quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Pequena carta em parágrafo II


O acaso me deu uma personagem: vazia, deitada em grandes olhos negros, desenhada com letras encontradas em mapas ancestrais. O mundo é um moinho, sabes, e nada impede o fluxo da resposta do desejo: lava, depois pó, depois nada. Talvez as cinzas sejam mais que nada, mas o nada, que já é alguma coisa, também pode ser toda carta que para ti escrevi. Mas, desculpe-me a ingenuidade, tu és impossível e tua figura é tão somente a personagem destas minhas cartas para ninguém. Um rosto antigo, afrescos em ruínas da memória (e, como a vida está no esquecimento, tu és apenas natureza morta), a teologia de um manual barato, o som de um violino gritando o desespero, a agonia das faltas de sentido, teu papel que se desfaz na trama da resposta poética do desejo. Depois que apago teus vestígios, volto os olhos para um campo onde estão plantados mil espelhos, mas neles tua imagem não aparece. Corro por este prado ruidoso, atento para as vozes de antigos mercadores e percebo que especiaria é uma imagem em um destes espelhos. Tu sempre foste uma miragem, uma musa cega, impressa nos meus olhos que não te veem. Permanecia imóvel enquanto tentava vê-la, pois também eras teu o receio da morte heroica. Passas agora teus dedos imaginados nas frutas que comias como quem descobre no chocolate toda a metafísica. A história escorrega por entre os dedos do cobrador do ônibus que tu nunca tomaste. E ainda penso que deves deitar-te em teu silêncio, obscura cama onde te encontrava nua. Mas eras ainda uma frase solta, um ato falho, um demônio meridiano tentando tomar notas das cartas desaparecidas. Tornaste um verso, depois uma estrofe, depois um poema, depois uma carta, depois estas letras que se apagam a cada sopro do divino deus que te acalma. Lava, depois pó, depois nada.   


Imagem: Paul Gauguin. Eva bretã. 1889.  McNay Art Museum, San Antonio.

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