domingo, 12 de junho de 2011

Nota sobre um pôr do sol



O pôr do sol estava realmente lindo: o tom empalidecido pela proximidade do inverno, as montanhas atrás das quais ele iria se esconder, o mar calmo, as insinuações de nuvens. Eu andava à procura de um texto que havia perdido ali à beira-mar. Porém, acho que não o encontrei. Pensando bem, talvez tenha encontrado alguns pedaços dele, mas já me é impossível transcrevê-los, e penso que o perdi definitivamente. A luz do sol era-me um guia na busca, mas mesmo assim de nada me adiantou. Deixei a busca e comecei a prestar atenção na movimentação à minha volta: todos pareciam querer apreender aquele pôr do sol magnífico; pessoas que retiravam câmeras fotográficas na esperança de guardar aquele momento, como que querendo emoldurar aquele disco luminoso (e, talvez, muitos nem mesmo verão aquelas fotos, as quais poderão ficar perdidas nas memórias de aparelhos celulares para um dia serem apagadas indistintamente para para liberação de espaço na memória no aparelho).
Comecei a pensar em como o sol atrai o homem desde sempre; em como mitos e religiões foram formados diante da imagem solar; em como civilizações se formaram e se extinguiram sob essa luz. Ainda ali, à beira-mar, lembrei-me de uma história solar que sempre me impressionava: aquela pequena medalha de bronze incrustrada num canto do piso da catedral de Chartres. Todo solstício de verão a luz do sol passa por um ponto específico do vitral de Saint Apollinaire e ilumina a medalha no chão. Todo o jogo entre o sol, a catedral, a religião, a construção milimetricamente calculada para a convergência da luz naquele pequeno ponto e o vitral de Apolinário - nome que, de certo modo, é uma variação de Apollo, o deus romano do sol - causava-me certo embaraço, certa sensação de pequenez. E, naquele momento, as câmeras que insistentemente tentavam capturar aquela imagem me pareciam também uma espécie de dedicação religiosa, de exercício de reencontro com uma espécie de força sagrada que emanaria de todo o existente.
Discussões e condenações, mortes e cismas, muito se fez e se desfez sob a luz do sol. O nome Apolinário, que agora me tomava, fez-me lembrar também de um dia frio e sem sol. Era o dia em que entrei na basílica de Sant'Apollinare Nuovo. O espaço frio daquela igreja dava, porém, mostras da beleza daqueles mosaicos em ouro, a única coisa de brilho luminoso naquelas horas. A igreja, que teve ordem de construção dada por Teodorico, foi primeiramente um lugar de culto ariano e só depois, sob ordens do imperador Giustiniano é que passou a ser de culto católico. Imaginei como os debates sobre a natureza divina ou não do Cristo foram também em grande medida influenciadas pelas ideias pagãs (e, com isso, pelo deus solar); pensei em como o imperador havia tomado aquela igreja em Ravenna e em como, tentando recompor o Império, procurou um modo de organizá-lo (e o Corpus Iuris Civilis surge assim dessa empreitada do Oriente no Ocidente para neste fixar suas raízes); pensei nas guerras, nas disputas teológicas, nos embates por território, nas capacidades infindáveis de violência do homem, mas era a prótese de som das máquinas fotográficas (aquela tentativa de imitação do som do mecanismo das antigas Polaróides que os dispositivos eletrônicos tentam imitar) que me tomava a atenção. E me perguntava: como não ser melancólico diante da decrepitude histórica travestida de progresso? Como encarar a tarefa de viver num mundo no qual pouco importam as histórias ou as maneiras de se relacionar entre as pessoas, mas tão somente o como possuir coisas (mercadorias) impossíveis de se possuir? Era, de fato, um momento em que pensava alhures, em que transpunha o mar sem saber bem onde estava, apenas me dando minimamente conta de que todos estamos imersos nesse jogo do possuir contemporâneo.
Enfim, talvez fosse hora de tentar transcrever aquele pedaço de texto encontrado; talvez devesse voltar a olhar para o chão para procurar os restos faltantes do texto; ou talvez fosse hora de deixar a caminhada e parar por um instante para contemplar a imagem do disco de fogo; talvez fosse hora de, como uma vez fez Murilo Mendes, sentar-se à beira-mar e ver, mais do que aquela pálida e bela luz do pôr do sol outonal, as luzes ambíguas que dançam e, nesse movimento, consultar os mitos e pedir às ondas que tragam as notícias de mim mesmo.

Imagem: vitral de Santo Apolinário em Chartres.

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