sábado, 20 de novembro de 2010

Bolonha


Rossa, terracotta, vermelha de sangue.
Sob pórticos mórbidos como ventres enaltecidos,
fantasmas de tempos outros.
Na sandice de uma mente espectral.

Pulam os tempos, pulam memórias.
E Bolonha, a vermelha, vem do despertar
das vozes acessas nos recondidos cantos,
de rumores emergentes que estremecem meu coração.

Ecco, tanta luz apagada por rastros brandos,
tanta voz audível em frequências absurdas
e o solar desencanto do sangue a queimar.
Sub species aeternitatis.

Vermelho, terracotta, rosso,
baluartes de eras estranhas, de sons abafados.
Lamúrias de mulheres a chorar pelos mortos,
crianças a gritar pelas mães desaparecidas.

Fogo do céu e a bomba do novo mundo.
Figuras do tempo que em tempos de fim
dos tempos o tempo parece aplacar.
Sub species aeternitatis.

Sôfrego, caminhando e chorando
sob pórticos que dizem o não dito de uma história.
Irrompe o som, irrompe a lua,
são destronados os imperadores e malditos os papas.

O cânone está posto sob o vermelho das arcadas.
A vida sente o cheiro do desespero,
a pólvora não mais incomoda.
Canto do sábio perdido, do ignorante encontrado.

Bolonha, terracotta, terra cozida.
Tantos vermelhos pintam seu céu,
tanta luz se esconde nos seus pórticos
e vidas inteiras se dobram nos seus vicolos.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Ousia


Tenha eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais

Pois, por mais consciência que eu tenha, tudo é inconsciência

Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,

Porque é preciso existir para se criar tudo,

E existir é ser insconsciente, porque existir é ser possível haver ser,

E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.



Álvaro de Campos (Fernando Pessoa, "Poesia completa de Álvaro de Campos", Companhia das Letras, 2007. p, 255).

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Virtú


(imagem Zé Medeiros)


o temor do erro
simplemente trai
o erro do temor

domingo, 17 de outubro de 2010

Terror


O que não necessita de ninguém, vive por si, não impõe exigências, sempre estará lá (mesmo quando nenhum humano restar).

Imperturbável, sombrio, aleatoriamente necessário.

Terror à razão em vigília, a mais pura imanência fechada em si.

Uma mônada, um aleph irracional representando, em seu enclausuramento asfixiante, o mundo e sua arbitrariedade.

Certamente está repleto de moscas, vermes e criaturas do submundo.

Em mim, apesar de não conhecê-lo (mas consigo espreitá-lo vagamente aos domingos, quando estou sozinho) e de nenhum prisma efetivo influenciar minha vida, causa-me uma profunda melancolia.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Memórias



O homem de boa memória nunca se lembra de nada, porque nunca esquece de nada. Sua memória é uniforme, uma criatura de rotina, simultaneamente condição e função de seu hábito impecável, um instrumento de referência e não de descoberta. A apologia de sua memória – “lembro-me como se fosse ontem...” – é também seu epitáfio e também indica a expressão exata de seu valor. Não pode lembrar-se de ontem, na mesma medida em que não se pode lembrar de amanhã. Pode apenas contemplar o dia de ontem, pendurado para secar juntamente com o feriado estival de maior índice de precipitação pluviométrica que se tem registrado, pouco adiante no varal. Porque sua memória é um varal, e as imagens de seu passado são roupa suja redimida, criados infalivelmente complacentes de suas necessidades de reminiscência. (...)

Estritamente falando, só podemos lembrar do que foi registrado por nossa extrema desatenção e armazenado naquele último e inacessível calabouço de nosso ser; para o qual o Hábito não possuía a chave – e não precisa possuir; pois lá não encontrará nada de sua útil e hedionda parafernália de guerra. Mas aqui, nesse ‘gouffre interdit à nos sondes’, está armazenada essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas aglutinações, que os simplistas chamam de mundo; o melhor, por que acumulado sorrateira, dolorosa e pacientemente a dois dedos do nariz da vulgaridade, a fina essência de uma divindade cuja disfazione sussurrada afoga-se na vociferação saudável de um apetite que abarca tudo, a pérola que pode desmentir nossa carapaça de cola e cal. (...) Desta fonte profunda, Proust alçará seu mundo. Sua obra não é um acidente, mas seu salvamento o é.


BECKETT, Samuel. Proust. (Tradução Arthur Nestrovisky). São Paulo: Cosac & Naify, 2003. pp. 29-31.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Do passado o que importa é o que se esquece...

"O que importa, o que é destinado a sobreviver, sobrevive aparentemente em segredo, na realidade no modo mais óbvio, uma vez que sobrevive como matéria existente de quem experimentou o passado: como presente vivente, não como memória de passado morto."
Furio Jesi

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Elogio a Bartleby - ou contra a pseudoatividade



(...) Isto nos leva à noção de falsa atividade: as pessoas não agem somente para mudar alguma coisa, elas podem também agir para impedir que algum coisa aconteça, de modo que nada venha a mudar. Aí reside a estratégia típica do neurótico obsessivo: ele é freneticamente ativo para evitar que a coisa real aconteça. Por exemplo, numa situação de grupo em que alguma tensão ameaça explodir, o obsessivo fala o tempo todo para impedir o momento embaraçoso do silêncio que compeliria os participantes a enfrentar abertamente a tensão subjacente. No tratamento psicanalítico, neuróticos obsessivos falam constantemente, inundando o analista com anedotas, sonhos, insights: sua atividade incessante é sustentada pelo temor subjacente de que, se pararem de falar por um instante, o analista vá lhes fazer a pergunta que realmente importa - em outras palavras, eles falam para manter o analista imóvel.


Mesmo em grande parte da política progressista de hoje, o perigo não é a passividade, mas a pseudoatividade, a ânsia de ser ativo e participar. As pessoas intervêm o tempo todo, tentando "fazer alguma coisa", acadêmicos participam de debates sem sentido; a coisa realmente difícil é dar um passo atrás e retirar-se daquilo. (...) Contra este modo interpassivo, em que somos ativos o tempo todo para assegurar que nada mudará realmente, o primeiro passo verdadeiramente decisivo é retirar-se para a passividade, e recusar-se a participar. Esse primeiro passo limpa o terreno para uma atividade verdadeira, para um ato que mudará efetivamente as coordenadas da cena.






ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan. (trad. Maria Luiza Borges). Rio de Janeiro: Zahar, 2010. pp. 36-37.