Há um desperdício de vida em cada instante, disse, mais ou menos assim, uma poeta. Mas o que de uso, de aproveitável é a vida, ou melhor, o que não se perde na vida? Dou alguns passos e chego numa avenida movimentada, um emaranhado de carros e fumaça, barulhos e gente incrustada em latas como mariscos num canto de pedra junto ao mar. Tento não pensar muito e desvio o olhar para as acácias que nestes tempos esbanjam um amarelo que Van Gogh talvez um dia aspirou pintar. Quando criança, tomava as pétalas das flores de acácia para brincar. Eram dias incautos que corriam soltos e todas as cores brilhavam com algum sentido de liberdade: havia vida num mundo por vir, havia amarelos desperdiçados com alegria. Mas isso é bobagem que agora penso e que outrora sequer podia ter qualquer chance de ser pensada já que se perdia com a vida. O cruzamento continua movimentado: por mim passa uma menina com fones de ouvido, no carro parado no semáforo alguém discute pelo telefone, o ônibus está abarrotado de gente, o sol começa a se esconder, buzinam os motoristas nervosos. E se todos tivessem uma alma, esta não estaria perdida à flor do dia ou mesmo antes de ter nascido? Mas escuto ecos de vozes: "isso é coisa de poeta à toa, o mundo real é duro como as latas das quais agora você desvia o olhar." Tento não pensar e me encosto num canto com a caderneta em mãos para tomar estas notas. Mas qual o porquê dessas palavras se a vida é desperdício? As folhas em branco poderiam por acaso ser tingidas pelo amarelo das acácias? É porventura possível seguir pela cidade sem imaginar que tudo, neste dia, já está gasto e perdido? Nossa sorte não é obra do acaso, do inescrutável acaso? A vida, qualquer vida, não é um tecido de citações perdidas e, por isso, justamente desperdício? Consigo, por fim, atravessar o cruzamento e começo a caminhar pela rua que me conduz ao trabalho: e tudo parece já ter sido dito, e a confusão dos barulhos agora soam normal, e a constância das horas parecem ritmadas, e a fragilidade dos projetos parecem ter sentido, e as coisas à toa podem ser apagadas, e as acácias já não têm nenhum amarelo, e a náusea me parece ser o único sentido compartilhado enquanto esperamos a redenção da catástrofe que já aconteceu.
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