Eis por que o segredo do bergsonismo está sem dúvida em Matéria e Memória; aliás, Bergson, diz que sua obra consistiu em refletir sobre isto: que tudo não está dado. Que tudo não esteja dado, eis a realidade do tempo. Mas o que significa uma tal realidade? Ao mesmo tempo, que o dado supõe um movimento que o inventa ou cria, e que esse movimento não deve ser concebido à imagem do dado. O que Bergson critica na idéia de possível é que esta nos apresenta um simples decalque do produto, decalque em seguida projetado ou antes retroprojetado sobre o movimento de produção, sobre a invenção. Mas o virtual não é a mesma coisa que o possível: a realidade do tempo é finalmente a afirmação de uma virtualidade que se realiza, e pra o qual realizar é inventar. Com efeito, se tudo não está dado, resta que o virtual é o todo. Lembremo-nos que o impulso vital é finito: o todo é o que se realiza em espécies, que não são à sua imagem, como tampouco são elas à imagem umas das outras; ao mesmo tempo, cada uma corresponde a um certo grau do todo, e difere por natureza das outras, de maneira que o próprio todo apresenta-se, ao mesmo tempo, como a diferença de natureza na realidade e como coexistência dos graus de espírito.
Se o passado coexiste consigo como presente, se o presente é o grau mais contraído do passado coexistente, eis que esse mesmo presente, por ser o ponto preciso onde o passado se lança em direção ao futuro, se define como aquilo que muda de natureza, o sempre novo, a eternidade da vida. Compreende-se que um tema lírico percorra toda a obra de Bergson: um verdadeiro canto em louvor ao novo, ao imprevisível, à invenção, à liberdade. Não há aí uma renúncia da filosofia, mas uma tentativa profunda e original para descobrir o domínio próprio da filosofia, para a atingir a própria coisa para além da ordem do possível, das causas e dos fins. Finalidade, causalidade, possibilidade estão sempre em relação com a coisa uma vez pronta , e supõe sempre que “tudo” esteja dado. Quando Bergson critica estas noções, quando nos fala em indeterminação, ele não nos está convidando a abandonar as razões, mas a alcançarmos a verdadeira razão da coisa em vias de se fazer, a razão filosófica, que não é determinação, mas diferença.
Deleuze, Gilles. Bergson, 1956 (Trad. Lia Guarino). In: Bergsonismo. São Paulo: Ed.34, pp. 137-138.
Um comentário:
"A duração em que nos vemos agir, e em que é útil que nos vejamos, é uma duração cujos elementos se dissociam e se justapõem; mas a duração em que agimos é uma duração na qual nossos estudos se fundem uns nos outros, e é lá que devemos fazer um esforço para nos colocar pelo pensamento no caso excepcional e único em que especulamos sobre a natureza íntima da ação, ou seja, na teoria da liberdade."
Bergson - Matéria e memória
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