segunda-feira, 13 de julho de 2009

O caráter destrutivo

Goya, 1810.


Em 2007 começamos a flanar; assim, cada qual em seu périplo, territorialmente distantes, desterrados na estraneidade de histórias ex-cêntricas e simultaneamente comuns. Pela primeira vez, ao menos na trajetória desta pequena janela virtual, uma postagem conjunta. Um fragmento de des-esperança:

"Ao fazer uma retrospectiva de sua vida, alguém poderia vir a reconhecer que quase todos os vínculos mais profundos que nela padeceu partiram de pessoas sobre cujo caráter destrutivo havia unanimidade de opnião. Um dia, talvez casualmente, ele viria de encontro a esse fato, e quanto mais violento for o choque que assim lhe for desferido, tanto maiores serão suas chances de ter a representação do caráter destrutivo.
O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio.
O caráter destrutivo é jovial e alegre. Pois destruir remoça, já que remove os vertígios de nossa própria idade; traz alegria, já que, para o destruidor, toda remoção significa uma perfeita subtração ou mesmo uma radiciação de seu próprio estado. O que, com maior razão, nos conduz a essa imagem apolínea do destruidor é o reconhecimento de como o mundo se simplifica enormemente quando posto à prova segundo mereça ser destruído ou não. Este é um grande vínculo que enlaça harmonicamente tudo o que existe. Esta é uma visão que proporciona ao caráter destrutivo um espetáculo da mais profunda harmonia.
O caráter destrutivo está sempre trabalhando de ânimo novo. É a natureza que lhe prescreve o rítmo, ao menos indiretamente; pois ele deve se antecipar a ela, senão é ela mesma que vai se encarregar da destruição.
O caráter destrutivo não idealiza imagens. Tem pouca necessidade delas, e esta seria a mais insignificante: saber o que vai substituir a coisa destruída. Para começar, no mínimo por um instante: o espaço vazio, o lugar onde se achava o objeto, onde vivia a vítima. Com certeza haverá alguém que precise dele sem ocupá-lo.
O caráter destrutivo faz seu trabalho, evitando apenas o criativo. Assim como o criador busca para si a solidão, o destruidor deve estar permanentemente rodeado de pessoas, de testemunhas de sua eficiência.
O caráter destrutivo é um sinal. Como um símbolo trigonométrico está exposto ao vento, por todos os lados, ele está exposto ao palavrório, por todos os lados. Protegê-lo contra isso não faz sentido.
O caráter destrutivo não está nem um pouco interessado em ser compreendido. Considera esforços nesse sentido superficiais. Ser mal compreendido não o afeta. Ao contrário, desafia a má compreensão tal como os oráculos, essas destrutivas instituições estatais, a desafiavam. O fenômeno mais típico da pequena burguesia, a bisbilhotice, se realiza apenas porque as pessoas não querem ser mal compreendidas. O caráter destrutivo deixa que o interpretem mal. Ele não fomenta o mexerico.
O caráter destrutivo é o adversário do homem-estojo. O homem-estojo busca sua comodidade, e sua caixa é a síntese desta. O interior da caixa é o rasto revestido de veludo que ele imprimiu no mundo. O caráter destrutivo elimina até mesmo os vestígios da destruição.
O caráter destrutivo está no front dos tradicionalistas. Alguns transmitem as coisas, tornando-as intocáveis e conservando-as; outros transmitem as situações, tornando-as manejáveis e liquidando-as. Estes são os chamados destrutivos.
O caráter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cujo sentimento básico é uma desconfiança insuperável na marcha das coisas e a disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal. Por isso, o caráter destrutivo é a confiança em pessoa.
O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente porque vê caminhos por toda parte. Onde outros esbarram em muros ou montanhas, também aí ele vê um caminho. Já que o vê por toda parte, tem de desobstrui-lo também por toda parte. Nem sempre com brutalidade, às vezes com refinamento. Já que vê caminhos por toda parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento é capaz de saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, não por causa das ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas.
O caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida vale ser vivida, mas de que o suicídio não vale a pena."

BENJAMIN, Walter. Imagens do Pensamento. In.: Obras escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. pp. 235-237.

4 comentários:

Marechá Panapaná disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marechá Panapaná disse...

Mendiguei o senso às portas da negatividade: "otimista trágico", a folha de bananeira que Lefebvre sacudiu no alpendre de "Do rural ao urbano".
(Des)encontrei Heidegger nessa ânsia de "destruição", com uma picareta de chocolate (tomada emprestada da Pequena Suja, sobrinha do Álvaro de Campos) contra a metafísica. Terminei bêbado, resmungando que "a vida vale ser vivida"...rss...

marginário disse...

Panapicabia, precisamos saborear num charuto cubano a liberação de todos os pensamentos! A metafísica é consequência de flatulências e intestino preso. Salenas!

(Por falar em "às portas", viste o texto do Jijék na Piauí?)

Isso aqui tá substituindo emails.

Anônimo disse...

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