segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Fragmento Teológico-Político*


Somente o próprio messias termina todo devir histórico, no sentido em que apenas ele absolve, cumpre, cria a relação desse devir com o próprio elemento messiânico. É porque nenhuma realidade histórica pode por si mesma querer e se referir ao plano messiânico. É porque o reino de Deus não é o telos da dýnamis histórica; ele não pode ser posto como objetivo. Historicamente, não é um objetivo, é um termo. É porque a ordem do profano não pode ser construída sobre a idéia do reino de Deus, é porque a teocracia não tem um sentido político, mas somente um sentido religioso. O maior mérito do Espírito da utopia de Bloch[1] é o de ter vigorosamente recusado toda significação política à teocracia.
A ordem do profano deve se edificar sobre a idéia de felicidade. A relação dessa ordem com o elemento messiânico é um dos ensinamentos essenciais da filosofia da história. Essa relação condiciona, de fato, uma concepção mística da história, cujo problema pode ser exposto em uma imagem. Se se representa por uma flecha o objetivo para o qual se exerce a dýnamis do profano, por uma outra flecha a direção da intensidade messiânica, seguramente a busca pela felicidade da livre humanidade tende a se desviar dessa orientação messiânica. Se o profano não é uma categoria desse reino, ele é uma categoria, e entre as mais pertinentes, de sua imperceptível aproximação. Pois na felicidade tudo aquilo que é terrestre aspira seu aniquilamento, mas é somente na felicidade que esse aniquilamento lhe é prometido. – Mesmo se é verdade que a intensidade messiânica imediata do coração, de cada indivíduo no seu ser interior, se adquire através da infelicidade, no sentido do sofrimento. No movimento espiritual da restitutio in integrum que conduz à imortalidade, corresponde uma restitutio secular que conduz à eternidade de um aniquilamento, e o ritmo dessa realidade secular eternamente evanescente, evanescente na sua totalidade, evanescente na sua totalidade espacial, mas também temporal, o ritmo dessa natureza messiânica é a felicidade. Pois messiânica é a natureza em nome de sua eterna e total evanescência. Procurar essa evanescência, mesmo para esses níveis do homem que são naturais, tal é a tarefa da política mundial, cujo método deve ser chamado niilismo.


* N. do T. francês: Sobre a data deste texto, inédito até sua publicação nas Schriften, I, p. 511 sq (Francfort-sur-le-Main, 1955), Gershom Scholem nos escreve, de Jerusalém, em 11 de novembro de 1970: “Apoiando-me em razões internas, ordem das idéias e terminologia, tenho por indubitável que estas páginas foram compostas em 1920-21, em ligação com “Para uma crítica da violência”, e não contêm ainda nenhuma relação com as concepções marxistas. Elas se situam sobre o terreno de um anarquismo metafísico, correspondendo às idéias do autor anteriores à 1924. Adorno as datou como sendo de 1937, porque é neste ano que Benjamin lhe tinha lido esse texto como algo novo. A que eu respondo que fora uma brincadeira, a fim de saber se Adorno tomaria um texto místico-anarquista por um recente estudo marxista. Aliás, Benjamin era muito acostumado com essas experiências.” (MdG)Parece que no ano de 1937, os trabalhos de Benjamin no domínio da filosofia da história o tinham levado a relançar este texto já antigo, mas que conservava, aos seus olhos, toda sua atualidade. A “brincadeira”, se brincadeira havia, não era de toda forma gratuita. (PR)


[1] N. do T. francês: Ernst Bloch, Geist der Utopie, Munich-Leipzig, Duncker & Humblot, 1918 (uma nova versão dessa obra será publicada em Munique em 1923; é sobre esse último texto que terá sido estabelecida a tradução francesa: O Espírito da utopia, trad. A.-M. Lang e C. Piron, Paris, Gallimard, 1977). (PR)


(BENJAMIN, Walter. Oeuvres I. Paris: Folio essais, ed. Gallimard, 2000. pp. 263-265. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Um comentário:

Anônimo disse...

"Pois na felicidade tudo aquilo que é terrestre aspira seu aniquilamento, mas é somente na felicidade que esse aniquilamento lhe é prometido"

Acho que essa é 'uma das' chaves do texto, a felicidade como auréola do tempo messiânico.

Abç

(jnf)