Usar a antropofagia como estratégia, tal como fazem as vanguardas, é ater-se ao movimento das relações com o exterior – com o outro – e, além disso, a ruptura com a tradição e com a memória. Porém, no mesmo instante em que o abandono da tradição é conclamado, uma outra idéia de tradição é posta em cena: não mais a proposição dicotômica do particular/universal (que, ontologicamente se reflete na agonia do ser ou do nada), do primitivo-natural/civilizado, mas aquela do homem natural tecnizado, do ser singular (o ser qualquer); é nesse sentido que, como coloca Agamben, “a singularidade liberta-se assim do falso dilema que obriga o conhecimento a escolher entre o carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do universal.”[1]
Às posições marcadamente cindidas e estruturadas da tradição lógico-conceitual ocidental – a civilização esquizofrênica, diria Warburg –, nas quais os campos filosófico e poético (assim também como o pensamento e a política, a ontologia e a práxis) são compartimentados em seus respectivos domínios, cujas fronteiras são a todo instante marcadas (decididas), a antropofagia expõe sua estratégia pela negação dessas decisões: como o arqueólogo que lê na fratura entre as palavras e as coisas a assinatura – a impressão, o vestígio, a deformação imagética – e a partir desta rearranja as coordenadas da rede histórica de uma civilização, assim também o antropófago, ao dar ouvidos ao homem nu e pela devoração pura e eterna, busca uma saída aos impasses da construção de um homem natural tecnizado. Colocando-se como única lei do mundo, a antropofagia se lança como tentativa de supressão da aporia ser/não-ser e reabre a pergunta do príncipe da Dinamarca: “Tupi or not tupi. That is the question.” Nem um, nem outro, nem particular, nem universal: o mundo é singular e indecidível; o mundo está suspenso no próprio mundo; o mundo é o que resta do mundo – é imaginação do mundo. Neste salto dimensional ler a história da humanidade (de suas humanidades: as artes, a política) é partir de um pathos que não faz contas da distinção entre um trabalho da razão (universal, etnocêntrico, europeu) e uma mitologização (particular, antropológica, indígena), mas que no espaço entre ambas tenta ler e ver a abertura de um possível. Ler e ver a possibilidade num mundo impossível.
[1] AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que Vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993. Tradução: Antônio Guerreiro. p. 11.
2 comentários:
Khôra, belo texto!
Khôra, belo texto!
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