O abandono divino fez-se ouvir como nunca antes, desde o seio de pedras mudas até os rumores do vento por entre os galhos secos das árvores no inverno. Nenhuma perspectiva de redenção, apenas o reconhecer-se no rosto opaco de um velho que há pouco, em sonho, jazia inerte, perdido pelos caminhos da demência: tal era a sensação com a qual, logo pela manhã, se deparara. Toda aquela sorte de esperança mítica que um poeta certa vez disse ser o viver - "viver é insistir em realizar uma lembrança"-, era então motivo de desdém. Pensava naqueles olhos que, com insistência, fitara-o durante o sonho e, agora, motivavam sua angustiada e séria sensação de abandono. Qualquer sentido parecia-lhe interditado, assim como ao velho, que o acompanhara na noite, eram tolhidas as palavras, a possibilidade de sair da opacidade. Fechando os olhos, tentava se concentrar no rumor do abandono divino para, quiçá, poder, pelo menos por um instante, viver a pura ficção que é o viver. Buscava, portanto, naquela silenciosa manhã de domingo, seus inimigos mais íntimos: as petrificadas imagens do passado (supostamente perdido), seu caráter, os moinhos dos ventos do Sentido, todas as figuras que eram, de uma maneira ou de outra, as malfadadas realizações de uma lembrança, sua porta de entrada na tragédia (uma espécie de olhar culpado de um Édipo que, incapaz de lidar com a realização, cega-se ainda com esperanças). Queria encará-los, desafiá-los, para, talvez, poder viver o desvario das palavras sem sentido sem o medo da imagem do velho, sem a esperança da superação das demências, sem perspectivas de realização das lembranças. Uma vida intempestiva: eis o que se lhe mostrara como o único modo de afrontar o silêncio e, porventura, conseguir abrir os olhos e respirar, condenado mas sem culpa, as ficções possíveis de uma vida.
Imagem: Émile Bernard. Madaleine na floresta do amor. 1888. Musée d'Orsay, Paris.
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