terça-feira, 12 de maio de 2015

Carta à destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.

Ao endereçar flores aos deuses distantes, ausentes na noite escura, tentava costurar, com um gesto impotente, as tramas de nossas faltas, querida. Talvez sempre tivesse sido você a sussurrar uma estrofe de Mistral ao meu ouvido:

Yo te enseñé a besar: los besos fríos
son de impasible corazón de roca,
yo te enseñé a besar con besos míos
inventados por mí, para tu boca.

Hoje, ao escrever esta carta, isso me soa piegas. Mas tudo que se inventa com as palavras - esses alforjes vazios que tilintavam aos ouvidos de Nietzsche ao ponto de fazê-lo deus em vez de um mero professor na Basileia -, tudo o que se desenha nestes mapas que a você remeto, não passa da invenção daqueles beijos que jamais tocaram boca alguma. Os deuses, a quem tento invocar com este ramalhete murcho em mãos, já não podem me ouvir. Só há distância, querida, só há distância. Você pode até mesmo ter lido outros poemas, pode ter deixado ecoar minhas palavras vazias no seu quarto onde porventura as imagens de um passado inventado podem parecer presentes, mas jamais poderá, mesmo com todas as cartas já escritas, mapear essa noite escura que nos assombra. Nenhuma mitologia impassível poderia apagar o sangue em meus lábios e, nesse contínuo sem-sentido, continuo a escutar a voz de Zsymborska que me vem desde uma tarde de verão: "Sei que, enquanto viver, nada me justifica / já que barro o caminho para mim mesma." E assim continuamos a nos tratar (ou destratar) na estranheza da impossibilidade, querida, barrando todo caminho para nós mesmos. Nem esta desconexão de palavras que me toma de assalto, nem qualquer lembrança de possível podem fazer sua aquela voz que me sussurrava Mistral. Todos os nossos sonhos já foram sonhados, mas não há gavetas para guardá-los e, nessa trama de nossas faltas, não há beijos por inventar nem deuses a quem entregar estas murchas rosas que, agora, só posso remeter a você.

Do seu remetente impossível.

p.s.: junto desta mando um postal com um Caravaggio que também trata da impossibilidade...

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