domingo, 2 de janeiro de 2011

Collegio di Spagna


Abriu um sorriso involuntário naquela manhã de domingo. Estava caminhando, passando pela estrada que ligava Bolonha até Saragoza quando, ao primeiro toque da guitarra de Billy Corgan, em Today, aquele sorriso lhe veio. Olhava para os fundos do Collegio di Spagna, para as pinturas que perto do telhado traziam uns leões de brasão e a máxima latina - que sempre estava presente nos mapas de navegação pré-colombianos - Non plus ultra. Realmente era aquela uma conjuntura para um sorriso espontâneo, feliz, de uma manhã de domingo. A caminhada matinal iria continuar, mas ele "não devia ultrapassar". O que exatamente? Talvez as inscrições no dorso do edifício do Collegio, que teve alguns hóspedes ilustres como Cervantes e Inácio de Loyola - além de Carlos V na ocasião de sua coroação em Bolonha -, queria lhe dizer algo para o dia, somente para o dia: não ultrapassar aquele dia. E talvez a letra simplista de Corgan era algo que iria ressoar todo o domingo, tal qual a máxima latina: Today is the greateast/ Day I've ever known/ Can't live for tomorrow,/ tomorrow's much too long.
Os impedimentos que supostamente paravam os navegadores do velho mundo, as grandes bestas do mar, os fins da Terra, foram destronados numa simples caminhada matinal. O Collegio, onde repousou Carlos V em meados de janeiro e fevereiro de 1530, dera o seu impulso à deposição dos limites. Pensando que no tal Collegio também estiveram hospedados o fundador da Companhia de Jesus e o escritor do Quixote, não lhe restava outra coisa senão esboçar um novo sorriso. A companhia de Inácio seria, como é notório, o elemento chave para a disseminação do cristianismo pelos Novos Mundos (custasse o que custasse, e, como se sabe, custou muito sangue); já as ululantes aventuras do herói ibérico eram para ele como que o motor propulsor para tentar realmente a todo custo esmagar o non plus ultra. Tanto os jesuítas como Dom Quixote não respeitaram a farsa do limite entre real e irreal (limites que também Murilo Mendes, outro estrangeiro que se refugiou na Itália por um tempo, dizia não reconhecer). Os primeiros, no entanto, assim o fizeram com esperança no ultra-mundano, o segundo, por sua vez, por simples descaso com seu juízo, num delírio extremamente real ou irreal - aliás, pouco importa a divisão inexistente.
Mas para ele que caminhava e escutava que hoje era o melhor dos dias toda a confluência de passado, presente e futuro se perdia num sorriso. Era assim que a vida se lhe mostrava, às vezes uma fragrância leve e adocicada, outras tantas um odor ocre como daquelas catacumbas palermitanas, onde tantos ainda esperam pelo outro mundo - com extremo respeito pela máxima latina - vestidos em trajes com os quais gostariam de adentrar o salão de festas da eternidade. Porém, como todo oximoro, ao mesmo tempo doce e amarga, a vida era algo que poderia ser espontânea nos seus paradoxos, como o sorriso da manhã, manhã esta que tinha tudo para ser o início de mais um dia cabisbaixo de solidão. Agora ele ria e, ao contrário do anúncio de quando despertou, estava feliz. O momento era de uma reflexão irreverente, com o sorriso nos cantos da boca: pensava em como o jogo político se armara para a coroação de Carlos V, em como Inácio - que durante parte da vida foi um dos súditos de Carlos - e seus colegas se reuniram em Montmartre para pensar uma ordem religiosa que teria como objetivo se lançar fora do interdito do non plus ultra, em como Cervantes - que nasceu súdito de Carlos - fazia pantomima das aventuras cavalheirescas e se deixava ir para além de qualquer non plus ultra sem precisar sair daquilo que lhe proporcionava sua imaginação. De certo modo, ele agora via como tudo na vida lhe parecia ridículo, como toda a história não era senão um trabalho hercúleo de carregar nas costas os delírios alheios. Respeitar ou não respeitar o non plus ultra não lhe dizia mais nada. Ele sabia que somente deveria estar no seu presente, mesmo que revendo memórias suas e alheias, mesmo que paradoxalmente lhe caísse no colo a tarefa de respeitar e não respeitar os confins da sua existência. Agora ele lia este texto que escrevo sobre ele e pensava, ainda com o sorriso matinal esboçado em sua face suada: tudo é uma grande real ilusão.

Um comentário:

Jnf disse...

é o despertar! Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor... Minhas saudações (e que ótimo texto!).