Giorgio Agamben
Compreende-se mal o gesto mais específico do pensamento de Gianni Carchia caso se inscreva sua intenção apenas no interior da Estética – isto é, da disciplina acadêmica que coube a ele ensinar. Em seu caso, todavia, tampouco é possível prescindir dessa inscrição, simplesmente. Pelo contrário, como ele mesmo observou certa vez ao escrever que o cerne da Estética está onde não suspeitaríamos de procurá-lo, Carchia desde o início deslocou sua disciplina para uma espécie de pré-histórica terra de ninguém entre o distanciamento do mundo mítico e o nascimento da literatura. Nessa zona – crepuscular e ao mesmo tempo auroral – que se parece mais com a Urgeschichte de Overbeck do que com um campo disciplinar, o jovem Carchia instalou seu lugar de estudioso com sua pequena obra-prima Orfismo e tragédia (1979). Alguns anos depois, seu genial trabalho sobre o nascimento do romance (Da aparência ao mistério, 1983) iria ulteriormente definir – ou esfumaçar – seus limites. De acordo com uma inata sensibilidade política à qual, no início, não eram estranhas simpatias anárquicas, o que sempre estava em questão nesse limiar pré-histórico, todavia, era a própria história do ocidente, que, nos traços de Reinhardt e de Meuli, Carchia lê como uma luta – trágica e cômica ao mesmo tempo – pela aparência. Isso pois a contemplação e o des-encanto da aparência, nos quais ele identifica o legado supremo da filosofia antiga, já estão sempre se revertendo em mistério ou mistificação, segundo um diagnóstico cuja pertinência hoje é fácil de ser reconhecida. E se algo define a cifra incomparável de seu estilo, seu gesto ao mesmo tempo leve e singularmente decisivo, é justamente a severidade com que ele soube compreender a liberação das aparências como tarefa genuinamente filosófica. Nos últimos trabalhos – A fábula do ser. Comentário ao Sofista (1997) e O amor do pensamento (2000) – essa severidade atinge sua máxima limpidez e, além da Estética, a filosofia da arte parece resolver-se integralmente em arte da filosofia. Por isso, o nome de Carchia se inscreve de pleno direito no registro dos poucos nomes que contam no pensamento italiano dos últimos trinta anos, ao lado de Giorgio Colli, Furio Jesi e Enzo Melandri.
Do Orfismo a Walter Benjamin
Nascido em Turim em 1947, Gianni Carchia morreu em Vetralla no ano passado [2000]. Companheiro de estrada de outro grande pensador “à parte” da cena italiana, Furio Jesi, a quem era vinculado pela lição comum de Albino Galvano, Carchia deixou uma rica produção filosófica. Entre suas obras lembramos aqui de Orfismo e tragédia. O mito transfigurado (Celuc, 1979; depois republicado, em 2019, pela Quodlibet, edição a partir da qual sairá a tradução brasileira pela N-1); Estetica ed erotica. Saggio sull’immaginazione (Celuc, 1981); La legitimazione dell'arte (Guida, 1983); Dall'apparenza al mistero. La nascita del romanzo (Celuc, 1983); Il mito in pittura. La tradizione come critica (Celuc, 1987); Retorica del sublime (Laterza, 1990); Arte e bellezza. Saggio sull’estetica della pittura (Il Mulino, 1995); La favola dell’essere. Commento al Sofista (Quodlibet, 1997); L'estetica antica (Laterza, 1999); L'Amore del pensiero (Quodlibet, 2000); Nome immagine. Saggio su Walter Benjamin (Bulzoni, 2000; depois pela Quodlibet, 2009). É preciso não se esquecer, todavia, do grande trabalho de Gianni Carchia como tradutor de Adorno, Marx, Benjamin, Reiner Schürmann e Hans Blumenberg.
Texto de Giorgio Agamben publicado no suplemento Alias, de Il Manifesto, de 7 de julho de 2001, p. 18.
Trad.: Vinícius N. Honesko
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