético que permanece atrás de si, conduza-a junto a ele até a luz do dia, até o mundo, até a palavra, sempre que ele não se volte apenas para possuí-la, sempre que conquiste aquilo que faz com que os homens, pelo contrário, percam a palavra e sejam seduzidos até submeter-se, ou seja, à morte. Por tudo isso Orfeu se converte na primeira testemunha da poesia, no orador que faz frente à morte e ao silêncio da palavra. Ele fica marcado pelo insuportável nesse lugar totalmente inacessível que com toda probabilidade será visível a todos, com exceção dele mesmo. Não é completamente inexplicável que no seu destino tivesse que se transmitir uma história sobre ele e não um canto. Essa circunstância tem sua importância do ponto de vista poetológico, pois também revela que o testemunho conta mais que a criação. Para nós o que persiste é a tarefa de compreender que a proibição de olhar para trás transmite mais uma vez a impossibilidade de que cada um contemple, entre seus próprios ombros, a si mesmo, ali onde se encontram os signos de fogo das separações irreversíveis. Por isso o poeta não deve fazer imagem nenhuma do objeto do seu desejo, mas o que Orfeu não deve é, ainda pior, o que não poderá e que, no entanto, terá que desejar para encontrar seu consolo. Orfeu tem que perder o que deseja porque simplesmente já o perdeu. Contudo, entre o ter perdido e o novo perder abre-se o espaço para a vida, que corresponde ao ser que respira, fala e deseja. É nesse espaço onde resistimos ao que é demasiadamente real e aprendemos a ser aprendizes do impossível. É esse espaço aquele que abre a poesia expondo-se até o incerto. É por meio dessa exposição que se começa a jogar ao redor do inadmissível. É assim como a imensa claridade da morte pode desembocar na ambiguidade da vida. Do caráter irreconciliável das separações brota a magia de novos laços que acalmam o fatum.
Senhoras e senhores, anunciei no título destas lições uma poética do vir-ao-mundo que ao mesmo tempo deve mostrar como chegamos à linguagem. Temos a impressão de que até o momento pouco se esclareceu a esse respeito. Em relação a mim, ficaria satisfeito se essas sugestões fossem suficientemente atrativas para permitir abordar esse assunto numa próxima ocasião com mais seriedade. Senhoras e senhores, ficaria feliz de lhes apresentar dentro de uma semana algumas reflexões sobre a poética do começar.

Peter Sloterdijk. Venir al mundo, venir al Lenguaje. Lecciones de Frankfurt. Valencia: Pre-Textos, pp. 29-31. Trad. para espanhol: Germán Cano (retradução caseira para o português: Pancho Lechuza com pitacospoéticos de Le Malade)

Imagem: Jan Brueghel "The Elder". Orpheus in the Underworld. 1594. Galleria Palatina, Firenze.

2 comentários:

Anônimo disse...

As variáveis da conversa eram muitas, Pancho... no meio da coversa tinha um cachimbo... ceci n'est pas une pipe era coisa do Magritte... o impossível nos foi pedido e com o impossível respondemos... a verdade correu cedo pro beco escuro... Eurídice dorme... as musas querem meu sangue... entrego a falta à falta... viva!

Lechuza disse...

Orfeu com um cachimbo melvilleano de marinheiro, lutando contra e com o desvario. A obstinação de alguém que já se sabe perdido - mas faz desta perda irrevogável o motivo mais nobre de sua luta. A la Nietzsche: no tempo, contra o tempo, a favor de um tempo por-vir. Salut!