domingo, 11 de setembro de 2011

La ragazza indicibile


O que os iniciados faziam na noite eleusina é sempre expresso com o verbo "ver" (opopen: Hymn. Cer., v. 480; idon: Pind., fr. 137; derchthentes: Soph., fr. 837) e "visão" (epopteia) é o termo que designa o estado supremo da iniciação. Epoptes, "iniciado", significa também "espectador" e os mistérios que os iniciados contemplavam eram espécies de "quadros viventes", os quais comportavam gestos (dromena), palavras (legomena) e exibição de objetos (deiknymena).
Daqui a pertinência do nexo entre mistérios e pintura, tão presente na arte do Renascimento, a cuja explicitação Wind dedicou um livro famoso. Se o conhecimento supremo tinha sido assemelhado pela tradição filosófica à visão mistérica, se ele não tinha caráter discursivo mas era contraído em ver, tocar e nomear, então a pintura oferecia para esse conhecimento a expressão talvez mais adequada. A tradição já consolidada dos estudos da escola de Warburg veio confirmar oportunamente essa tese.
Todavia, é preciso resguardar-se de um risco que até os estudiosos mais atentos nem sempre conseguiram evitar. Assim, segundo Wind, "o iconógrafo que procura reconstruir o tema perdido de uma pintura do Renascimento" se encontra confrontado com uma tarefa paradoxal. Para “remover o véu de obscuridade com o qual não somente a distância temporal (por si só já suficiente para esse fim) mas também a ambiguidade no uso da metáfora tinham encoberto as grandes pinturas renascentistas", ele deve apreender nos temas e nos significados escondidos mais do que o pintor mesmo podia saber. Ainda que aquelas obras tivessem sido produzidas no contexto de uma cultura que considerava necessárias obscuridade e mistério, o iconógrafo "deve lutar para a clareza" contra a intenção dos autores, porque "esteticamente falando, não há dúvidas de que a presença de um resíduo de significado irresoluto é um obstáculo ao desfrute da arte."[1]
Contra esse preconceito é bom recordar que as alegorias de Lotto ou de Tiziano, como as iniciações eleusinas, não são “misteriosas” porque têm um conteúdo doutrinal escondido, que a acribia do intérprete deve trazer à luz, mas porque nelas conteúdo e forma, como em Eleusis, tornaram-se indecidíveis. O terceiro, que aparece na sua recíproca neutralização, é propriamente misterioso porque, nele, não há mais nada de escondido. Não importa qual pudesse ser a opinião dos comitentes e dos doutos da época, aquelas imagens atingiram o ponto no qual, já que no plano do discurso não há mais nada para dizer, pensamento e visão coincidem. Forma e conteúdo coincidem não porque o conteúdo aparece agora sem véu, mas porque, segundo o significado literal do verbo latino concidere, esses “caem juntos”, declinam-se e aquietam-se. O que agora contemplamos é uma pura aparência. A menina indizível se mostra.
Por isso, não podemos exprimir o conhecimento que acontece em tais pinturas de forma discursiva; podemos, eventualmente, apenas nomeá-lo em um título.
Se é verdade que, de todo modo, as alegorias renascentistas oferecem ao pensamento uma expressão mais adequada do que muitos tratados de filosofia a elas contemporâneos, então não apenas a pintura é restituída, nessa perspectiva, ao seu estatuto próprio, mas também a própria natureza do pensamento deve por elas acabar iluminada. Talvez as telas de Botticelli e de Tiziano, longe de precisarem ser esclarecidas por meio dos escritos de Ficino ou de Pico, podem nos ajudar a compreender o pensamento que aqueles tratados não conseguem dizer adequadamente. Como escrevia Kerényi: “No quadro de Botticelli (O nascimento de Vênus) há ao menos tanta mitologia viva quanto há no hino homérico.”[2]
Wind mostrou como a tradição mistérica pagã havia exercido, através de Plotino e Proclo, uma influência decisiva sobre os líderes do idealismo alemão, em particular no modo com o qual Hegel e Schelling pensaram a dialética e o processo do pensamento segundo o modelo da coincidentia oppositorum. Schelling – que compara esse processo aos “mistérios de Osíris”, nos quais está em questão a fragmentação e a recomposição do corpo de um deus – cita (na tradução de Jacobi) uma passagem de Bruno em que “o mais profundo mistério da arte” consiste em pensar a extrema divergência dos opostos e, ao mesmo tempo, o ponto da sua coincidência. O terceiro, no qual os opostos coincidem, não pode ser homogêneo àqueles e requer uma diversa forma de exposição, na qual os opostos são conjuntamente neutralizados e mantidos. Há o conteúdo, mas nada o contém; há a forma, mas não é mais forma de nada, expõe somente a si mesma.
A ideia de uma filosofia por imagens, que Benjamin parece por vezes evocar, não é uma metáfora, mas deve ser tomada literalmente. A “imagem de pensamento”, como a alegoria renascentista, é um mistério no qual o que não pode ser exposto discursivamente  brilha por um átimo através das ruínas da linguagem.

[1] E. Wind. Pagan Mysteries in the Renaissance, Harmondsworth, 1967, p. 15.
[2] C.G. Jung; K. Kerényi, Einführung in das Wesen der Mytologie, Amsterdam-Leipzig 1941 (III ed. Zürich 1951). p. 153.

Giorgio Agamben; Monica Ferrando. La ragazza indicibile. Mito e mistero di Kore. Milano: Mondadori Electa, 2010. pp. 21-25. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.
Imagem: Tiziano Vecellio. Sísifo. 1548-49. Museo del Prado, Madrid.

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