segunda-feira, 8 de julho de 2019

Vozes estudantes II - Em defesa de uma Filosofia inútil





Antonio Júlio Garcia Freire*


Em tempos em que se discute os investimentos na educação superior, contingenciamentos de custos e o obscurantismo parece ser a regra dos debates, a primeira disciplina a ser discutida é a filosofia. De fato, se exige a presença da filosofia perante o júri da sociedade, pois que ela explique sua finalidade, por que deveríamos pagar professores dessa disciplina? Não tardemos, arrastemos os filósofos pelos pés! – não escutem suas súplicas, suas palavras venenosas e sua retórica afiada – o julgamento está pronto, a promotoria é guiada pelo senso crítico da utilidade e do pragmatismo, ela irá revisar os argumentos e propor um acordo justo. E, acuado em um canto, o filósofo é inquerido pelo promotor: afinal, por que haveria de existir um lugar para você nesse admirável mundo novo?

E talvez esse seja o problema que remonta ao começo dos tempos humanos. Milênios atrás foi Sócrates o primeiro a ocupar o lugar dos réus, acusado por sua própria cidade de corromper a juventude ateniense, ensinando os jovens a adorarem falsos deuses. É isso que Platão nos relata em seus diálogos. Com Platão e Sócrates era mais claro o papel da filosofia: descobrir a verdade, colocar de lado os mitos e as aparências, alcançar a essência das coisas através da dialética. É isso que Sócrates supostamente fazia, discutia com pessoas nas ruas da cidade e inqueria sobre o que era a justiça, a coragem ou a verdade. Talvez, a cidade tenha se vingado e ao fazer ao velho filósofo a pergunta que ele, covardemente, nunca havia feito: para que tu serves Sócrates?

Mais do que uma simples demonstração da barbárie e da perversão do que um grupo humano é capaz, gostaria de analisar a cena a partir de outro ângulo. É precisamente disso que se trata: a cidade mata Sócrates porque é isso que suas perguntas estão fazendo com os habitantes, matando os dispositivos políticos-religiosos e as tradições; trata-se de um embate entre estilos de vida do qual apenas um pode sobreviver.

A questão da utilidade aproxima o filósofo de outra figura que ao longo da história também ocupa constantemente esse banco dos réus: o artista. Ao longo dos séculos também se questiona qual a função da arte e qual propósito ela deve ocupar dentro de uma sociedade. Platão também reflete sobre isso quando expulsa o poeta de sua República, sob o pretexto justamente de que a poesia é capaz de mover as paixões em direções indesejadas e de que os artesões que trabalham com a mimesis apenas degeneram a verdade, criando falsas cópias, sendo a boa arte aquela que acalma os ânimos. Não há lugar para o poeta em sua comunidade perfeita.

Walter Benjamin em seu texto O autor como produtor (1934) aborda esse problema, sobre qual seria a utilidade do artista ou intelectual dentro do projeto de uma sociedade emancipada ou, pelo menos, as funções desses sujeitos no processo de emancipação. O caráter revolucionário ou reacionário de uma obra apenas pode ser analisado dentro das relações de produção da época, isso significa que, para além de uma oposição da forma e conteúdo, é a técnica a categoria que permite uma análise mais profunda da obra.

Como Benjamin tenta demonstrar, o caráter revolucionário de uma obra está na superação das falsas dicotomias, no caso de sua análise: a distância entre o autor e os consumidores de seu produto. Estamos diante de uma obra revolucionária quando ela atravessa essa distância, transformando os consumidores em produtores. Assim é com o processo de emancipação: não se trata de uma bateria com dois polos mestre-escravo com o proletário de um lado e a burguesia de outro, mas podemos encontrar aliados e inimigos em ambos os campos. E é justamente o espírito reacionário que acredita na importância de o artista imprimir sua personalidade em sua criação, e essas criações possuem assim uma função organizadora dentro de uma sociedade, servindo de propaganda: “Esperar uma renovação no sentido dessas personalidades e dessas obras é um privilégio do fascismo” (ibid., p.99).

Benjamin não está distante de Marx, que também via no processo de emancipação da sociedade de classes o fim da profissão do artista. É assim o processo de alienação, na medida em que apenas me reconheço pertencente ao mundo de uma técnica, somente sou astrônomo, médico ou escritor. Há a concentração de talento em uma única atividade que é preciso transformar em mercadoria para continuar sobrevivendo. Uma sociedade emancipada, em uma concepção marxista, é uma sociedade que ultrapassou esse paradigma de classes, que dialetizou categorias apenas aparamente contrárias: “Numa sociedade comunista não haverá pintores, mas homens que, entre outras coisas, farão pintura.” (Marx e Engels, A ideologia alemã, Obras, t. V, 372-372).

É dessa forma que Marx também enxerga a categoria do filósofo. É preciso efetuar a superação entre a falsa dicotomia de um povo inculto que não se preocupada com a verdade e a filosofia – a mãe das ciências como definem alguns. Como ele traz em Glosas críticas ao artigo: “O rei da Prússia e a reforma social. De um Prussiano” (1844, p. 45-46): “Somente no socialismo um povo filosófico encontrará a práxis que lhe corresponde, ou seja, somente no proletariado encontrará o elemento ativo de sua libertação.”

Assim como o artista no advento do capitalismo precisa vender sua força de trabalho – no caso suas obras, ou seja, responder a uma demanda dos ditos movimentos artísticos e as correntes que digam o que é uma “boa arte” – o filósofo também precisa vender sua força. Mas, o que ele vende é sua força intelectual, não pensando temas revolucionários, voltando aos temas estéreis da antiga filosofia e compactuando com a dicotomia filosofia X senso comum. É realmente interessante pensar o que Marx quis dizer com “povo filosófico”. O que significa isso como fim de uma dicotomia.

Na atualidade, o debate aparece marcado por falsas dicotomias, de um lado se discute a utilidade da filosofia, como ela pode participar da emancipação da sociedade. Ora, uma filosofia verdadeiramente revolucionária, dentro das relações de produção, é a que ultrapassa a condição de filósofos e leigos, a que oferece uma nova forma de mediação entre conteúdo e forma. Do outro lado, debate-se sobre a utilização dos recursos de uma sociedade: em tempos que é preciso repensar gastos e investimentos, por que o filosofo deveria ser digno de receber algo pelo seu trabalho?

Bataille, em uma carta a um companheiro, fala da literatura, do que ele acredita serem as condições para uma literatura verdadeira, partindo do paradigma entre dominados e dominantes. Os dominantes seriam aqueles preocupados em aumentar o conjunto de recursos de uma sociedade, produzir o máximo e consumir o mínimo. Os dominados, pelo contrário, apenas desejam consumir e trabalhar o mínimo possível.

Bataille não parece soar distante do presidente do Brasil ou do ministro da educação, cujos discursos não escondem o desdém com o conhecimento produzido pelas universidades, com o custo, considerado “extravagante”, com os professores e alunos. Não é coincidência que a filosofia, a última disciplina a entrar de forma obrigatória na grade escolar, seja a primeira a ser ameaçada de ser retirada. Porque o filósofo é, como Bataille descreve, um fanfarrão da pior espécie. Alguém que apenas esbanja e pouco produz e que, em uma sociedade marcada pela preocupação econômica, pelas utilidades de seus membros, ousa questionar o que funda essa própria utilidade – e, nessa sociedade, tal ousadia é impensável. Essa divisão que Bataille propõem é invertida no final de sua carta, porque aqueles que deveriam servir são precisamente os maiores soberanos, uma vez que podem renunciar à sua soberania e não servir para nada. Esse é seu maior privilégio. Dizem que a filosofia está passando por uma crise, mas talvez sua situação natural seja a crise, resolver a crise da filosofia poderia ser o fim da história de Hegel ou a entrada em um novo modo de produção com Marx, e não acredito ter as respostas para como chegar lá e atravessar as trevas, mas os filósofos que vieram antes acenderam uma lanterna atrás de mim e me permitem ver alguns palmos a frente.

Para completar: defendo uma filosofia inútil, não tenham dúvidas. Inútil, porque é apenas ao existir como algo que não precisa existir que encontramos o que talvez haja de mais radicalmente humano na experiência com o mundo. O fascismo e o reacionário estão do lado da necessidade, de um mundo orgânico que se curva diante da vontade do grupo.

Não acredito ser possível defender a necessidade da emancipação da sociedade, acredito que os existencialistas estejam certos e, em princípio, que tudo seja uma questão de escolha. Contudo, gostaria de escolher um mundo não-orgânico, que também não é o mundo das máquinas, mas um mundo humano, com seus problemas, mas problemas humanos que apenas dependam da humanidade para encontrar alguma solução; mundo no qual as diferenças que nos matam, nos segregam e nos dividem não são necessidades, mas contingências. Por isso, acredito que devemos manter a filosofia em nossas disciplinas, não porque precisamos dela, mas porque um dia não iremos mais precisar, iremos olhar para os tomos do pensamento e sentir saudade de quando precisávamos dos filósofos, assim como olhamos para antigos brinquedos e sentimos saudades de quando éramos crianças. Porém, esse tempo não é hoje.

Todos sabemos como acaba o diálogo: Sócrates é declarado culpado, aceita sua punição e toma a cicuta. Em seu leito de morte, suas últimas palavras são sobre uma dívida, as galinhas que deve a um conhecido. Vamos torcer para não ser esse o destino do filósofo, que o julgamento seja suspenso, a promotoria sem forças para continuar peça que o caso seja arquivado. O filósofo aliviado por continuar respirando – ou preocupado porque ainda precisa terminar aquele ensaio – pega seu casaco e se retira do prédio público.
 
 
* Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 
 
Imagem: Peter Paul Rubens. Os quatro filósofos. 1611-12. Galleria Palatina, Firenze.

Nenhum comentário: