Acusar e julgar são termos hoje gastos por sua indiscriminada apropriação por funcionários estatais que talvez façam tudo em suas engrenagens menos julgar (quiçá justamente por isso fazem o que fazem sem o menor escrúpulo de auto-análise).
Partindo da premissa de que toda acusação pressupõe um julgamento, no sentido kantiano e não estupidamente decisionista do termo, explica-se de imediato a quase completa inexistência de críticas (e, portanto, acusações contundentes) ao nosso tempo de catástrofes humanas banalmente aceitas como “fatos naturais” com os quais “necessariamente” se deve “conviver”.
O próprio local irredutível da crítica quer se dar ares, em suas paródicas simulações no presente, de função profissional (inclusive catalogada em “currículos oficiais”), em uma má-consciência que chega aos fastígios do cômico. O “intelectual” salaud médio nada mais quer do que buscar seu local (devidamente sitiado) no estado de coisas exatamente pré-formatado pelo mundo tal qual é, em sua insipidez estéril de horizontes, quaisquer que sejam. A “crítica” quer ter seu espaço no estabelecido e ainda ser nele louvada. Não só a potência constituinte da crítica efetiva é capturada, mas principal e diretamente a vida que pretenda expô-la de forma imanente. Ou melhor, a “crítica” - mesmo não doutrinária e não metafísica - pode prosperar e até receber ouvintes (pagantes!) massivos caso permaneça no plano seguro da doutrina e da metafísica. A vida danificada permanece intocável em sua parcialidade claustrofóbica. Aqui se manifesta o alto teor de má-fé ou, quando esta inexiste, vertiginosa inquietação, que toda “crítica” teórica no presente inevitavelmente carrega consigo. Por outro lado, torna-se extremamente perigoso ousar viver demasiadamente (não distinguindo muito bem o “cânone de separação” entre o logos e a vida).
Restituir ao mundo dos dispositivos “socialmente inalteráveis” seu caráter aleatório e de avaliações (integralmente humanas e de poder humano) genericamente aceitas (ao ponto de sua esclerose!) seria pensar uma política que, retirando o juízo de seu torpor, desative e profane a pura forma fetichista da administração (policialesca) travestida em política, assim como nos faça despertar do pesadelo dogmático do sempre-foi-e-assim-permanecerá, ousando pensar uma “história” que nunca se exaure e um presente dilatado ontologicamente imprevisível.
Mesmo que de andaimes frágeis e propiciadores de vertigem a seus ocupantes é imperioso não se escusar das acusações que o nosso tempo exige.
sp, ano 40 pós 68.
imagem. Francisco Goya y Lucientes (1746-1828). Los Caprichos, Plate 39 Asta su Abuelo.
Um comentário:
J’accuse os Eichmanns que encontramos a cada esquina, no ponto de ônibus, no trem, nos restaurantes, nas fábricas, nos gabinetes, na bolsa de valores... A proibição de pensar alegremente entendida como um “sopro de liberdade”, eis o paradoxo aniquilador destes dias que acusamos. Esse paradoxo, entanto, se estende à “crítica” celebratória (até mesmo um termo assim se fez possível) que, pairando sob as nuvens, já não mantém qualquer vínculo com as ruas. Essa “crítica” (a que se dedica Stos. Doutos Acadêmicos), aliás, é muito bem recebida nos ambientes que se fizeram brumas, nos “shoppings centers” acadêmicos ou não, desterritorializados e “multiculturalizados”.
Saravá, Mocho de Minerva! O nosso amigo “gauche”, o Carlos, já pensava nisso:
“Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.”
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