segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Celebrar a consciência - Prefácio de Giorgio Agamben a Ivan Illich


Com este volume começa a publicação da primeira edição das Obras completas de Ivan Illich (as Oeuvres complètes publicadas pela Fayard e a Opera omnia - logo interrompida - pela Marion Boyars estão longe de poder serem assim consideradas). De fato, estamos convencidos de que apenas hoje a obra de Illich tenha alcançado aquilo que Walter Benjamin chamava de "a hora da legibilidades". Illich não aparece mais, como no momento de sua primeira recepção nos anos 70, como o genial iconoclasta que submeteu a uma crítica implacável as principais instituições do Ocidente. O que está em questão em sua crítica da modernidade não é nada mais nada menos do que um novo olhar para a humanidade do homem - sob a condição de especificar que, aqui, por "humanidade" não se compreende tanto uma natureza biológica ou culturalmente pressuposta quanto sobretudo as práticas imemoriais por meio das quais os homens e as mulheres tornam a vida possivel para si, isto é, aquela dimensão que Illich chama "convivialidade". Problema filosófico - isto é, ético e político - por excelência, se a filosofia é antes de tudo memória da antropogênese, ou seja, do incessante e jamais realizado tornar-se humano do vivente homem. 

Se, nessa perspectiva, Illich representa a reaparição intempestiva na modernidade de um exercício radical da krisis, de uma chamada em juízo sem atenuantes da cultura ocidental, essa krisis e esse juízo são tão mais radicais à medida que provêm de uma de suas componentes essenciais: a tradição cristã. Os textos recolhidos neste primeiro volume dão testemunho de um período - entre 1951 e 1971 - que coincide com a formação de Illich no interior dessa tradição. São também os anos de seu empenho pastoral como sacerdote, primeiro como vice-pároco da Igreja da Encarnação, em Nova Iorque, e depois como vice-reitor da Universidade Católica de Porto Rico, da participação no concílio Vaticano II em Roma e da fundação, em Cuernavaca, do Centro intercultural de documentação. Uma vez que Illich age aí como sacerdote dentro da Igreja, forte é a tentação de distinguir o autor desses textos do Illich que em 15 de março de 1969, abandonando "os privilégios e os poderes que lhe foram conferidos pela Igreja", renunciará para sempre ao exercício público do sacerdócio e começará uma atividade de escritor e conferencista que fará dele, em poucos anos, uma figura conhecida e discutida em todo o mundo. No entanto, basta ler com cuidado os textos aqui reunidos para se dar conta de que entre o Illich dentro da Igreja e aquele fora (ou à margem) da Igreja não é possível marcar nenhuma fratura.

Os textos editados e inéditos aqui publicados - incluída a preciosa dissertação sobre o pensamento historiográfico de Arnold J. Toynbee - de fato mostram que a conceitualidade do Illich crítico da modernidade e arqueólogo da convivialidade nasce como um desenvolvimento radical e coerente de categorias teológicas e filosófica já presentes no pensamento do sacerdote. Não supreende, portanto, que a categoria em todos os sentidos decisiva do pensamento do jovem Illich seja justamente o conceito escatológico de reino, que sempre foi reconhecido como o conteúdo central da pregação de Jesus e que, todavia, foi progressivamente desaparecendo do vocabulário e da prática pastoral da Igreja.

Nessa perspectiva, todo o pensamento de Illich se mostra como um pensamento do reino, de sua especial presença entre nós, já realizada e, todavia, ainda por vir. A incompletude que está aí em questão não é de ordem temporal, não implica uma sucessão cronológica nem um cumprimento a se realizar no futuro. Completude e incompletude estão ambas contidas no presente, porque "só no presente o Senhor redime. Nós não temos ideia se existe um futuro". Não há, nesse sentido, como pretende a Igreja, uma "história da salvação", uma oikonomia divina que se manifesta e cumpre progressivamente na história. A salvação não tem história, "o Senhor está vindo neste momento" e, aqui e agora, o crente testemunha sua vinda (daí, no pensamento subsequente de Illich, a constante desconfiança em relação ao futuro: "Não permitirei que a  sombra do futuro se estabeleça sobre os conceitos por meio dos quais procuro pensar aquilo que é e aquilo que foi"). 

Illich compara várias vezes a presença do reino (escrito significativamente com minúscula) à compreensão de uma piada ou de uma brincadeira - o crente e o não crente, escreve ele, são como dois homens que escutam uma piada: "Os dois compreendem o sentido das palavras, mas só um ri, isto é, compreende a história". A experiência do evento do reino não implica, para Illich - segundo o paradigma que dominou a política ocidental, compreendida aquela da Igreja -, um ulterior evento histórico a ser realizado no futuro. Ela coincide integralmente com o instante presente, no qual quem compreendeu o anúncio dele dá testemunho rindo. Como Illich sugere na entrevista sobre o sentido de Cuernavaca publicada no apêndice deste volume: "Devemos ser homens que jogam porque sabemos... que o próprio Deus não poderia ter criado o mundo com outro objetivo senão para com ele brincar, ainda que certamente poderia tê-lo criado para fazer com que sirva a algo por meio da 'inutilidade', por meio do 'jogo'." É esse inútil jogo que com obstinada e irredutível seriedade Illich praticará por toda sua vida.


Giorgio Agamben. Prefazione. In.: Ivan Illich. Celebrare la consapevolezza. Opere complete. Vol. I. Scritti 1951-1971, a cura di Fabio Milana. Vincenza, Neri Pozza: 2020. pp. 9-11. Trad.: Vinícius N. Honesko

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