domingo, 21 de outubro de 2007

Baudelaire ou a Mercadoria Absoluta



A respeito da Exposição Universal de Paris de 1855 temos um testemunho excepcional. Baudelaire, que a visitou, deixou-nos as suas impressões em três artigos que apareceram, a breve distância de tempo um do outro, em dois jornais parisienses. É verdade que Baudelaire se limita a falar das belas artes e que seus artigos não são aparentemente diferentes das muitas crônicas escritas por ele para os Salons de 1845 e 1846; contudo, observando melhor, não haviam passado desapercebidas à sua prodigiosa sensibilidade a novidade e a importância do desafio que a mercadoria estava propondo para a obra de arte.

No primeiro artigo da série (que traz o título significativo De l´idée moderne du progrès appliquée aus beaux arts), descreve a sensação que o espetáculo de uma mercadoria exótica provoca em um visitante inteligente, além de mostrar-se consciente de que a mercadoria exige do espectador uma atenção de um novo tipo. "Que dirait un Winckelmann moderne" - pergunta-se ele - "en face d´un produt chinois, produit étrange, bizartre, contourné dans sa forme, intense par sa couleur, et quelque fois délicat jusqu´à l´évanouissement?" "Cependant" - responde ele - "c´est un échantillon de la beauté universelle; mais il faut, pour qu´il soit compris, que le critique, le sectateur opère en lui-même une transformation qui tient du mystère..."[1]. Não é por acaso que a idéia na qual se fundamenta o soneto sobre as Correspondances (que em geral é interpretado como a quintessência do exoterismo baudelairiano) tenha sido enunciada justamente no início do artigo sobre a Exposição Universal de 1855. Assim como Bosch, no limiar do capitalismo, havia tirado do espetáculo dos primeiros grandes mercados internacionais de Flandres os símbolos para ilustrar a sua concepção mística adamítica do Reino milenário, também Baudelaire, no início da segunda revolução industrial, tira da transfiguração da mercadoria presente na Exposição Universal a atmosfera emocional e os elementos simbólicos da sua poética. A grande novidade, que a Exposição já havia tornado evidente para um olhar atento como o seu, era que o mercado tinha deixado de ser um objeto inocente, cujo gozo e cujo sentido se esgotavam no seu uso prático, para carregar-se da inquietante ambigüidade a que Marx aludiria doze anos mais tarde, falando do seu "caráter fetichista", das suas "sutilezas metafísicas" e da suas "argúcias teológicas". Uma vez que a mercadoria tivesse libertado os objetos de uso da escravidão de serem úteis, a fronteira que separava desses últimos a obra de arte e que os artistas, a partir do Renascimento, tinham trabalhado incansavelmente para edificar, estabelecendo a supremacia da criação artyística sobre o "fazer" do artesão e do operário, tornar-se-ia extremamente precária.

Frente à féerie da Exposição, que começa a fazer convergir para a mercadoria o tipo de interesse tradicionalmente reservado à obra de arte, Baudelaire aceita o desafio e leva o combate diretamente para o próprio terreno da mercadoria. Conforme admitiu implicitamente ao falar do produto exótico como se fosse uma "amostra da beleza universal", ele aprova as novas características que a mercadorização imprime no objeto e está consciente do poder de atração que os mesmos deveriam exercer fatalmente sobre a obra de arte; mas, ao mesmo tempo, quer subtraí-los à tirania do econômico e à ideologia do progresso. A grandeza de Baudelaire diante da intromissão da mercadoria residiu no fato de ter respondido a essa intromissão, transformando em mercadoria e em fetiche a própria obra de arte. Ele separou, também na obra de arte, o valor de uso do valor de troca, a sua autoridade tradicional da sua autenticidade. A partir daí, tem-se a sua implacável polêmica contra toda interpretação utilitarista da obra de arte e a insistência com que proclama que a poesia não tem outro fim senão ela mesma. A partir daí também, a sua insistência no caráter inapreensível da experiência estética e a sua teorização do belo como epifania instantânea e impenetrável. A aura de uma intocabilidade gélida, que começa a partir desse momento a envolver a obra de arte, é o equivalente do caráter fetichista que o valor de troca imprime à mercadoria.

Mas o que confere à sua descoberta um caráter propriamente revolucionário é que Baudelaire não se limitou a reproduzir na obra de arte a cesura entre valor de uso e valor de troca, mas se propôs a cria uma mercadoria na qual a forma de valor se identificasse totalmente com o valor de uso, uma mercadoria, por assim dizer, absoluta, na qual o processo de fetichização fosse levado até o extremo de anular a própria realidade da mercadoria enquanto tal. Uma mercadoria em que valor de uso e valor de troca se anulariam mutuamente, e cujo valor residiria, por esse motivo, na inutilidade, e cujo uso, na sua intocabilidade, não é mais uma mercadoria: a mercadorização absoluta da obra de arte é também a abolição mais radical da mercadoria. A partir daí, tem-se a desenvoltura com que Baudelaire põe a experiência do choc no centro do próprio trabalho artístico. O choc é o potencial de estranhamento de que se carregam os objetos quando perdem a autoridade que deriva do seu valor de uso e que garante a sua inteligibilidade tradicional, a fim de assumirem a máscara enigmática da mercadoria. Baudelaire compreendeu que, se a arte quisesse sobreviver na civilização industrial, o artista deveria procurar reproduzir na sua obra a destruição do valor de uso e da inteligibilidade tradicional, que estava na raiz da experiência do choc: desta maneira, ele teria conseguido fazer da obra o próprio veículo do inapreensível e restaurar na própria inapreensibilidade um novo valor e uma nova autoridade. Isso significava, porém, que a arte deveria renunciar às garantias que lhe provinham da sua inserção em uma tradição, pela qual os artistas construíam os lugares e os objetos nos quais se realizava a incessante soldagem entre passado e presente, entre velho e novo, a fim de fazer da própria autonegação a sua única possibilidade de sobrevivência. Como Hegel já havia entendido, ao definir como um "nada que se auto-anula" as experiências mais avançadas dos poetas românticos, a autodissolução é o preço que a obra de arte deve pagar à modernidade. Por isso, Baudelaire parece atribuir ao poeta uma tarefa paradoxal: "celui qui ne sait pas saisir l´intangible" - escreve ele no ensaio sobre Poe - "n´est pas poète"; e define a experiência da criação como um duelo de morte "où l´artiste crie de frayer avant d´être vaincu".[2]

Foi sorte que o fundador da poesia moderna tenha sido um fetichista! Sem a sua paixão pelo vestuário e pela cabeleira feminina, pelas jóias e o maquillage (paixão expressa sem reticências no ensaio sobre Le peintre de la vie moderne e à qual esperava consagrar um minucioso catálogo do vestuário humano que nunca levou à execução), dificilmente Baudelaire teria podido sair vitorioso do seu confronto com a mercadoria. Sem a experiência pessoal da milagrosa capacidade do objeto-fetiche de tornar presente o ausente, através da sua própria negação, talvez ele não tivesse ousado atribuir à arte a tarefa mais ambiciosa que jamais um ser humano confiou a uma criação sua: a apropriação mesma da irrealidade.

[1] "O que diria um Winckelmann moderno" - pergunta-se ele - "frente a um produto chinês, produto estrangeiro, bizarro, contornado em sua forma, intenso por sua cor, e às vezes delicado a ponto de desvanecer? "Contudo" - responde ele - "é uma amostra da beleza universal; mas importa, para que ele seja compreendido, que o crítico, o espectador efetue nele mesmo uma transformação que tem algo de misterioso..."

[2] "Quem não sabe captar o intangível" - escreve ele no ensaio sobre Poe - "não é poeta"; e define a experiência da criação como um duelo de morte "no qual o artista grita de pavor antes de ser vencido".

(AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2007. pp. 73-76. Tradução: Selvino Assmann)

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