quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O segredo mais bem escondido do caso Tarnac




Por Giorgio Agamben e Yldune Lévy
Foi em fevereiro de 2011 que apareceu a primeira notícia sobre o assunto: “Por muito tempo foi o segredo mais bem escondido do “caso de Tarnac”: um agente britânico, infiltrado no seio dos movimentos alter-globalizadores e ambientalistas europeus, exerceu um papel importante nessa investigação” (L’Express). A novidade permaneceu por muito tempo sem sequência, órfã. Os escândalos não importam, como qualquer outra mercadoria.
Seu nascimento deve muito à conformação moral do país em que eclodem. “O caso Mark Kennedy”, na Inglaterra, nutriu os tabloides e os programas sensacionalistas durante meses. O escândalo conduziu à dissolução da unidade “de elite” dos serviços secretos para os quais Mark Kennedy trabalhava, ao desencadeamento de uma série de investigações sobre os métodos de infiltração da polícia inglesa, à demissão de um diretor, ao não-lugar de todos os procedimentos que implicavam direta ou indiretamente Mark Kennedy e até mesmo à anulação de julgamentos já ocorridos.
Mas o fundo do escândalo era ético: dizia respeito à incompatibilidade do deboche e do lucro com o ethos puritano inglês. É possível que alguém, exercendo seu trabalho de oficial de informações, transe com dezenas de charmosas jovens anarquistas? É permitido gastar mais de dois milhões de euros, durante sete anos, para financiar noitadas em festas eletrônicas, bebedeiras, férias, relógios de espião de sete mil euros de um James Bond com piercings e tatuagens da anarquia, e tudo isso por um pouco de informação sobre as atividades de ecologistas radicais, de antifascistas, de militantes antiglobalização? A sensibilidade nacional respondia sem hesitação “não” para essas questões supérfluas. Daí a amplitude e a duração do escândalo. Onde estamos, na Alemanha, por conta de uma primeira preocupação com procedimentos e com o solo nacional, parece que o caso Mark Kennedy trouxe mais a questão sobre a legalidade ou não do uso de um agente estrangeiro no território alemão.
A partir do caso de Tarnac é possível extrair diversas genealogias igualmente escandalosas, e quase igualmente secretas, mas a mais significativa politicamente é aquela que parte de Mark Kennedy: pois é ela que mais fala sobre os arcanos do nosso tempo. Mark Kennedy trabalhava oficialmente para a National Public Order Intelligence Unit, um serviço de informações britânico criado em 1999 com o intuito de combater o retorno da contestação ecologista e antiglobalização no Reino-Unido.
A implantação massiva de agentes infiltrados nesses movimentos reflete o lançamento de uma nova doutrina policial que em inglês é chamada “intelligence-led policing” e em francês, com a licença do uso apresentado por Alain Bauer e Xavier Raufer, o “décèlement précoce” [em português, algo como “policiamento por inteligência”]. É nos anos 2000 que o Reino Unido se empenha, por meio de sua presidência da União europeia, em difundi-la e em fazer com que seus parceiros europeus a adotem – e as autoridades britânicas assim conseguiram, como elas se gabam publicamente: pois, com a doutrina, é um conjunto de serviços, de técnicas e de informações que poderão ser trocadas e vendidas aos parceiros em questão.
“Informações” saídas da imaginação fértil de Mark Kennedy, por exemplo. A nova doutrina diz isto: o engajamento político, uma vez ultrapassando o quadro inofensivo da manifestação ou da interpelação dos “dirigentes”, sai do quadro democrático para entrar no domínio criminal, no “pré-terrorismo”. Aqueles que são suscetíveis de sair desse quadro são reprimidos de antemão. Mais do que esperar que eles cometam um crime, como ocupar uma usina de carvão ou interromper uma conferência europeia ou um G-8, é suficiente prendê-los já no momento em que eles elaboram o projeto, com o risco de suscitarem eles mesmos o projeto.
As técnicas de vigilância humana, como a abundante tecnologia eletrônica, devem ser suficientemente compreendidas, sofisticadas e partilhadas. E como essas técnicas “preventivas” não são sequer minimamente compatíveis com a ordem chamada democrática, é preciso que sejam organizadas à margem desta. Aliás, é o que respondeu com toda franqueza o chefe do BKA alemão (equivalente local da Direção Central de Informações Interiores, DCRI [algo similar, no Brasil, seria a ABIN]) quando uma comissão parlamentar de inquérito começa a interrogá-lo sobre o caso Kennedy: “Contra os euro-anarquistas, contra aqueles que se organizam de modo conspirativo e internacional, também nós devemos nos organizar conspirativa e internacionalmente”. “É preciso agir como partisan em todo lugar onde há partisans”, dizia Napoleão numa fórmula que Carl Schmitt adorava citar.
Não há dúvidas de que o começo das dificuldades para as pessoas de Tarnac vem de informações, fabricadas por alguns e voluntariamente aumentadas por outros, emanadas de Mark Kennedy: pois era preciso que ele justificasse seu salário, seus empregadores e seus créditos. Redes secretas franco-britânicas teriam assegurado sua transmissão discreta à DCRI, esta que acabou caindo na armadilha muito mais do que aqueles de Tarnac. Tal é, portanto, a verdadeira significação e o verdadeiro skandalon do caso Tarnac. O que se esconde por trás de um fiasco judiciário francês é a constituição de uma reivindicada conspiração policial mundial, na qual Mark Kennedy, oficialmente ativo em onze países – dos europeus aos Estados Unidos, passando pela Islândia –, hoje é apenas o mais famoso peão.
Como sempre, o discurso policial só contém verdade com a condição de invertê-la termo por termo; quando a polícia diz: “Os euro-anarquistas estão elaborando uma rede pré-terrorista europeia para atacar as instituições”, evidentemente é preciso ler: “Nós, policiais, estamos driblando as instituições por meio de uma vasta organização europeia informal a fim de atacar os movimentos que nos escapam”. O ministro do interior, Manuel Valls, declarou em Roma que, face aos “processos de radicalização em numerosos países”, fazia questão de acentuar a cooperação no seio da Interpol contra as “formas de violência provenientes da ultra-esquerda, de movimentos anarquistas ou autônomos.”
Ora, o que acontece hoje na Europa, na Espanha, em Portugal, na Grécia, na Itália, no Reino Unido, não é o surgimento ex nihilo de grupos radicais que vêm ameaçar a quietude da “população”, mas os próprios povos se radicalizando diante do evidente escândalo que é a ordem presente das coisas. O único erro daqueles que, como as pessoas de Tarnac, ocupam-se do movimento antiglobalização e da luta contra a devastação do mundo é de ter formado um signo anunciador de uma tomada de consciência que já é geral.
É bem possível que, como as coisas estão indo, um dia a recusa da identificação biométrica, tanto nas fronteiras como na vida, torne-se uma prática difundida. O que constitui a mais pesada ameaça para a vida das pessoas não são os quiméricos “grupos terroristas”, mas a organização efetiva da soberania policial em escala global e seus golpes sujos. A História nos lembra que as intrigas da Okhrana, a polícia secreta russa, trouxeram pouca sorte ao regime czarista. “Não há força no mundo que possa deter a força revolucionária quando ela insurge, e todas as polícias do mundo, pouco importando seu maquiavelismo, suas ciências e seus crimes, são quase impotentes”, anotava o escritor Victor Serge. Ele também daria esse conselho em O que todo revolucionário deve saber sobre a repressão, de 1926: “Se a acusação se baseia sobre uma falsidade, não se indigne com isso: pelo contrário, deixe-a cair na própria armadilha antes de reduzi-la a nada.”   

Artigo publicado no dia 14/11/2012 no jornal Le Monde. Disponível em: http://www.lemonde.fr/idees/article/2012/11/14/le-secret-le-mieux-garde-de-l-affaire-de-tarnac_1790316_3232.html (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko). 

Mais informações sobre o caso de Tarnac:



Mais informações sobre o caso Mark Kennedy:
http://www.guardian.co.uk/environment/mark-kennedy

Um comentário:

monica botkay disse...

fantástico esse artigo.
desvenda, "comme il faut" a obviedade das manipulações dos governos/mídia do mundo.
tão bem articuladas que passam realmente desapercebidas pela imensa maioria.