terça-feira, 24 de agosto de 2010

Perspectivas... já de outrora...

Perdu dans ce vilain monde, coudoyé par les foules, je suis comme un homme lassé dont l’œil ne voit en arrière, dans les années profondes, que désabusement et amerture, et devant lui qu’un orage où rien de neuf n’est contenu, ni enseignement ni douleur.
Le soir où cet homme a volé à la destinée quelques heures de plaisir, bercé dans sa digestion, oublieux — autant que possible — du passé, content du présent et résigné à l’avenir, enivré de son sang-froid et de son dandysme, fier de n’être pas aussi bas que ceux qui passent, il se dit en contemplant la fumée de son cigare : Que m’importe où vont ces consciences ?

Charles Baudelaire. Fusées.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A barbárie é silenciosa


Sem a filosofia, sem a literatura, o mundo continuará sua marcha desenfreada
O fluxo da rodovia não necessita de Aristóteles, Kant ou Kierkegaard.
Tampouco a perambulação do cambista pai de duas meninas, morador de Parelheiros
Ninguém espernearia e arrancaria os cabelos se Max Brod, antes mesmo de se tornar o amigo célebre, tivesse comprado um galão de gasolina e riscado um mísero palito de fósforos.
Os asfaltos sem flor, as esquinas e seus anônimos apressados não verteriam lágrimas por um Drummond eternamente "deletado".
E se o filho de Fenareta tivesse sido morto na guerra do Peloponeso, ou por uma meningite na primeira infância, a filosofia socrática - nem Platão, nem Antístenes, Xenofonte ou Diógenes de Sínope - não faria falta a ninguém.
Nem as bibliotecas sentiriam a ausência de um Borges que na juventude optou pela alfaiataria.
Kafka, Kant, Drummond, Rosa... etc. Produtores de inutensílios - de excessos inutilizáveis (felizmente!). O problema básico da cultura é que seu extermínio pode ser silencioso, não são necessárias bombas nem derramamento de sangue.
A perplexidade surgiu depois de perceber que, na tarefa inglória de ser professor "da área de humanidades" para uma turma de técnicos, a incompreensão que estes possam ter de Montaigne ou Voltaire não mudará em nada suas vidas - talvez até os torne mais "felizes", mais "aptos" e obstinados para aquilo em que estão se "aperfeiçoando".
É como se Voltaire simplesmente não tivesse escrito nada, como se Montaigne tivesse se recolhido ao seu castelo e extraviado todos os seus manuscritos. Tanto faz se Brod queimou ou manteve intactos os textos de Kafka!
Não podemos amar a mulher que nem chegamos a conhecer. Isso não altera em nada nossas vidas. Conhecê-la talvez seria a "porta para outra vida nesta mesma vida". Mas, até aí, tudo paira na potencialidade, neste magma de virtualidades e consumações que formam o mundo.
Neste duro e espinhoso calvário que se tornou a terra, o pensamento é uma frágil bolha de sabão.
O silêncio destes espaços filisteus, cada vez mais vastos e desérticos, me apavora.


Imagem Peter Marlow

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A marcha da História

Miao Xiaochun: The Last Judgement in Cyberspace 2006


Eu me encontrei no marco do horizonte
Onde as nuvens falam,
Onde os sonhos têm mãos e pés
E o mar é seduzido pelas sereias.

Eu me encontrei onde o real é fábula,
Onde o sol recebe a luz da lua,
Onde a música é pão de todo dia
E a criança aconselha-se com as flores.

Onde o homem e a mulher são um,
Onde espadas e granadas
Transformaram-se em charruas,
E onde se fundem verbo e ação.

Murilo Mendes. As Metamorfoses. in.: Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 332.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Sais de uma lágrima que se vai

O estupor de momentos solenes na solidão não é traço de impotência, de falta de vontade, de vontade de solidão. Não, não é nada disso e não compreendem nada os que isso insinuam a respeito de outros e de si mesmos.
E o piano não canta e não soa mais do que uma verdade insólita que me devassa neste momento de quietude e solidão.
Verdade insólita, insipiente, inconsequente. Que consequências tem uma vida? Que clamores por estes negros que vejo tão sofridos por aqui?
Lasciva, pérfida, a vida é inconsequente e a voz do homem o último canto de desespero num mar de mansidão que se exaure em cada gota de lágrima derramada.
No choro a verdade se esparrama por vento, sol, chuva e canto.
O brilho da fração de luz que se refrata na gota que cai, numa intermitência de segundos, faz o choro ser a expressão mais pura da existência humana.
Milênios de clamores não são mais que sussurros diante da verdade de uma lágrima... tão límpida, tão perfeita em seu movimento... movimento sempre de queda.
E o anjo caído chora a verdade eterna perdida, remoendo e rangendo os dentes.
Se não esperasse, se não olhasse a queda de baixo, riria e dançaria com o brilho da gota de lágrima que cai.
Ouvir o espatifar da gota salgada... só no convívio íntimo consigo mesmo.
Não restam sais, nem em seus mínimos cristais. O abandono se cumpre ao som triste desse piano que soa, só
para mim, só...

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Duração e diferença



Eis por que o segredo do bergsonismo está sem dúvida em Matéria e Memória; aliás, Bergson, diz que sua obra consistiu em refletir sobre isto: que tudo não está dado. Que tudo não esteja dado, eis a realidade do tempo. Mas o que significa uma tal realidade? Ao mesmo tempo, que o dado supõe um movimento que o inventa ou cria, e que esse movimento não deve ser concebido à imagem do dado. O que Bergson critica na idéia de possível é que esta nos apresenta um simples decalque do produto, decalque em seguida projetado ou antes retroprojetado sobre o movimento de produção, sobre a invenção. Mas o virtual não é a mesma coisa que o possível: a realidade do tempo é finalmente a afirmação de uma virtualidade que se realiza, e pra o qual realizar é inventar. Com efeito, se tudo não está dado, resta que o virtual é o todo. Lembremo-nos que o impulso vital é finito: o todo é o que se realiza em espécies, que não são à sua imagem, como tampouco são elas à imagem umas das outras; ao mesmo tempo, cada uma corresponde a um certo grau do todo, e difere por natureza das outras, de maneira que o próprio todo apresenta-se, ao mesmo tempo, como a diferença de natureza na realidade e como coexistência dos graus de espírito.


Se o passado coexiste consigo como presente, se o presente é o grau mais contraído do passado coexistente, eis que esse mesmo presente, por ser o ponto preciso onde o passado se lança em direção ao futuro, se define como aquilo que muda de natureza, o sempre novo, a eternidade da vida. Compreende-se que um tema lírico percorra toda a obra de Bergson: um verdadeiro canto em louvor ao novo, ao imprevisível, à invenção, à liberdade. Não há aí uma renúncia da filosofia, mas uma tentativa profunda e original para descobrir o domínio próprio da filosofia, para a atingir a própria coisa para além da ordem do possível, das causas e dos fins. Finalidade, causalidade, possibilidade estão sempre em relação com a coisa uma vez pronta , e supõe sempre que “tudo” esteja dado. Quando Bergson critica estas noções, quando nos fala em indeterminação, ele não nos está convidando a abandonar as razões, mas a alcançarmos a verdadeira razão da coisa em vias de se fazer, a razão filosófica, que não é determinação, mas diferença.


Deleuze, Gilles. Bergson, 1956 (Trad. Lia Guarino). In: Bergsonismo. São Paulo: Ed.34, pp. 137-138.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Cortázar, fotógrafo.


Entre las muchas maneras de combatir la nada, una de las mejores es sacar fotografías, actividad que debería enseñarse tempranamente a los niños pues exige disciplina, educación estética, buen ojo y dedos seguros. No se trata de estar acechando la mentira como cualquier repórter, y atrapar la estúpida silueta del personajón que sale del número 10 de Downing Street, pero de todas maneras cuando se anda con la cámara hay como el deber de estar atento, de no perder ese brusco y delicioso rebote de un rayo de sol en una vieja piedra, o la carrera trenzas al aire de una chiquilla que vuelve con un pan o una botella de leche. Michel sabía que el fotógrafo opera siempre como una permutación de su manera personal de ver el mundo por otra que la cámara le impone insidiosa (ahora pasa una gran nube casi negra), pero no desconfiaba, sabedor de que le bastaba salir sin la Contax para recuperar el tono distraído, la visión sin encuadre, la luz sin diafragma ni 1/250. Ahora mismo (qué palabra, ahora, qué estúpida mentira) podía quedarme sentado en el pretil sobre el río, mirando pasar las pinazas negras y rojas, sin que se me ocurriera pensar fotográficamente las escenas, nada más que dejándome ir en el dejarse ir de las cosas, corriendo inmóvil con el tiempo. Y ya no soplaba viento.


(Cortázar. Trecho de "Las babas del diablo", conto inspirador do filme "Blow-Up", de M. Antonioni).

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Viscosidade e asco


Há uma viscosidade asquerosa entre os medíocres, algo que cheira mal, podre. A onda de gozo e satisfação patética (que, de fato, nada de pathos contém) dos seres medíocres das redondezas - os novos pequenos burgueses plenos, os escravos incônscios do novo poder fascista invisível do contemporâneo - se parece com um grande cocho onde qualquer porcaria colocada à disposição é deglutida de uma só vez. Os brinquedos eletrônicos, os sons fáceis e os motivos uniformes - essas papinhas tecnológicas de fácil absorção - são como o uníssono ponto final da história; são os apetrechos indispensáveis de entrada no reino divino para qualquer um destes seres medíocres. Os objetos que adornam os paramentos de todo e qualquer medíocre são as trompetas - ora minguantes - dos anjos decaídos de outrora. Ao contrário destas, que visavam cantar a glória de um (finado) deus altíssimo (falo sem tom elegíaco), as atuais sucatas tecnológicas só cantam uma coisa: o fedor de merda que exalam os seus portadores.
A fedentina se espalha, impregnando o globo e arrastando consigo os olhares clamorosos de todas as mariposas de asas gordurosas que se auto-intitulam humanos. (É o show da vida, dizem os mais idiotas.) Toda a parafernália tecnológica (técnica cujo controle e uso não é de competência de ninguém: qualquer pateta semovente é capaz de manipular e deglutir os altos produtos da tecnologia contemporânea) é utilizada como subterfúgio para anestesiar qualquer tipo de sensação, sentimento... que dirá pensamento. A vida passa aprisionada nestes dispositivos que conformam a praga humana e é nesta caixa que se produz a viscosidade. Uma remela asquerosa que gruda na pele de todos; e a mediocridade é cantada como numa festa: gozando em público (e em privado) a merda que exalam, os seres fétidos apodrecem a cada passo, a cada suspiro, a cada sinal vital.
De resto, um tapume de felicidade (!?) é colocado como veste de dia sacrificial, e muitos são os seus nomes: qualidade de vida, segurança, consumo sustentável, vida plena... os mais variados vômitos dessa civilização que assina seu atestado de insanidade com os louros dos sãos, cantando glórias à própria merda, ao próprio mal cheiro, à própria viscosidade que gruda em todos e faz deles a massa que queima aos poucos. Os medíocres caminham a passos largos para o fim sem perceber o movimento que fazem, anestesiados e inertes, cumprindo rigorosamente (diria religiosamente) os atos do mais alto culto contemporâneo: cantar o fedor, cantar a merda da existência com os requintes de um dandy.

imagem: Martin Parr, 1985.