Em julho de 1970, aparece nos muros de Roma o manifesto da revista Rivolta femminile, baseado num texto elaborado por Carla Lonzi, Carla Accardi e Elvira Banotti.
"As mulheres sempre estarão divididas entre si? Jamais formarão um corpo único?" (Olympe de Gouges, 1791).
· A mulher não deve ser definida em relação ao homem.
· Nessa consciência se fundam tanto nossa luta quanto nossa liberdade.
· O homem não é o modelo ao qual adequar o processo da descoberta de si por parte da mulher.
· Em relação ao homem, a mulher é outra coisa. Em relação à mulher, o homem é outra coisa. A igualdade é uma tentativa ideológica de escravizar a mulher em níveis superiores.
· Identificar a mulher com o homem significa apagar o último caminho de libertação. Libertar-se, para a mulher, não quer dizer aceitar a mesma vida do homem, posto que invivível, mas exprimir seu sentido da existência.
· A mulher como sujeito não recusa o homem como sujeito, mas o recusa como papel absoluto.
· Na vida social, recusa-o como papel autoritário.
· Até agora, o mito da complementariedade foi usado pelo homem para justificar o próprio poder.
· As mulheres são persuadidas desde a infância a não tomar decisões e a depender da pessoa “capaz” e "responsável": o pai, o marido, o irmão...
· A imagem feminina com a qual o homem interpretou a mulher foi uma invenção do homem.
· Virgindade, castidade, fidelidade não são virtudes, mas vínculos para construir e manter a família.
· A honra é a consequente codificação repressiva desses vínculos.
· No casamento, a mulher, privada de seu nome, perde sua identidade, e isso significa a passagem de propriedade que se desenrola entre seu pai e seu marido.
· Quem gera não tem a faculdade de atribuir aos filhos o próprio nome: o direito da mulher foi cobiçado por outros e se tornou privilégio destes.
· Somos obrigadas a reivindicar a evidência de um fato natural.
· Reconhecemos no casamento a instituição que subordinou a mulher ao destino masculino.
· Somos contra o casamento.
· O divórcio é um enxerto de casamentos do qual a instituição sai reforçada.
· A transmissão da vida, o respeito pela vida, o sentido da vida são experiências intensas da mulher e valores que ela reivindica.
· O primeiro elemento de rancor da mulher em relação à sociedade está no fato de ser obrigada a enfrentar a maternidade como um dilema.
· Denunciamos a desnaturação de uma maternidade, que é paga ao preço da exclusão.
· A negação da liberdade de aborto entra no veto global que é feito à autonomia da mulher.
· Não queremos pensar na maternidade a vida toda e continuar a ser instrumentos inconscientes do poder patriarcal.
· A mulher está cheia de criar um filho que se tornará um péssimo amante.
· Numa liberdade que sente ter de enfrentar, a mulher livra também o filho e o filho é a humanidade.
· Em todas as formas de convivência, alimentar, limpar, atender e todo momento do viver cotidiano devem ser gestos recíprocos.
· Por educação e por mimese o homem e a mulher já estão nos papeis desde a primeiríssima infância.
· Reconhecemos o caráter mistificador de todas as ideologias, porque por meio das formas racionalizadas de poder (teológico, moral, filosófico, político) obrigaram a humanidade a uma condição inautêntica, oprimida e conformista.
· Por trás de toda ideologia vemos a hierarquia dos sexos. Não queremos, de agora em diante, nenhuma proteção entre nós e o mundo.
· O feminismo foi o primeiro momento político de crítica histórica à família e à sociedade.
· Unifiquemos as situações e os episódios da experiência histórica feminista: nela a mulher se manifestou interrompendo pela primeira vez o monólogo da civilização patriarcal.
· Nós identificamos no trabalho doméstico não retribuído a prestação que permite ao capitalismo, privado e de estado, subsistir.
· Permitiremos aquilo que continuamente acontece ao final de toda revolução popular, quando a mulher, que combateu junto com os outros, encontra-se deixada de lado com todos os seus problemas?
· Detestamos os mecanismos da competitividade e a chantagem que é exercida no mundo da hegemonia da eficiência.
· Nós queremos colocar nossa capacidade laboral à disposição de uma sociedade que seja imunizada em relação a tais mecanismos.
· A guerra sempre foi uma atividade específica do macho e seu modelo de comportamento viril.
· A paridade de retribuição é um direito nosso, mas nossa opressão é outra coisa.
· É suficiente a paridade salarial quando já temos nas costas as horas de trabalho doméstico?
· Reexaminemos as contribuições criativas da mulher à comunidade e dissipamos o mito de sua laboriosidade subsidiária.
· Dar muito valor aos momentos “improdutivos” é uma extensão de vida proposta pela mulher.
· Quem tem o poder afirma: “Faz parte do erotismo amar um ser inferior”. Manter o status quo é, portanto, seu ato de amor.
· Acolhemos a liberdade sexual em todas as suas formas, porque deixamos de considerar a frigidez uma alternativa honrosa.
· Continuar a regulamentar a vida entre os sexos é uma necessidade do poder; a única escolha satisfatória é uma relação livre.
· São direitos das crianças e dos adolescentes a curiosidade e os jogos sexuais.
· Olhamos por 4000 anos: agora vimos!
· Às nossas costas está a apoteose da milenária supremacia masculina.
· As religiões institucionalizadas foram o mais firme pedestal dessa apoteose. E o conceito de "gênio" foi sua etapa inalcançável.
· A mulher teve a experiência de a cada dia ver a destruição do que fazia.
· Consideramos incompleta uma história que se constituiu sobre pegadas não perecíveis.
· Nada ou quase nada foi transmitido da presença da mulher: cabe a nós redescobrir isso para saber a verdade.
· A civilização nos definiu como inferiores, a Igreja nos chamou de sexo, a psicanálise nos traiu, o marxismo nos vendeu à revolução hipotética. Chamamos referências de milênios de pensamento filosófico que teorizou a inferioridade da mulher.
· Consideramos os sistematizadores do pensamento como os responsáveis pela grande humilhação que o mundo patriarcal nos impôs: eles mantiveram o princípio da mulher como ser adicional para a reprodução da humanidade, vínculo com a divindade ou limiar do mundo animal; esfera privada e pietas. Justificaram na metafísica o que era injusto e atroz na vida da mulher.
· Cuspamos em Hegel.
· A dialética senhor-escravo é um acerto de contas entre coletivos de homens: ela não prevê a libertação da mulher, o grande oprimido da civilização patriarcal.
· A luta de classes, como teoria revolucionária desenvolvida a partir da dialética do senhor-escravo, da mesma forma exclui a mulher.
· Nós colocamos em discussão o socialismo e a ditadura do proletariado. Não se reconhecendo na cultura masculina, a mulher retira desta a ilusão da universalidade.
· O homem sempre falou em nome do gênero humano, mas metade da população terrestre o acusa agora de ter sublimado uma mutilação.
· A força do homem está em sua identificação com a cultura, a nossa está em refutá-la.
· Depois desse ato de consciência, o homem será distinto da mulher e deverá escutar dela tudo o que concerne a ela.
· O mundo não será omitido se o homem não tiver mais o equilíbrio psicológico baseado em nossa submissão.
· Na ardente realidade de um universo que nunca revelou seus segredos, nós retiramos muito dos créditos dados às obstinações da cultura.
· Queremos estar à altura de um universo sem respostas.
· Nós procuramos a autenticidade do gesto de revolta e não a sacrificaremos nem à organização nem ao proselitismo.
Roma, julho de 1970
Comunicamos apenas com mulheres
Trad.: Vinícius Nicastro Honesko.
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